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terça-feira, 29 de abril de 2014

A teta assustada (La teta asustada)

Muitos consideram este filme, da diretora Claudia Llosa, como a melhor obra do cinema peruano. De fato o filme faz uma boa síntese entre elementos culturais indígenas e a influência europeia, cuja exploração ao longo de todo o período colonial ainda deixa marcas profundas, sobretudo com a absorção de péssimos comportamentos.

Ao longo da história vimos que a cultura de um povo não morre. Por mais que tente ser reprimida, alguns elementos sempre sobrevivem ao tempo, passando com esforço de geração para geração. Da mesma forma, a influência cultural externa é inevitável.

Um elo dessa soma de culturas no filme é a protagonista Fausta (Magaly Solier). Com fortes traços indígenas, a moça é fruto de um estupro – fato revelado através de uma canção em dialeto indígena, por sua mãe, um pouco antes de morrer. Segundo a crença indígena, por ser resultado de uma violência Fausta pegou a doença da ‘teta assustada’, absorvendo o medo através do leite materno.

Entre as várias pragas sociais trazidas pelos europeus para a América Latina, o estupro somou a dominação europeia e a masculina, e segue fazendo inúmeras vítimas até hoje. Muitas vezes o trauma desta violência, como vemos através de Fausta, é insuperável.

Símbolo do oprimido, a moça se porta como um bicho assustado e resignado ao longo de todo o filme, não por timidez, mas por subserviência. Seja diante dos patrões ou diante dos membros da própria família, é com muita dificuldade que ela luta por um enterro digno para sua mãe; levar o corpo até a cidade, que se torna difícil porque o dinheiro da família é consumido pelo casamento da prima de Fausta.

Tanto o casamento quanto o funeral são ritos presentes em praticamente todas as culturas, mas cada uma a seu modo. Fica claro que no filme ambos seguem o padrão católico, não indígena. A noiva tem que descascar uma batata, para mostrar uma habilidade culinária que supostamente atestaria seu preparo para o matrimônio. Além desse machismo latente, ela deseja um longo véu no vestido e penteado igual ao da personagem da novela, que acaba consumindo todo o recurso financeiro da família, obrigando Fausta a conseguir algum emprego para custear o enterro de sua mãe.

Mais uma vez o imperialismo secular é bem construído através das imagens. A personagem deixa o vilarejo onde mora, semelhante a uma favela, com construções concluídas antes de terminadas, para chegar até uma mansão colonial. Toda a imponência da construção já seria suficiente para intimidar alguém tão humilde quanto Fausta, não bastasse isso, a moça ainda é inspecionada como eram os escravos, que por sua vez eram escolhidos feito animais, examinando a qualidade dos dentes e características físicas.

O contato entre empregada doméstica e patrões também parece ter sido padronizado pela América Latina, absorvido de um histórico de escravidão, no qual empregados deviam ter dedicação exclusiva aos patrões. Hoje a escravidão não é mais institucionalizada, portanto deve receber uma camada de verniz para que se esconda sob a aparência de uma relação justa.

Fausta nos mostra uma sociedade em que o medo é onipresente. Em sua família o único laço mais forte era com a mãe, que acaba de falecer; entre os demais parentes a moça é preterida pela prima prestes a se casar; no emprego o medo da patroa a impede de reivindicar até seus direitos básicos; e no trajeto entre casa e emprego – únicos locais que ela frequenta – existe o risco latente de estupros.

Há uma metáfora curiosa em relação à dominação do machismo na sociedade, indicando que Fausta tem uma batata na vagina, para que não seja estuprada como a mãe. Não sei se isso está relacionado com a noiva descascando uma batata para provar suas habilidades, mas me remete ao medo constante e à simbologia dos absurdos que as mulheres têm que fazer, seja no distante vilarejo, seja nos grandes centros urbanos, para evitar um absurdo tão insano quanto o estupro, já que seguimos ensinando as mulheres a como não serem estupradas, ao invés de ensinar os homens a não estuprar.

Mesmo com as particularidades culturais, ‘A teta assustada’ é um retrato geral da América Latina. Explorada por séculos, a população naturalizou a violência a ponto dos oprimidos não desejarem a liberdade, mas ansiarem pela possibilidade de passarem para o lado opressor. Se não é possível atingir o topo da pirâmide social, outras formas de dominação cumprem a falsa ideia de poder. A mais comum é o estupro.


terça-feira, 5 de outubro de 2010

Pantaleão e as visitadoras (Pantaleón y las visitadoras)

Em seu romance Mario Vargas Llosa utiliza de muito humor para, através de um serviço bastante inusitado dentro do exercito peruano, criticar a instituição e aspectos sociais. A primeira transposição da obra para o cinema foi feita pelo próprio autor em 1975, mas o próprio Llosa admitiu a inexperiência e o resultado insatisfatório da obra. Em 1999 Francisco Lombardi apresenta a competente adaptação, que mantém os aspectos centrais do livro mesmo sem contar com os recursos de linguagem adotados pelo escritor. Talvez a única grande mudança seja a omissão do enredo paralelo sobre os irmãos da arca, através do qual o autor mostra a síntese de rituais tribais e elementos católicos.

A maior parte do livro é narrada através de cartas, documentos oficiais do exército, reportagens e narrativas que descrevem detalhadamente, com evidente parcialidade por parte do personagem autor, que dá veracidade ao relato. Complementando os documentos Llosa nos apresenta diálogos intercalados, dando um ritmo diferente, dinâmico e real para a narrativa.

O tom de humor, mais intenso no livro que no filme pelas descrições mais detalhadas, fica por conta do inusitado, já que para conter a onda de estupros na cidade de Iquitos por parte dos soldados o exército escolhe o mais que metódico capitão Pantaleão Pantoja (Salvador del Solar) para coordenar um serviço de visitadoras para os soldados, eufemismo para as prostitutas contratadas pelo exército para sanar as necessidades dos militares. Assim esses dois estereótipos aparentemente tão distintos se aproximam, porém mantendo as respectivas características principais.

O capitão Pantoja tem o comportamento exemplar e passa a imagem que o exército cria sobre a instituição para a sociedade, ou seja, disciplinado, obstinado e sem vícios. Tudo que o militar sabia fazer era obedecer a ordens, de forma brilhante e com dedicação total, que a princípio deixa qualquer superior do exército satisfeito. Talvez o problema do capitão fosse sua falta de senso crítico – que em certo nível é indispensável aos militares – a ponto de não diferenciar a essência da aparência, ou seja, de não perceber que por trás da aparente seriedade e responsabilidade militar há a necessidade de agir sorrateiramente, seja para manter um serviço de visitadoras, como satirizado por Llosa, seja para tomar o poder o estado, como a América Latina viu na segunda metade do século XX e, por incrível que pareça, já presenciou por três vezes em apenas dez anos deste século, com a tentativa frustrada na Venezuela em 2002, a mais eficaz em Honduras sete anos mais tarde e a atual ofensiva no Equador, que ainda é cedo para sabermos as consequências.

Os dois pontos mais marcantes da obra ficam por conta da crítica à instituição militar, incapaz de solucionar problemas cujos interesses não sejam os do próprio exército, sem medir esforços ou considerar consequências de seus atos; e o machismo latente da sociedade, expresso também pelos civis, que por um lado se apóiam no moralismo para criticar o serviço de visitadoras e por outro reivindicam o mesmo serviço, na qualidade de reservistas do contingente militar.

A síntese desses dois pontos fica por conta da relação entre Pantoja e Colombiana (Angie Cepeda), que no livro era conhecida como Brasileira, por ter vivido em Manaus. Por mais formal que o militar possa ser ele deve lidar com os próprios sentimentos, e o faz de forma bastante curiosa. Faz uso de sua patente e tenta manter qualquer tipo de atitude contrária às regras em segredo, por outro lado é extremamente penoso lidar com sentimentos de posse e ciúme.

Um ponto em que o filme se destaca em relação ao livro é a cena em que visitadoras são violentadas. Sob o discurso de proteção às mulheres da cidade, pouco importa o que aconteça nos quarteis, desde que as aparências sejam mantidas e que os escândalos sejam encobertos de forma eficiente, sem abalar a estrutura machista e conservadora, como já nos indicava Chico Buarque em 1979 com “Geni e o Zepelin”, que pelo conteúdo poderia tranquilamente servir de trilha sonora para a referida cena.

Já se passaram quase quarenta anos desde o lançamento do livro, trinta desde a polêmica música de Chico e dez desde o lançamento da adaptação do livro para o cinema. Muitas mudanças em relação ao machismo e a postura muitas vezes patética das forças militares?

 
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