terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

Clube da Lua (Luna de Avellaneda)

O diretor Juan José Campanella inicia seu filme com uma cena que mostra o auge do clube Luna de Avellaneda. Em meio a uma festa grandiosa uma das associadas entra em trabalho de parto e, de forma extremamente simbólica, dá a luz nas dependências do clube.

Décadas mais tarde o filme se desenvolve quando só resta um vislumbre das centenas de pessoas reunidas, distante de ter a mesma arrecadação e de proporcionar a mesma mobilização entre os sócios, o clube luta para não ser fechado.

Além de retratar a história semelhante à de diversos clubes da capital argentina, que sucumbiram à forte crise econômica que abalou o país na década de 1990, o diretor capricha nas metáforas, aproximando o histórico de vida dos personagens à história do clube, passando por altos e baixos e se esforçando para superar as oscilações da melhor forma possível.

O principal pilar do clube ainda é seu fundador, o velho Don Aquiles (José Luis Lópes Vásquez), que segue com perfil sonhador. Mesmo que o estabelecimento já não seja o elemento agregador da vizinhança, Don Aquiles ainda se apega aos projetos sociais e aos jovens que utilizam as dependências para a prática esportiva para justificar a continuidade do clube.

Entre os mais jovens, o principal defensor é Román Maldonado (Ricardo Darín). Em linhas gerais, a vida do protagonista se desenvolve de forma semelhante à do clube. Teve seu auge no casamento, chegada dos filhos e agora vive uma grande crise. Uma relação fria com a esposa – prestes a ser encerrada definitivamente –, um contato conflituoso com o filho e grave crise econômica.

Podemos notar que a história se passa em um bairro operário, semelhante ao Brás, em São Paulo, onde ainda podemos ver claramente como as casas foram construídas ao redor de grandes fábricas que empregavam os moradores. Em contraponto às fábricas, os clubes uniam os moradores através do lazer. Com a economia degradada e as fábricas fechadas, os trabalhadores começam a cortar os gastos menos relevantes, passando pela mensalidade do clube, até restringirem os gastos à subsistência mínima.

Em épocas de pleno emprego as relações são sempre muito mais fáceis. Por mais que os conflitos existam, o stress que ronda os trabalhadores é menor, pois ao menos as contas estão em dia e é possível ter um pouco de conforto. Já nas crises a situação particular não demora a se refletir nas relações interpessoais. O clube que antes era o ponto de encontro e descontração passa a ser mais uma fonte de problemas, sem dinheiro para se manter e com demandas econômicas crescentes.

É o cenário ideal para que alguém apareça com uma solução aparentemente mágica. No filme isso é representado por Alejandro (Daniel Fanego), que propõe a venda do clube para uma empresa que transformará o local em um cassino, se comprometendo a contratar os atuais sócios.

Pode parecer extremamente sedutor aceitar uma mudança que promete encerrar as atividades de um clube que já não rende tantas alegrias aos sócios e iniciar um novo ciclo, que ainda trará emprego e estabilidade. O que deve ser considerado pelos adeptos à ideia é que não há nenhuma garantia de que o tal cassino irá prosperar, sobretudo porque aparentemente não existe um projeto de revitalização do bairro.

Neste ponto um paralelo bem interessante pode ser traçado entre a história do clube e a vida de Román. Individualmente o personagem pode experimentar mudanças atraentes, cujas consequências são mais restritas. Diante dos problemas de relacionamento existe a possibilidade de desistir do casamento, procurar outra mulher e tentar iniciar um novo ciclo.

Dentro do contexto do filme essa saída se torna questionável. Ainda que o divórcio seja cada vez mais comum e aceitável, a aura de romantismo que é construída desde o início da história nos leva a pelo menos lamentar a decisão.

O que fica implícito, principalmente quando se faz essa comparação, é que o romantismo que permeia as relações deve se estender também ao clube, já que embora as fábricas tenham fechado levando o emprego daqueles trabalhadores, o elemento que os unia fora do trabalho permaneceu. O sentimento que nutriam pelos seus próximos ainda existe e abrir mão do clube em troca de vagas temporárias de emprego seria acima de tudo uma vitória do capital, que move a mão-de-obra local de forma aleatória, de acordo com o interesse de grandes empresários.


terça-feira, 10 de fevereiro de 2015

Leviatã (Leviafan)

Um Estado, em tese, deveria zelar pelo bem-estar do cidadão. Atuar como mediador de conflitos e alocar os recursos de forma eficiente são prerrogativas teóricas de qualquer governo representativo. Da religião deveríamos esperar uma atuação semelhante, pois mesmo após a laicização dos governos as igrejas mantêm a pretensão de atuar pelo bem de seus fiéis.

O diretor Andrey Zvyagintsev mostra que essas funções podem ficar bem distantes da realidade quando, na prática, o Estado e a igreja são geridos por pessoas totalmente descomprometidas com o que deveria ser sua real função. É com essas pessoas que a sociedade deve lidar.

Mesmo com o enredo se desenvolvendo em uma pequena cidade no norte da Rússia, os temas expostos são universais. Ao menos no Brasil o momento atual nos aproxima dos russos, não apenas devido ao bloco econômico BRICS, mas uma trajetória pós-ditadura e um irritante histórico de corrupção endêmica faz com que nossas terras tropicais se aproximem bastante das terras áridas e geladas.

O protagonista Kolia (Aleksey Serebryakov) poderia seguir uma vida pacata, lidando com percalços naturais e monótonos de uma pequena cidade, mas desde o começo vemos que ele tenta proteger sua casa e oficina, onde a prefeitura da cidade pretende construir um prédio.

Se por um lado um dos deveres do Estado é garantir aos cidadãos seu direito à propriedade, por outro os interesses coletivos se sobrepõem aos individuais. Caso haja uma necessidade justificável a propriedade privada pode ser desapropriada. O que vemos no filme – e no dia-a-dia – são governantes cedendo à pressão política e econômica de classes mais altas e prejudicando diretamente pessoas como Kolia.

Grandes propriedades têm a chamada função social. Países que conseguiram atingir um nível mais elevado de democracia representativa impedem por meios legais a acumulação ilimitada de terras, grandes edifícios abandonados em áreas com muita infraestrutura, etc., já que tudo isso acaba pesando indiretamente na conta das classes mais baixas.

Já em países com grande desigualdade social e consequentemente pouca representatividade política, as classes economicamente superiores adotam o falso discurso de liberdade para subverter as funções do estado. Assim como o Brasil, a Rússia viveu um longo período ditatorial. Políticos não precisavam dar satisfação dos seus atos, dissidências eram resolvidas de forma violenta e a imagem de grandeza era sustentada com muito mais maquiagem do que fatos concretos.

No filme essa época terrível é indicada de forma paradoxalmente muito bonita. As cenas externas são repletas de grandes navios encalhados, que em contraposição ao passado aparentemente glorioso do qual participaram, agora enferrujam e apodrecem no mar, assim como a ossada de baleia sugerindo, entre outras possibilidades de interpretação, a grandeza natural que também é efêmera, restando à posteridade somente seus descendentes. Este é, politicamente, o ponto crucial.

O atual regime político descende daquela incompetência de gestão baseada nos interesses pessoais acima do coletivo. A burocracia mantem níveis desnecessários e o Estado, simbolizado no filme pelo prefeito bêbado que tenta impor sua vontade de forma ridícula, se apoia nos ricos para que juntos permaneçam longe dos mais pobres.

O conteúdo de Leviatã se encaixa nas ideias descritas por Hobbes em seu livro homônimo. Resumindo ao extremo, um Estado que na teoria é onipotente, necessário para manter a ordem entre os homens, cuja relação é bastante conflituosa, conforme vemos no filme. Mesmo assim, a igreja aparece no filme com uma metáfora interpretada da maneira que mais lhe convém.

Diferenciando a religião da instituição igreja, vemos que esta desde sua origem opta pelo poder, mais do que pelo conforto espiritual de seus fieis. O conluio entre a cúpula da igreja – seja ela a ortodoxa do filme ou a romana que se sobressai em nossa sociedade – com políticos corruptos costuma ser tão eficiente para ambos quanto maléfica para a sociedade.

O poder da igreja que poderia influenciar positivamente na política em prol do cidadão é na verdade trabalhado para ludibriar fiéis e amenizar seus prejuízos. Religiões trazem poucas mensagens claras. A maior parte de seus dogmas é baseada em metáforas tão abstratas que podem ganhar o significado mais conveniente para as situações vividas.

Seguindo este pensamento, o Leviatã referente ao estado onipotente é interpretado pelo religioso como a criatura bíblica que vive nos mares. Joga ao cidadão um peso que na verdade pertence ao estado e tira a atenção do verdadeiro causador do problema.

Leviatã é um filme longo, tem tempo suficiente para alternar períodos dinâmicos com partes mais lentas, apresentando um cinema russo que é desconhecido para a maior parte do público brasileiro. Ainda assim as injustiças vividas por Kolia e sua família farão par a muitas situações daqueles que assistirem ao filme por aqui.


terça-feira, 3 de fevereiro de 2015

O mercado de notícias

De acordo com o dicionário, “Mercado: sm (lat mercatu) Lugar público onde se compram mercadorias postas à venda.” “Notícia: sf (lat notitia) Conhecimento, informação.” Pela dinâmica de funcionamento de um mercado que coloca mercadorias a venda, negociando preços de acordo com a demanda e qualidade, poderíamos pensar que notícias não deveriam ser vendidas em um mercado. Não se negocia conhecimento como se fosse uma mercadoria qualquer.

Neste documentário o diretor Jorge Furtado mostra que na prática o conhecimento proporcionado pelas notícias é, sim, negociado como em um mercado. Uma prática tão cotidiana da imprensa que muitas vezes sequer nos damos conta.

Este mercado não é recente, tão pouco uma exclusividade brasileira. O filme é baseado em uma peça de comédia homônima, escrita pelo britânico Ben Jonson no século XVII. Fazendo um retrospecto da imprensa desde então, o longa mostra como a mídia vai muito além de informar, trabalhando para formar opinião de acordo com seus interesses, por vezes de forma escancarada.

Ainda que exista um padrão mundial de atuação jornalística, com muitos profissionais trabalhando longe da ética, é muito pertinente desenvolvermos esse tema com base no jornalismo nacional e suas nuances.

É premissa que a imprensa deve ser livre e isenta de qualquer tipo de censura. Lutamos ao longo de duas décadas por isso e muitos morreram na tentativa de exercer o simples direito de expressão. Demos um passo gigante ao conseguirmos o fim da censura institucional dos meios de comunicação, porém isso não implica no fim de todos os problemas.

Se antes o impasse era um governo ditatorial que vetava publicações, hoje a grande mídia, oligárquica ao extremo, utiliza a égide da censura para tentar moldar a opinião pública em benefício próprio. Ou seja, é evidente que a censura é muito sedutora em um país onde os governantes têm tanto a esconder, o que não dá aos veículos de comunicação o direito de manipular os fatos para criar verdades.

Poderíamos pensar nessa prática como desnecessária. Vivemos em um país que os escândalos de corrupção brotam de qualquer obra pública ou prática política, qual a necessidade de guiar a opinião pública? As variáveis são muitas, mas algumas peças se encaixam muito facilmente.

Conforme já citado, a mídia brasileira é comandada por poucas famílias, que há várias gerações detém o controle do que é veiculado. As organizações Globo, maior de todas, possuem canal de TV, rádio, jornal, portal de internet, editora e concentra uma fatia gigante deste mercado de notícias, tendo obtido sua concessão, assim como quase todos os outros canais midiáticos, através de amizades bastante controversas com presidentes.

A concessão ilegal é a semente de uma série de relações comprometedoras, que influenciam diretamente na divulgação de notícias. Se na teoria o governo tem autoridade para rever as concessões, na prática qualquer tentativa de legaliza-las pode ser facilmente noticiada como uma tentativa de censura. Com razão tememos a censura, pois sofremos muito com ela, porém a regulamentação da mídia – e não de seu conteúdo – é prática comum e necessária.

Como um mercado, que de acordo com a demanda dos consumidores abastece suas prateleiras com produtos que terão mais vendas, os jornais têm como pauta assuntos que rendem repercussão. Não existe na prática a chamada imprensa imparcial. Em um mundo globalizado, no qual as informações circulam por todos os países em tempo real, condensar conteúdo em uma única edição, independente de qual seja o formato, significa escolher o que vai ou não ser publicado, e por melhor que sejam as intenções isso já implica em parcialidade.

Pode parecer simples, afinal basta um bom jornalista investigar uma denúncia, apurar os fatos e redigir uma matéria. O problema é que por trás desse roteiro há interesses influentes de pessoas poderosas. Em meio aos escândalos de corrupção o jornalista pode acabar seguindo ramificações que esbarram no próprio veículo para o qual trabalha ou em nomes que por diversos motivos não devem ser citados.

Além dos comprometimentos suspeitos há ainda a dificuldade técnica de elaborar o trabalho jornalístico, fato que o filme aborda com muito bom humor. Em meio à falta de tempo e pressão para entregar o trabalho finalizado antes do fechamento da edição, não é raro que jornalistas abandonem o rigor da investigação em seu nível mais básico e acabem publicando verdadeiros absurdos.

Sem dúvida é absurdo, conforme vemos no filme, um jornal destacar um quadro de Picasso, que na verdade é um pôster do original. Porém muito mais grave é uma publicação tendenciosamente falsa, com objetivos bastante claros, e que não pode sofrer nenhum tipo de sanção, sob a égide do combate à censura. 


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