terça-feira, 27 de outubro de 2015

Beasts of no nation

Com seu longa o diretor Cary Joji Fukunaga parece não ter a intenção de entreter. Beasts of no nation é uma ficção baseada no livro homônimo de Uzodinma Iweala que mostra a dura realidade de um povo que precisa lutar pelas necessidades mais básicas, mesmo estando cercado de riquezas naturais.

É através da vida do pequeno Agu (Abraham Attah) que somos introduzidos em uma realidade extrema e cruel. Sua vida, sempre difícil, torna-se ainda pior após sua família ser assassinada por uma das milícias que tentam tomar o poder na região. Quase como um filhote de animal selvagem que perde a proteção dos pais, Agu não tem muitas alternativas se quiser continuar vivo.

Como acontece em qualquer território que tenha Estado omisso e desigualdade latente, as carências da população acabam virando moeda de troca, nesse caso servindo de base para a busca por apoio na guerra civil. É curioso notar que na guerra são incorporados elementos do mundo ocidental, como armas pesadas, para não dizer a própria ideia de aniquilamento do inimigo, porém muito dos costumes nativos são mantidos. Vemos uma soma de cultura com o pesar de contribuirmos com a pior parte.

Resta a Agu juntar-se ao exército composto por meninos não muito mais velhos que ele, recebendo o que seria um treinamento militar que não vai muito além de simular um rifle com um galho de árvore e talvez o mais importante: uma chance de sobreviver naquele ambiente hostil.

Não dá para dizer que no Brasil vivemos uma situação semelhante. A concretização de uma guerra civil, além das próprias características geográficas, nos afasta da condição do filme. Porém é inegável que a violência de nossa sociedade atinge níveis inaceitáveis, de forma que podemos ao menos imaginar uma analogia para que o contexto do filme fique mais próximo à nossa realidade.

Os planos abertos da área urbana do filme mostram um cenário semelhante a algumas favelas brasileiras. Moradias precárias, crescimento urbano sem planejamento e infraestrutura insuficiente para sanar as demandas da população, que acaba tendo a qualidade de vida extremamente comprometida.

O mesmo Estado que deveria ter o monopólio legítimo da violência deveria também fornecer condições de vida digna aos seus cidadãos. Ao abrir mão de políticas públicas de segurança, saúde, educação, etc. – seja no Brasil, na África ou em qualquer outro lugar – o Estado cria uma lacuna que quem conseguir preencher será aceito, ou pela simpatia proveniente da assistência ou pela intimidação da violência.

Nesse cenário a população acaba rendida, sem tem a quem recorrer. Em meio à violência os moradores locais acabam encontrando mais identificação com os grupos que lutam pelo poder, tanto por seus integrantes geralmente terem a mesma origem local quanto pela proximidade, infinitamente superior à de um Estado omisso e desinteressado nas necessidades mais urgentes dos moradores.

Quando o Estado atua somente combatendo a violência já institucionalizada não faz nada além de remediar de forma precária seus próprios erros, cometidos ao longo dos anos anteriores. Já os grupos que se digladiam pelo poder vivem quando muito uma ilusão de vitória, como, voltando ao filme, é o caso do personagem Commandant (Idris Elba), que lidera a milícia que aliciou Agu.

Uma diferença fundamental entre Estado e milícias de uma guerra civil é que estas não têm controle sobre as riquezas do país, nem negociam abertamente com empresas e órgãos internacionais. A partir do momento que existe um interesse externo em relação ao fim do conflito, existem mecanismos para que a guerra acabe e os líderes locais, que pareciam imbatíveis, tornam-se apenas mais uma peça descartada.

Nessa hierarquia social os líderes da guerra civil não estão muito acima dos demais indivíduos envolvidos direta ou indiretamente no conflito. O que vemos no filme é que Agu, algumas outras crianças e os jovens não perderam somente a infância – o que já não seria pouco –, muitos perderam sua civilidade, sua noção de indivíduo, sendo reduzidos a seres irracionais, que passam o dia em busca de alimento e fugindo da morte.

Conforme o próprio título indica, não são mais crianças, jovens ou adultos. Sequer são seres humanos. São bestas selvagens lutando pela sobrevivência, sem nenhuma identificação com a nação em que vivem, seja ela qual for. O paradoxo de bestializar esses indivíduos é que entre todas as espécies, a única que tem a capacidade de desvirtuar seus semelhantes a tal ponto é a nossa.


terça-feira, 20 de outubro de 2015

Marcados Pela Guerra (Camp X-Ray)

A opinião mais comum sobre prisioneiros é que se uma pessoa está na cadeia é porque fez algo de errado, muitos ainda consideram que a condição de cárcere despe o indivíduo de qualquer direito, justificando qualquer tipo de tratamento que venha a receber de agentes da lei.

Em resumo essa era a ideia da protagonista Amy Cole (Kristen Stewart) quando, após se alistar no exército norte-americano, chega na prisão de Guantanamo. A versão oficial do exército e do governo é que a prisão é destinada aos terroristas, de forma que os militares já chegam no local dispostos a lidar com inimigos.

O diretor Peter Sattler construiu uma linha temporal simples, mas eficiente. Pouco a pouco os preconceitos em relação a prisioneiros e militares são apresentados, para serem desconstruídos ao longo das poucas relações que se estabelecem entre os personagens.

O detento que se destaca na trama e serve de contraponto às regras militares é Ali Amir (Peyman Moaadi). Os soldados devem vigiar os detentos constantemente, pois mesmo que passem o tempo todo isolados em uma cela individual, pequena e com opressoras paredes brancas, devem ser impedidos de cometer suicídio. Independente de como uma pessoa foi parar em Guantanamo e qual nossa opinião a respeito disso, não é difícil imaginar o desespero de passar vários anos isolado do mundo nessas condições.

Por parte dos militares, nenhum contato é permitido. Instigando o ódio e construindo uma personalidade animalizada aos detentos, o exército obriga que todos mantenham distância dos supostos terroristas, sem conversa, sem contato físico, usando até mesmo luvas cirúrgicas enquanto estão em serviço.

Ali Amir mostra o porquê de tanto rigor, primeiramente aparentando justificar todas as barbáries atribuídas aos detentos. O problema é que, conforme o próprio filme indica através da fala de um militar, os detentos conhecem empiricamente os procedimentos da prisão há anos, enquanto soldados como Amy ainda não conhecem bem as nuances da relação distante entre as partes envolvidas.

Com o tempo e com a paciência de quem passa longas horas sem entretenimento, Ali consegue começar a puxar conversa pela fresta da porta e a chamar a atenção da vigia que ele sequer sabe o nome, já que os militares são obrigados a andar sem identificação. De detalhe em detalhe Cole percebe que o detento está longe de ser um terrorista impiedoso que visa destruir seu país.

Mais velho e com muito mais cultura que a jovem militar que ainda não sabe muito bem o que quer, Ali consegue estabelecer um vínculo mais forte, ainda que somente por curtas conversas durante o turno de Cole, em contrapartida o comportamento hostil dos demais soldados em relação aos detentos começa a incomodá-la. Um motivo para isso é exatamente a justificativa para o exército exigir distância entre detentos e vigias, ou seja, uma vez estabelecido um vínculo que mostre aos americanos a pessoa que ocupa o lugar do suposto terrorista, seria muito mais fácil o desmascaramento de absurdos cometidos pelo exército.

Ali é apenas um dos detentos de Guantanamo que é mantido em cárcere injustamente e Cole é apenas uma entre diversos militares que aplicam as leis com a mesma facilidade com que quebram as regras quando convém. O filme nos instiga a pensar em quantos detentos e militares reais não são representados por esses personagens, atuando na vida real para manter vivo o medo exacerbado do terrorismo.

Da mesma forma que Cole chegou à prisão munida de todos os preconceitos que a convenciam de aceitar qualquer ordem como correta e necessária, o medo do terrorismo faz com que a população norte-americana não apenas apoie, mas exija do governo atitudes agressivas contra países inteiros, sob a justificativa de combate a um terrorismo muito mais psicológico que real.

Em uma escala distinta, porém mais próxima a nossa realidade, é possível afirmar que a estrutura baseada no medo atua também em presídios ditos comuns, que não abrigam terroristas. Ao transformar todos os presos em uma massa uniforme e isenta de individualidades os governos moldam um inimigo da sociedade e, de forma semelhante ao exército norte-americano, cometem barbáries com o apoio e o clamor de ampla parcela da sociedade, que acredita serem medidas necessárias para a segurança.

Pode ser que entre tantos detentos em Guantanamo haja potenciais terroristas, assim como entre milhares de presos em nosso sistema prisional há verdadeiros criminosos, mas tratar todos da mesma maneira não proporciona recuperação e ainda instiga o ódio, que traz mais problemas do que solução.


terça-feira, 6 de outubro de 2015

Que Horas Ela Volta?

A atual relação entre patrões e empregadas domésticas tem raízes antigas em nosso país. Desde a época da escravidão os patrões mantinham empregadas destinadas a servi-los em cada detalhe do cotidiano. Esta obra da diretora Anna Muylaert mostra uma transição na forma como empregados e patrões se relacionam, ainda que persistam algumas características extremamente anacrônicas que demonstram uma exploração explícita, porém tão naturalizada que muitas vezes sequer é notada.

A protagonista Val (Regina Casé) representa brilhantemente um estereótipo mais antigo da empregada doméstica, que é o sonho de muitos patrões que buscam uma serva ao invés de uma trabalhadora. Val é extremamente dedicada, atenta aos mínimos detalhes, e é prestativa desde quando precisa servir um copo de água aos patrões até quando precisa ser quase uma babá do adolescente Fabinho (Michel Joelsas).

Ela vive um cotidiano determinista, no qual ocupa um local muito bem delimitado. Suas aspirações não vão além de mandar dinheiro para a família que ficou no nordeste e comprar alguns bens de consumo para mobiliar o quarto minúsculo relegado a ela em um canto externo da mansão suntuosa dos patrões.

Esse destino traçado ao longo dos séculos de escravidão que formaram nossa sociedade é interrompido quando a filha de Val, Jéssica (Camila Márdila), chega a São Paulo para prestar vestibular. A simples pretensão de cursar arquitetura em uma universidade pública já quebraria a expectativa de uma sociedade estratificada, na qual a filha de uma empregada nunca teria acesso a um emprego muito melhor que o da mãe.

Além disso, tendo tido acesso à educação e cultura, a menina tem uma postura social muito distinta daquela que sua mãe espera. Para Jéssica é um absurdo a mãe morar no serviço, principalmente morar em um cubículo de uma casa tão grande e vazia. Seus sonhos não são restritos ao consumo de bens e eletrodomésticos pagos em infinitas prestações.

Jéssica tem consciência de que o papel de cada um dentro daquela casa nada tem de natural, sendo somente uma perpetuação de uma sociedade similar às castas indianas, nas quais um indivíduo não pode de forma alguma ascender socialmente. Hoje, graças a um período mais longo de prosperidade econômica, muitos vivem uma situação semelhante à de Val e Jéssica, ou seja, jovens que não precisaram começar a trabalhar tão cedo, tendo a possibilidade de uma educação melhor, desenvolveram uma visão mais crítica do meio em que vivem.

É evidente que o cenário está longe do ideal. O fato de a menina prestar o vestibular almejando uma universidade pública já é um grande passo quando comparado ao cenário tradicional da relação entre patrões e empregados, porém ainda não existe a menor possibilidade de pensarmos em igualdade de condições. Basta uma olhada rápida para a família que emprega Val para notarmos o abismo existente entre os personagens.

Em uma situação como essa é recorrente o argumento de uma suposta meritocracia, que justificaria a posição social privilegiada de uns em detrimento de outros. Porém Carlos (Lourenço Mutarelli), o patriarca da família, deixa bem claro que vive da herança que recebeu de seu pai e atualmente não precisa trabalhar para sustentar a família.

Se por um lado suas atitudes demonstram uma vida vazia por trás de todo o luxo e conforto de quem vive de renda, por outro notamos um resquício latente de coronelismo naquele que, por sempre ter acesso a tudo o que quer, acredita ser onipotente, sem perceber que não há mérito algum em suas ações, mas apenas um poder financeiro que felizmente já não tem a força do passado.

O desdobramento da emancipação econômica é claramente demonstrado pela postura de Jéssica e os efeitos são espalhados pouco a pouco, quando a menina vai mostrando, às vezes de forma conflituosa, para a mãe como algumas atitudes dentro da casa não fazem sentido. Tudo isso é possível graças ao rompimento gradual – muito mais lendo do que o necessário – de barreiras sociais responsáveis pela manutenção de uma classe muito restrita no topo da pirâmide econômica.

Agora o desafio é impedir retrocessos advindos de crises econômicas, que sempre são mais custosas aos mais pobres, e garantir que jovens como Jéssica tenham não somente acesso ao estudo, mas condições de uma inserção real no mercado de trabalho. Diferente do que muitos insistem em tentar argumentar, isso não significa um privilégio. Privilégio têm aqueles que não precisam levantar do sofá sequer para pegar um copo d´água.


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