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terça-feira, 31 de janeiro de 2017

600 milhas

O diretor Gabriel Ripstein aborda um tema muito pertinente em seu longa. Ainda que tenha obtido um resultado abaixo do potencial, a obra acaba ganhando relevância diante dos recentes acontecimentos, com Donald Trump repetindo velhos clichês e prometendo acirrar a política de colonialismo norte-americano.

A narrativa predominante e unilateral é a de que latinos visam os Estados Unidos como uma meta a ser alcançada, sendo que muitos dos que atingem essa meta seriam responsáveis por problemas sociais como violência, tráfico, desemprego, etc. O que o filme mostra é que em tempos de globalização financeira, com mercados interligados e transações comerciais megalomaníacas, os problemas também são generalizados.

O estereótipo mexicano do filme é Arnulfo (Kristyan Ferrer), que ganha a vida cruzando a fronteira para contrabandear armas. Antes que alguém conclua que isso justifica o muro prometido por Trump, cabe ressaltar que isso não seria possível sem a participação de Carson (Harrison Thomas), o norte-americano que compra as armas – inclusive as de uso militar – sem grandes dificuldades e repassa ao mexicano.

O país que durante treze anos criminalizou as bebidas alcoólicas elege agora outras drogas como inimigas da nação, fechando os olhos para os danos causados pelas armas fornecidas ao mundo que geram rios de dinheiro – e de sangue.

As atividades ilegais, realizadas de forma intensa na fronteira com o México, são fiscalizadas de perto pelas autoridades do país, porém são reprimidas em doses homeopáticas, ou seja, quando há conveniência ou necessidade de mostrar serviço à população, que se sente segura ao ver latinos detidos.

No filme essa fiscalização é feita por Hank Harris (Tim Roth), até que um deslize abala as estruturas do contrabando, fazendo com que o agente vire refém de Arnulfo. O mexicano não tem a menor dificuldade para voltar ao seu país de origem com um refém escondido no carro. A revista aos que deixam os Estados Unidos é quase simbólica, extremamente diferente dos que tentam fazer o caminho inverso.

Pode parecer justo impor restrições aos que podem tentar traficar drogas ilegais, mas o impacto social e a violência que será gerada por armas vendidas livremente, sob o argumento infantil de que a autodefesa é um direito do cidadão americano, raramente é analisado.

Problemas sociais não são fenômenos isolados. Há uma cadeia produtiva que entrelaça bens de consumo na qual a produção de drogas e de armas formam uma mistura explosiva. Não há saída imediata para essa relação, pois suas raízes são muito mais profundas do que aquilo que o muro prometido por Trump pode barrar.

Entre os diversos fatores que sustentam as violências características de cada país estão relações econômicas seculares que mantêm países latinos como fornecedores de matéria-prima e mão-de-obra baratas, em troca de produtos industrializados permeados por sonhos de consumo.

Junto com as armas os Estados Unidos vendem a ideia que o sucesso econômico do país ocorre por mérito e competência, sendo os outros países – sobretudo latinos e muçulmanos – somente ameaças a serem combatidas. Os que compram essa ideia acreditam que com esforço um dia alcançarão o mesmo sucesso econômico, desde que não sejam atrapalhados pelas supostas maçãs podres, simbolizadas por Arnulfo.

Quando o personagem volta para o México com o refém a história do filme começa a ficar um pouco repetitiva e os diálogos não chegam a explorar todo o potencial da trama, mas o que fica implícito é que essa relação promiscua não traz vantagens ao México ou aos mexicanos em detrimento dos Estados Unidos.

O tráfico internacional de drogas movimenta cifras exorbitantes e não funciona sem armas, que são produzidas e vendidas, em grande parte, por empresas norte-americanas. O discurso de combate ao tráfico somado à falácia de armar o cidadão para que ele se defenda dos perigos externos sustenta um mercado também milionário, que produz vítimas em ambos os lados da fronteira.

Diante das recém ameaças de muros, deportações e interdições, o filme Gabriel Ripstein traz temas pertinentes para a desconstrução de um discurso cínico, que insiste em colocar os Estados Unidos como vítima das violências vindas do exterior e ocultar os problemas originados pela exploração norte-americana.

Não precisamos sequer chegar no usuário final da droga, muitas vezes contrário à presença de imigrantes mexicanos no país, basta um olhar para as relações institucionais entre os dois países para notar que o problema da violência é bilateral, sendo um muro a simples maquiagem para corroborar preconceitos.


terça-feira, 18 de outubro de 2016

As escolhidas (Las elegidas)

Há pouco mais de um século o movimento feminista vem ganhando força no mundo todo. Um século pode parecer muito, mas para combater milênios de opressão o movimento ainda tem muito trabalho pela frente, mesmo já tendo conquistas fundamentais para as mulheres.

Nos últimos anos a internet teve papel de peso nessa ascensão feminista. Com as redes sociais mulheres têm a oportunidade de compartilhar experiência com desconhecidas, tomando consciência de que muitas coisas consideradas normais só tem esse caráter devido à naturalização do machismo na sociedade.

Claro que como todo movimento que contesta uma ordem vigente, junto com sua ascensão crescem também as críticas, desde as mais diretas às relativizações aparentemente inocentes. Para uma indicação clara de que o machismo ainda é dominante, costuma ser suficiente a inversão de papéis. E se fosse um homem na situação em questão? – não basta uma exceção à regra. É comum que homens sejam explorados sexualmente sob a supervisão impiedosa de mulheres, que ganham a vida como cafetãs?

Essa é a realidade da família de Ulises (Oscar Torres). O pai e o irmão mais velho do jovem mantém uma casa de prostituição com garotas mantidas à força, sob a ameaça de castigos físicos contra elas e seus familiares. O método de escolha das meninas era sempre o mesmo, seduzi-las induzindo a um namoro até que quando se davam conta já era tarde para sair do prostíbulo.

Não bastasse a insegurança dos adolescentes diante de novos relacionamentos, com o desconforto de uma situação desconhecida minando as atitudes e comprometendo os resultados, Ulises sabia do destino que estava traçando à Sofia (Nancy Talamantes). O inusitado para um esquema repleto de insanidades é o fato de Ulises estar de fato apaixonado pela adolescente.

O diretor David Pablos mostra como o funcionamento do prostíbulo era protegido por várias frentes. A recusa de Ulises em entregar a moça não tinha nenhuma relevância frente ao pai e ao irmão. A polícia era conivente com o esquema, graças à propina, e isso escancara uma característica inerente aos preconceitos enraizados: eles não precisam da anuência das leis, pois de tão capilarizados na sociedade são tolerados muitas vezes até pelas próprias vítimas. Por fim, localizado em um bairro distante, o local era vigiado por vários homens, o que impossibilitava uma fuga de Sofia.

A única alternativa da menina estava também subjulgada ao universo masculino, pois o pai e o irmão de Ulises concordaram em libertá-la, desde que o jovem trouxesse outra menina para seu lugar. Difícil pensar em alguma atitude direta de Sofia para conseguir escapar. Uma vítima de catorze anos, cercada por uma estrutura de dominação muito organizada e forte.

Não é somente a situação de Sofia e das demais jovens que incomoda. Ao longo do filme começamos a pensar em uma alternativa que possa colocar fim ao esquema criminoso que converge uma série de crimes para um ponto específico. Será que nos esforçamos para desenvolver uma sociedade regulamentada por leis e instituições de fachada, que oferecem brechas para que a quadrilha que mantém o prostíbulo não seja desfeita e seus integrantes detidos?

Infelizmente parece que a cereja contaminada que dá o toque final a este bolo amargo é a condescendência dos frequentadores do local. Talvez seja um argumento frágil utilizar a lei de mercado que diz que não há oferta se não houver demanda, mas quando o sexo é mercantilizado e explorado como uma mão de obra escrava parece que essa alternativa insana é a chave para toda a situação.

Ainda que a exploração fosse de alguma forma denunciada para um policial que não participasse do esquema, se em casos explícitos de estupro existe a tendência machista de culpar a vítima questionando suas roupas ou a falta de companhia, o que dizer de meninas que, em tese, são pagas pelo que estão fazendo. Ainda que seja uma falácia, devemos lembrar que uma sociedade que culpabiliza a vítima de um estupro não prima pelo bom senso.

No filme, Ulisses demora um pouco para encontrar uma jovem que possa ser trocada por Sofia, nesse escambo tão rudimentar que não se trata nem de comercializar o sexo, mas as mulheres mesmo. Após uma cena um pouco confusa, em que uma tentativa de fuga por parte de Sofia parece não ser concluída, fica a dúvida: depois de ter vivido uma experiência tão traumática e ter criado empatia com algumas jovens do prostíbulo, como levar a vida adiante?


terça-feira, 31 de maio de 2016

A ditadura perfeita (La Dictadura Perfecta)

Uma ditadura, em seu sentido clássico, é o poder exercido de forma totalitária, por alguém que concentra em si uma autoridade incompatível com a alternância de poder e limitações de um chefe executivo. Em um Estado moderno, isso excluiria qualquer empresa, já que a definição se aplica aos representantes do governo.

O diretor Luis Estrada recorre à comédia para caricaturar a realidade e ampliar o conceito de poder, mostrando como uma alternância do chefe de poder executivo não implica, na prática, em uma democracia consolidada. Tudo começa quando, para apagar o incêndio proporcionado por uma gafe do presidente, um vídeo do governador Carmelo Vargas (Damián Alcázar) é divulgado pela MX TV.

Seria ótimo se o fato de um político recebendo uma mala de dinheiro vivo só fosse plausível no cinema. A propina, tanto quanto o desdobramento do caso, é tão real que causou desconforto no México dadas as semelhanças com a emissora Televisa e com eminentes figuras da política mexicana. Mesmo sendo um filme estrangeiro, o roteiro parece um apanhado de fatos ocorridos no Brasil, bastando poucas modificações para que as situações se adaptem ao nosso cotidiano.

Os países latinos têm em comum a vergonhosa necessidade de admitir a corrupção como prática corrente no exercício da política – fato antigo e independente de partidos. Isso faz com que inevitavelmente uma rede de comprometimentos seja formada nos bastidores. Conforme vemos no filme, e nos jornais, essa rede extrapola os limites da esfera política, contando com atores do setor privado tanto na consolidação de uma imagem quanto no fluxo de dinheiro envolvido.

A única alternativa para Carmelo Vargas foi buscar o amparo de seus algozes. A tentativa inicial de suborno fracassou, afinal, para quem estava com a carreira política de Carmelo nas mãos, mais uma mala recheada de dólares não significava nada. O acordo final implicou no desvio de um rio de dinheiro público investido legalmente na empresa, em troca dos serviços de marketing do produtor Carlos Rojo (Alfonso Herrera).

O que vem à tona é um contrato dentro da lei, de uma empresa privada prestando um serviço. O que fica oculto em um acerto tácito é o pagamento de um valor exorbitante para que um veículo com enorme poder de formação de opinião mude o foco de seus editoriais, moldando a opinião pública de forma sutil e eficiente, a despeito de trapalhadas que mais uma vez só deveriam ter espaço em um filme de comédia, mas que estão constantemente presentes em noticiários supostamente sérios.

Interferir na opinião pública não chega a ser um grande desafio, bastando a progressiva substituição dos noticiários. No lugar dos escândalos de corrupção entra algum fato marcante que mobilize o público. No filme esse fato é o sequestro de duas pequenas gêmeas, cuja cobertura é transformada quase em uma novela pela emissora que pouco se preocupa com o desenlace do caso, desde que possa capitalizar mais recursos e, principalmente, apagar da memória de seus telespectadores a má reputação do governador.

Ao que parece, o que sustenta a alternância de poder executivo é uma alternância de factoides televisivos, sem nenhum comprometimento com a informação, mas com o entretenimento vazio que vai ao ar em horário nobre travestido de noticiário. É notório como muitos assuntos veiculados à exaustão de repente perdem espaço até sumirem dos jornais.

O roteiro do filme é basicamente a filmagem de um roteiro real, que descreve a relação entre a grande mídia, comprometida com políticos corruptos, e a falta de escrúpulos daqueles que mantêm a estrutura do poder inabalável e hegemônica. Seduzida pela ideia de democracia reduzida à rotatividade de poder e fisgada pelo engodo de que políticos são todos iguais, boa parte da população se dá por satisfeita com eleições periódicas, nas quais escolhe o candidato que considera menos pior.

Assistindo ao filme, ou aos jornais, não demora para percebermos que algumas premissas democráticas, como o voto equitativo ou a igualdade de condições, são completamente desvirtuadas por somas obscenas de dinheiro público utilizadas para a construção de um candidato com amplo apoio de setores empresariais, com os quais o futuro eleito está comprometido até os ossos em um esquema corrupto do qual não conseguiria sair nem se quisesse.

Luis Estrada traz apenas um recorte caricaturado da realidade. É pertinente que a partir dos exemplos do filme a população pare para pensar em quantas emissoras, construtoras, igrejas, agências de publicidade e tantas outras empresas com contato direto com governantes podem contribuir com uma ilusão democrática, maquiando a perpetuação do poder nas mesmas mãos.


quarta-feira, 17 de abril de 2013

Depois de Lúcia (Después de Lucía)


Este longa mexicano, do diretor Michel Franco, aborda um assunto antigo que vem ganhando notoriedade recentemente, o bullying, agravado pelo uso de novas tecnologias, que podem causar uma série de transtornos, conforme vemos no cinema e fora dele.

A protagonista Alejandra (Tessa Ia), uma jovem de 15 anos, muda-se de uma cidade do interior para a Cidade do México, juntamente com Roberto (Gonzalo Vega Jr.), seu pai, pois ambos esperam que a mudança ajude a superar a morte de Lucía, mãe de Alejandra.

Uma mudança em condições normais já demanda adaptação, que nem sempre é fácil. Pai e filha têm que lidar ainda com a mudança inerente na estrutura da família e Alejandra, em meio à fase conturbada da adolescência, se esforça para superar a timidez e o luto através da aproximação de novos amigos. Como se a vida já não estivesse difícil o suficiente para a menina, ela vai para a cama com o namorado, que filma tudo e o vídeo, de alguma forma, é divulgado entre os amigos.

Na via de mão dupla entre a vida e a arte, chama atenção a semelhança da história retratada por Franco com o triste caso real de Amanda Todd, uma canadense da mesma idade de Alejandra, que antes de se enforcar postou um vídeo angustiante no Youtube, explicando sua história. Apesar de o tema central ser o bullying, as conclusões que podemos tirar extrapolam esses limites.

1) Tecnologias recentes permitem grande interação entre as pessoas e o registro fácil de momentos marcantes. O imprevisível são os desdobramentos de como essa tecnologia será usada e suas consequências. Esperar que jovens adolescentes, que já tem um comportamento relativamente inconsequente e costumam buscar e desafiar os limites do que os cerca, tenham maturidade para discernir o que não se deve fazer e o que não se deve divulgar na internet é muito pretencioso, principalmente quando notamos que muitas vezes nem mesmo os adultos têm esse discernimento. Monitorar o comportamento dos filhos nas redes sociais é pertinente, desde que seja com o intuito de ajudar, ao invés de censurar.

2) A partir do momento que conteúdos particulares são divulgados, não há como voltar atrás. É evidente que ninguém quer sua privacidade exposta, mas é interessante, no filme e na vida, como a dinâmica de marketing viral atua nessas situações. Muito conteúdo comprometedor acaba compartilhado na internet, porém vez o outra cria-se uma histeria coletiva, através da qual as pessoas abrem mão do senso crítico e ignoram as contradições do discurso que reproduzem. Julgam e condenam comportamentos cotidianos, como o de Alejandra, ainda que muitas vezes exerçam o mesmo comportamento, com a diferença de não ter o conteúdo divulgado.

3) O bullying deve ser fortemente combatido, seja ele virtual ou físico. Com a recente notoriedade do tema – cuja existência é antiga – já surgem algumas ironias e distorções em torno do próprio conceito, porém os danos causados pela prática de bullying costumam ser intensos e muitas vezes irreversíveis. Assim como podemos conferir no filme, o alvo das agressões passa a ser foco de uma ação social sem fundamentos. Muitas vezes não há motivos racionais para as agressões, para a rejeição e mesmo ao ódio demonstrado pelas amigas da protagonista. No caso específico Alejandra passa a ser odiada por ter ido para a cama com um garoto da escola. Por acaso foi a única?

4) Ambos os sexos sofrem com a violência do bullying, porém dentro dessa temática ainda é possível destacar o machismo que agrava a situação das mulheres vitimadas. Há uma infinidade de exemplos de materiais comprometedores divulgados na internet, a grande maioria de mulheres, que passam a ser fortemente condenadas pela culpa de outra pessoa – dado que o problema é a divulgação do conteúdo. Homens flagrados geram uma pequena repercussão, por vezes até glamorosa, e quando isso acontece com casais, como no caso do filme, a histeria que se forma parece esquecer que há um homem, muitas vezes até responsável, pelo ato imprudentemente censurado.

5) Sem adiantar o final do filme, que vale muito a pena ser conferido, é possível dizer sem estragar nenhuma surpresa que os adeptos da justiça com as próprias mãos ficarão um pouco perturbados. Quem sabe finalmente pensarão sobre a possibilidade de um julgamento ser complexo e estar, de forma muito prudente, subordinado a existência de provas e imparcialidade.

Depois de Lucia é um filme bem didático, sobre um tema que em tese chega a ser bastante simples, mas na prática ainda vai atormentar a sociedade por muito tempo. Um exemplo claro de como o conservadorismo é irracional e maléfico para todos, inclusive para os conservadores.


quinta-feira, 28 de abril de 2011

Ninguém escreve ao Coronel (El coronel no tiene quien le escriba)

Gabriel García Marquez escreveu a novela “Ninguém escreve ao coronel” em Paris, durante seu exílio, mas as referências da história deixam claro que seus personagens estão na terra de Marquez, até mesmo fazendo menção à fictícia Macondo, na qual posteriormente o autor desenvolve a história do romance “Cem anos de solidão”. Ainda que a obra seja um dos primeiros passos no desenvolvimento de Macondo e da família de Aureliano Buendía – também citado –, acabou se tornando um bom complemento com elementos que indicam o que aconteceu fora da cidade enquanto o coronel Buendía lutava na revolução.

Apesar na narrativa do livro ser bastante linear, favorecendo bastante a transposição fiel ao cinema, o diretor Arturo Ripstein apresentou algumas alterações que tiveram resultado bastante positivo no filme. O longa foi rodado no México, mas mantém as características de floresta equatorial, com chuvas intensas, clima quente e, socialmente, o vilarejo pobre e afastado da cidade. Há também a inclusão de fatos e personagens destacando certos sentimentos dos personagens, que vai à contramão das adaptações, pois geralmente na transposição trechos são suprimidos.

A princípio nos parece estranho ver um coronel nas situações expostas, afinal foge da realidade brasileira um militar aposentado, que aqui recebe altíssimos salários após degradar o país por duas décadas, passando por sérias dificuldades devido à pensão prometida pelo governo, que nunca chega. A realidade do casal é condizente com a maioria dos idosos de países pobres, racionando os alimentos escassos, tendo que se contentar com as roupas velhas, com a casa degradada pelo tempo e sempre torcendo para que nenhuma doença apareça com a demanda de remédios que sacrifiquem ainda mais a vida sofrida. O único elemento realmente destoante em relação ao que estamos acostumados no Brasil é o fato do idoso em questão ser militar, que aqui vivem em condições verdadeiramente opostas às descritas anteriormente.

Aos poucos entramos no cotidiano do Coronel (Fernando Luján), tão opressor e degradado em todos os sentidos. A cidade pobre e isolada sofre também com o clima quente e úmido; na pequena casa velha, que o militar divide com sua esposa Lola (Marisa Paredes), sobram poucos objetos após a venda dos mesmos para conseguir algum dinheiro; além das dificuldades físicas da idade, os idosos ainda precisam enfrentar os percalços psicológicos tanto da humilhação por não terem como se sustentar – situação agravada pela hipoteca da casa, que não é descrita no livro – quanto da dor de ter perdido o filho.

Mesmo sem um personagem presente, é através do filho Augustin que boa parte do enredo se desenvolve, pois aos poucos vemos que o clima de censura política vigora até mesmo na cidade que beira a um simples povoado, onde os amigos de Augustin dão continuidade à tentativa do jovem de driblar o controle e divulgar informações de forma clandestina. Além disso, o autor expõe a importância das brigas de galo na cidade, das quais o jovem participava tendo deixado como principal lembrança aos seus pais um galo de briga, supostamente o melhor da cidade, alvo de apostas que poderiam livrar o casal de idosos das dificuldades financeiras. Neste ponto Arturo Ripstein complementa o texto original incluindo a personagem Julia (Salma Hayek), a prostituta com a qual Augustin se relacionava e talvez tenha sido fundamental no assassinato do mesmo. Há mais de uma interpretação para a tragédia envolvendo os elementos políticos e passionais.

Através da moça o autor mostrou a agonia do coronel por não deixar herdeiros, superando até o tradicional moralismo para chorar diante da prostituta e afirmar que gostaria que o filho tivesse lhe deixado um neto. A presença da moça no enredo humaniza a trama e ajuda na composição do sentimento pela imagem, já que a obra original conta com a descrição detalhada com palavras, ou seja, com um recurso bem diferente do cinema.

Mesmo sendo um dos primeiros trabalhos literários de Marquez, que serviu de experiência para o desenvolvimento do trabalho que lhe rendeu o Nobel de 1982, “Ninguém escreve ao coronel” já mostra o grande talento do escritor, apresentado não apenas através da literatura, mas do ativismo político e vários outros trabalhos pela América Latina.


Não encontrei o trailer, mas dá para ver o filme todo no Youtube (áudio em espanhol, legenda em inglês)

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

Biutiful


"Vida é o que acontece com você, quando você está ocupado fazendo outros planos."
(John Lennon)

Este é o primeiro filme de Alejandro González Iñárritu após o rompimento com o roteirista Guillermo Arriaga, o que gerou muitas expectativas sobre possíveis mudanças no estilo do diretor. Desta vez não há tramas paralelas que só se cruzam no final, mas a intensidade dos infortúnios na vida dos personagens continua presente, principalmente para o protagonista Uxbal (Javier Bardem).

O enredo se desenvolve em Barcelona, mas não na bela cidade que atrai tantos turistas e sim na periferia, relegada aos imigrantes clandestinos que sobrevivem através do comércio ilegal ou semi escravizados por algum empregador. Uma das atividades de Uxbal é agenciar esses imigrantes, servindo de intermediário entre eles e as autoridades ou empregadores locais; além disso, ele tem o dom de se comunicar com os mortos e isso se torna mais uma fonte de renda. Tanto os imigrantes ilegais quanto a capacidade mediúnica são temas polêmicos que poderiam ser mais explorados, porém Iñárritu trabalha com muitas tramas, de forma que não é possível aprofundá-las devidamente.

Ganhando pouco dinheiro com seus empregos informais, Uxbal se esforça para sustentar os dois filhos sozinho, já que a ex-esposa Marambra (Maricel Álvarez) sofre para superar a dependência química. Como para os personagens de Iñárritu a situação sempre pode piorar, o personagem descobre que está com câncer, e aqui é possível notar um dos papéis históricos do cinema, ou seja, chamar a atenção dos espectadores para problemas cotidianos, já que Uxbal só foi procurar um médico quando as dores se tornaram insuportáveis, portanto quando já era tarde demais.

O protagonista, apesar exercer atividades ilícitas, não chega a demonstrar crueldade, mas diante da iminência da morte passa a prestar mais atenção em detalhes de sua própria vida, deixando de lado o individualismo e se aproximando mais das pessoas próximas a ele. Lembrando de seu próprio passado, passou a ter medo de que os filhos, ainda pequenos, esquecessem dele depois de sua morte, abrindo espaço para uma constatação relativamente óbvia, porém geralmente despercebida: quem quer ser lembrado deve, como ponto de partida, dar motivos para que isso aconteça e, exceções a parte, as lembranças costumam fazer jus às atitudes tomadas. Este passou a ser o desafio implícito de Uxbal, pois de repente se deu conta de que tinha pouco tempo e muito trabalho para construir uma relação harmoniosa com os filhos.

Ao vermos os becos e apartamentos apertados da Barcelona retratada notamos que aqueles locais estão bem próximos de alguns dos pontos turísticos mais visitados do mundo, que esbanjam beleza ao lado da periferia que geralmente o mundo não vê. Essa é a imagem de Uxbal, que sintetiza atitudes repudiáveis seguidas de ações que visam uma espécie de redenção. É possível notar no comportamento do personagem, diante de tantas adversidades acontecendo ao mesmo tempo em sua vida, a heterogeneidade comum na vida de todos nós. Muito mais evidente – e cômodo – é criticar certas atitudes quando estamos sentados na cadeira do cinema; mais delicada é a situação hipotética de nos imaginarmos com a certeza de ter pouquíssimo tempo de vida. Algum detalhe do comportamento atual seria mantido? Qual a imagem que gostaríamos que ficasse marcada e como agiríamos para que isso se concretizasse?

Iñárritu deixa claro, e choca, ao mostrar como é difícil viver tudo o que deixamos pendente e pior ainda aproveitar intensamente os últimos momentos com os filhos sem se abater pela tristeza de saber que o fim está próximo. O que não fica claro é que o tempo é sempre curto e ainda que Uxbal – ou qualquer outro – tivesse a garantia de várias décadas a serem vividas, ao final sempre fica a sensação de falta, o desejo de mais alguns segundos ao menos para algumas palavras não ditas.

(depois da tensão de “Além da Vida” e “Biutiful”, o próximo deverá ser mais leve =)


terça-feira, 14 de setembro de 2010

Como água para chocolate

Laura Esquivel lançou seu romance em 1989 e a própria escritora adaptou a obra para o roteiro do longa dirigido por Alfonso Arau. Desta forma o filme fica mais fiel ao livro, o que neste caso é bastante importante devido ao contexto da obra.

Entre os consagrados escritores latino-americanos vemos o reflexo do machismo histórico que faz predominar o destaque dos homens. Esquivel destaca-se como uma das poucas mulheres escritoras e o próprio romance em questão lança um olhar feminino com predominância de mulheres como personagens, que através do realismo fantástico da obra mostram diversos papéis das mulheres ao longo do enredo.

Da narradora à protagonista acompanhamos quatro gerações da família de Tita (Lumi Cavazos), e se por um lado o eixo da obra é a cozinha – local tradicionalmente relegado às mulheres e onde a personagem demonstra todo seu talento formado desde a infância, que culmina em receitas por vezes com efeitos mágicos – por outro as personagens mantêm distância da dominação masculina. A submissão gira em torno da matriarca, mamãe Elena (Regina Torné), que preza pela manutenção das tradições e da aparência de uma família sem problemas.

No livro é dada maior importância para a Revolução Mexicana, ocorrida no início do século XX, pois no filme apenas algumas cenas fazem menção ao período. O enredo conta com a personagem Gertrudis (Claudette Maillé), uma das filhas de Elena que, com a contribuição involuntária de uma das receitas de Tita, abandona o rancho da família e chega a ser general da guerrilha. De fato as mulheres tiveram destaque pelo envolvimento na causa zapatista e muitas famílias contribuíam com o exército revolucionário de forma voluntária. Como não poderia deixar de ser, dadas as características da personagem, mamãe Elena oferece resistência à revolução, que sob a ótica da matriarca foi reduzida e exposta como algo perigoso – para o tradicionalismo reacionário, de fato foi.

Para Tita o que importava mais que qualquer revolução, era seu amor por Pedro (Marco Leonardi) que desde sua adolescência foi proibido pela tradição de que a filha mais nova de uma família deverá cuidar exclusivamente de sua mãe. A partir da proibição a menina, que aprendeu a cozinhar desde criança com a criada Nacha (Ada Carrasco), teve toda a vida marcada por encontros e desencontros, não apenas com Pedro, mas com os sentimentos que o amor propicia. No livro, ao longo da história de amor, a autora flerta o tempo todo com o senso comum, mas o final sempre inusitado dos acontecimentos surpreende positivamente, refinando a obra.

A transição para a linguagem cinematográfica resultou em um bom trabalho, reorganizando alguns episódios do romance e apresentando em ordem mais simplificada. O diretor explorou ainda os recursos visuais para dar mais valor às sensações provocadas pelas receitas preparadas, e a trilha sonora para expor alguns sentimentos que no livro são bem detalhados. Infelizmente em algumas cenas esses mesmos recursos beiram o dramalhão mexicano que marcam algumas produções televisivas do país, mas não chegam a comprometer o conjunto final.

Mais que uma história de amor conflituosa tanto o livro quanto o filme nos fornecem elementos sobre a história do México, tradições familiares e muitos traços culturais, principalmente pelas receitas que dão água na boca. Além de encantar instiga qualquer um a provar as tortas de natal, as codornas em pétalas de rosa, os chilis nogados, etc.

 

segunda-feira, 29 de março de 2010

Babel

A Babel bíblica é o palco da famosa torre cujo objetivo da construção era chegar ao céu e unir a população. Porém a ideia foi frustrada por Deus que deu línguas diferentes aos povos, fazendo com que a comunicação durante a construção da torre fosse impossibilitada. Já a Babel de Alejandro Gonzáles Iñarritu mostra os problemas da falta de comunicação, que não envolve apenas empecilhos promovidos por diferentes línguas, mas também por choque culturais, intolerância em diversos níveis e o individualismo levado ao extremo, uma característica cada vez mais evidente no mundo moderno.

Um caçador japonês viaja ao Marrocos e presenteia o guia local com um rifle, pelo bom serviço prestado. Sua filha Chieko (Rinko Kikuchi) é surda e muda; uma adolescente que tem as grandes dificuldades da adolescência agravadas pelo problema de comunicação. Sentindo-se rejeitada a garota decide buscar a iniciação sexual, ainda que com algum desconhecido, procura o conforto das drogas para vencer a inibição, mas sempre esbarra em dificuldades que frustram seus planos de inserção social.

No Marrocos os irmãos Ahmed e Yussef (Said Tarchani e Boubker Ait El Caid) saem para brincar com o rifle que o pai comprou para defender a propriedade de chacais. Em meio às inconsequências da infância, disputando para ver quem atira melhor, Yussef dispara contra um ônibus de turistas estrangeiros. Ao ver que a brincadeira havia tomado um rumo inesperado as crianças tentam esconder o rifle e fingir que nada havia acontecido.

Um casal de norte americanos, Richard e Susan (Brad Pitt e Cate Blanchett) deixam os filhos com uma babá mexicana, Amélia (Adriana Barraza), e viaja ao Marrocos contra a vontade de Susan. Eles sentem na pele o que um mal entendido pode acarretar, sofrem com o descaso e o individualismo dos demais turistas de seu grupo e superam os desentendimentos internos do casal após muitos problemas ao longo do filme.

Nos EUA uma imigrante ilegal quer participar do casamento do filho no México. Sem outra opção resolve levar as crianças que estavam sob sua tutela juntamente com seu sobrinho Santiago (Gael García Bernal). Aparentemente não haveria com o que se preocupar, mas eles precisavam voltar para os EUA de forma ilegal.

O filme é bastante complexo, o suficiente para que esta breve abordagem seja bem superficial, mas é com o entrelaçamento dessas histórias que Iñarritu nos mostra peculiaridades interessantes, como diferenças e semelhanças de sociedades distintas e a maneira com que personagens reagem diante de tantas adversidades. Todo o trabalho é mostrado com estereótipos bem marcados que, se por um lado irritam um pouco pela generalização, por outro deixam claro o ponto a ser evidenciado.

Na Babel filmada a linguagem comum a todos os cenários é a violência, não necessariamente a coerção física, mas muitas vezes velada como um modo de dominação. Para a filósofa Hannah Arendt, quando não há diálogo a violência é inevitável para a resolução de conflitos, e no longa a falta da comunicação é demonstrada de várias formas. Notamos a presença de seis idiomas diferentes, a linguagem de sinais de Chieko, abismos culturais que parecem intransponíveis e diante de tantas divergências, um caminho que conflui para o uso da força.

O que haveria de comum entre a sociedade marroquina e a norte americana? A força desmesurada de seus policiais contra a população, tal qual um policial brasileiro tomando uma favela. Apenas os policiais japoneses mostram-se mais preparados, porém não enfrentaram nenhuma situação de tensão para uma comparação mais precisa. Atualmente, após um período de grande tolerância da população diante da violência civil, causada por governos autoritários, que indiretamente incitavam até pensadores como Jean Paul Sartre a apoiar reações severas do povo, esta forma de violência é cada vez mais rechaçada. Em contrapartida há em alguns países, majoritariamente fora da Europa, tolerância e apoio da população às ações enérgicas da polícia, por coibirem um tipo de atitude condenável. Depois de assistir ao filme torna-se ainda mais pertinente um olhar crítico para o modo de agir da polícia, questionando o velho chavão de agir primeiro e perguntar depois.

Outro ponto presente nas entrelinhas, mas que pode gerar grandes questionamentos é o papel da mídia. Evidentemente que a imprensa livre é fundamental e inquestionável em qualquer estado que almeje o bem estar de sua população, entretanto como cobrar o compromisso da mídia com a verdade? Pois é notável o poder dos meios de comunicação de transformar, intencionalmente ou não, um fato isolado em grave incidente diplomático. É uma questão relevante diante da divulgação de materiais preconcebidos sobre temas como armas nucleares, confrontos políticos, atitudes governamentais e tantos outros que circulam por campos extremamente minados.


Não encontrei o trailer legendado, mas acabei gostando, pois entra no clima de Babel =)

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