terça-feira, 18 de junho de 2013

Pixo

João Wainer e Roberto Oliveira levam às telas um tema geralmente relegado à marginalidade. A pichação costuma ser tão reduzida ao vandalismo que quem não tem contato com esta realidade tem até dificuldade de enxergar qualquer coisa diferente de uma violência.

Porém o cinema tem como uma de suas funções levar aos que assistem uma realidade diferente, sem que haja a necessidade de vivenciar o que é visto. Assim os diretores dão voz àqueles que costumam ter como única forma de expressão os muros e prédios a serem pichados.

Com origem na necessidade de um canal de expressão política, as primeiras pichações a ganharem destaque foram as realizadas durante a repressão da ditadura militar. Uma forma barata e eficiente de expressar o descontentamento com o regime, ainda que tivesse a necessidade de ser uma mensagem concisa e naturalmente efêmera. Aos poucos a ideia de se expressar em muros extrapolou o contexto político nacional, chegando às periferias e, detalhe fundamental, desenvolvendo sua própria estética.

Talvez esse seja um ponto central que permeia o filme, portanto o tema. É muito fácil pegarmos uma ação criminalizada desde sua origem, pois os militares evidentemente já desqualificavam essas ações, e taxarmos de vandalismo, dizer que não é arte e que não deveria existir. No entanto, para quem está imerso nesta cultura, o sentido é bem diferente. Conforme o filme mostra claramente, um dos jovens estudou até a oitava série e mal consegue ler palavras simples em letra de forma, mas decifra com a facilidade com que você está lendo esse texto as letras codificadas do pixo.

Quanto ao argumento mais que frequente de que o pixo deixa a cidade feia, primeiramente uma cidade como São Paulo, com seus prédios abandonados e paredes sujas, não precisa de ajuda para ficar feia, além disso nosso padrão estético também é construído de acordo com nossas experiências. Acostumados com a imposição da estética burguesa, ouvimos desde crianças que as obras expostas em um museu são belas, assim nos deparamos com obras cubistas ou do expressionismo abstrato e dizemos serem bonitas, ainda que muitas vezes não conseguimos compreender seu sentido.

Se um artista, socialmente reconhecido como tal, utiliza telas ou cria formas diferentes para expressar sua criatividade, os pichadores veem na cidade a forma de expressar uma realidade com a qual não costumamos ter acesso. É cômodo morar em um bairro nobre e desqualificar os pichadores e seus trabalhos, porém a força desta intervenção vem de periferias carentes de formas alternativas de cultura, de outras formas de expressão e mesmo educação institucional.

Enquanto desqualificamos o trabalho dos pichadores, o documentário nos mostra que São Paulo é uma atração turística para estrangeiros que visitam a cidade especificamente para ver os prédios pichados, já que a cidade é a única à oferecer esta arte de forma tão intensa e rica.

E esses artistas, vândalos para alguns, mas que de uma forma de outra atraem turistas para a cidade, sequer tem um retorno concreto disso. Escalar um prédio sem nenhum equipamento de segurança, chegar perto da rede de alta tensão, “rodar” nas mãos da polícia. Tudo isso tem um propósito maior do que somente vandalismo. É um desafio, busca reconhecimento, forma de expressão. Motivações e trabalhos que costumam ser incompreensíveis para quem não conhece.

Antecipando a crítica pouco criativa, mas inevitável, eu não gostaria de ter minha casa pichada. Tenho minhas opiniões pessoais em relação ao uso da pichação, mas o reducionismo de taxar todo o movimento de vandalismo é ineficiente. Tão ineficiente quanto a ação da polícia ao deter os pichadores. Agredir, humilhar, pintar uma pessoa que, mesmo inconscientemente está buscando uma fuga da realidade dura que enfrenta é sem dúvida uma forma trágica de tratar o problema, como costuma ser a especialidade da polícia paulistana.

Apoiar a agressão aos pichadores sem compreender suas causas é tolerar a intervenção urbana igualmente violenta, tanto no descaso urbanístico por parte dos governantes quanto na ação publicitária massiva da maioria das empresas privadas, que tiveram uma pequena regulamentação com a lei cidade limpa, mas já começam a driblar a proibição em pontos de ônibus “patrocinados”.

Da mesma forma que o documentário, o objetivo aqui não é concluir se a pichação é arte ou não, até porque o caráter transgressor e marginalizado está em sua essência e é desejado pelos pichadores, mas é inegável que se trata de uma expressão cultural, sendo que nesta qualidade, deve ser mais compreendida do que o reducionismo de vandalismo permite.


quarta-feira, 12 de junho de 2013

Terapia de Risco (Side Effects)

Se por um lado o homem vem desenvolvendo a medicina há milênios, com registro de cirurgias complexas desde a civilização egípcia, há mais de cinco mil anos, por outro muitos afirmam que ainda estamos engatinhando no que diz respeito à cura. De fato alguns procedimentos ainda são extremamente invasivos, outros agressivos ou pior, empíricos, com bases quase intuitivas, como alguns tratamentos psiquiátricos.

O diretor Steven Soderbergh aborda esse aspecto incluindo os obstáculos da medicina contemporânea, que além das dificuldades biológicas deve driblar os problemas criados pelo homem. Entre eles a especulação financeira dos grandes laboratórios, a indústria de seguros, os processos, além de uma característica que não entra no filme – talvez brasileira demais – a máfia dos planos de saúde.

Não são raras as vezes que um médico acaba sendo peça chave em um julgamento, assim Dr. Jonathan Banks (Jude Law). Frequentemente só ele pode dar um veredicto sobre as condições clínicas do réu em determinado crime, mas há muitas coisas por trás disso. Tudo fica ainda mais complexo quando se trata de um paciente com distúrbios psicológicos.

Quem dera houvesse um exame de sangue, ou algo do tipo, que indicasse os níveis ideais de serotonina, dopamina e outros neurotransmissores, dentro de um espectro pré-definido, como a diabetes ou colesterol, entretanto para os antidepressivos, médico e paciente podem levar muito tempo testando doses e princípios ativos, até chegar ao medicamento ideal.

Dr. Banks faz o procedimento padrão de testar um medicamento. Seria desta forma até mesmo em uma sociedade ideal, sem grandes laboratórios patrocinando médicos para aumentar a venda dos remédios, imagine em uma sociedade cada vez mais dependente da necessidade de medicamentos, que assimilou a ideia de tomar antidepressivos como se fosse aspirina.

Por outro lado há o paciente com um distúrbio extremamente particular no corpo. Há quem encare o cérebro como qualquer outro órgão, ou seja, se sofre de alguma patologia, esta pode ser diagnosticada e tratada. Porém é difícil desconsiderar a particularidade de ser um órgão imensamente influenciado por fatores externos. Além das características físicas, existe a mente, a abstração de males que se por um lado são patológicos, por outro não são visíveis e muitas vezes demandam tratamento igualmente abstrato, como a terapia sem medicação.

Caímos em outro ponto delicado: quais traços de comportamento devem ser encarados como patológicos e, portanto, tratados? No filme Emily Hawkins (Rooney Mara) passa por um período difícil. Seu marido acaba de sair da prisão e isso não foi suficiente para por fim à sua depressão e ansiedade. Atualmente, sobretudo em grandes cidades, com o bombardeio de informações, pressões externas, cobranças e ritmo de vida frenético, dá para dizer que aqueles que passarem pela vida sem um período de ansiedade ou até mesmo depressão, formam um traço estatístico irrelevante perto da massa que terá que lidar com esses problemas uma vez ou outra.

Talvez Emily não precisasse de remédios, um tratamento baseado em terapia seria suficiente. Porém o histórico de acompanhamento psiquiátrico – ela já havia feito tratamento com a Dra. Victoria Siebert (Catherine Zeta-Jones) – pesou na hora de testar um novo medicamento.

Não tem como não mencionar mais controvérsias. Por mais que testes de novas drogas sejam feitos em animais (o que em si já desagrada muita gente) é inevitável que em uma etapa final o teste seja em humanos. Como toda droga causa efeito colateral, as bulas dos remédios trazem uma lista enorme e assustadora de adversidades que o produto pode provocar, reduzindo assim as chances de um processo por parte dos pacientes.

Se a hipótese de mover processos é viável, muitas vezes coibida apenas pelo poder econômico de grandes laboratórios frente aos pacientes, por outro lado somos engenhosos em encontrar brechas que compliquem ainda mais uma delicada estrutura, como a relatada relação entre médicos, pacientes, laboratórios e medicamentos.

Diante das peças que não se encaixam na história vivida pelo Dr. Banks, o personagem partirá para uma interessante história de detetive, focada na intuição e cruzamento de informações. Não vale a pena detalhar o final para não estragar nenhuma surpresa, mas o fato é que o enredo do filme expõe fraquezas de um sistema.

Não faltam exemplos na vida real em que médicos e, sobretudo, pacientes são prejudicados de alguma forma. Impossível saber quantos casos sequer são descobertos, porém um fato é evidente: os laboratórios, salvo raríssimas exceções, saem impunes.


terça-feira, 4 de junho de 2013

Elena Undone

Neste longa a diretora Nicole Conn mostra passo a passo o surgimento de uma paixão. Talvez o desenvolvimento do sentimento no filme fosse lento, não fosse a necessidade de desconstruir certas premissas antes de chegar ao ápice do enredo.

Primeiro somos apresentados à Elena (Necar Zadegan) e todo o conservadorismo que a cerca. Vinda de uma tradicional família indiana, a protagonista se casou para tentar fugir do conservadorismo e chega aos quinze anos de casada, com um pastor como marido e um filho adolescente, frequentando cultos que falam sobre encontrar o amor perfeito o mais cedo possível.

Seguindo o caminho desta vida morna, Elena conhece Peyton (Traci Dinwiddie). A afinidade entre as duas proporcionou o início de uma forte amizade, que não alterou nada na vida de Elena, apenas trouxe a tona pontos que ela ou desconhecia ou se esforçava em esconder. Passado o impacto ao descobrir que Peyton é lésbica, a protagonista passou a encarar o assunto com a naturalidade que só o preconceito impede.

É bastante previsível logo no início do filme que as duas irão se apaixonar, o fato é que se Elena tivesse encontrado outro homem e sentisse uma atração forte o bastante para abalar seu frágil relacionamento, todo o envolvimento poderia se desenvolver em uma ou duas cenas, para que a protagonista superasse as dúvidas e hesitações naturais e tomasse coragem para mergulhar em um novo amor.

O que chama a atenção no trabalho de Nicole Conn é a projeção de vários estereótipos nos personagens, que são desconstruídos com empatia e naturalidade. Diante da existência do preconceito, é mais viável identificar alguns padrões de comportamento, que são bem distintos entre si, do que tentar enfrentar a todos da mesma forma.

Vemos, por exemplo, que a hesitação inicial de Elena acontece pela falta de experiência. É compreensível que uma pessoa crescida em meio a valores extremamente tradicionais e casada com um homem machista e preconceituoso não se sinta a vontade diante de uma situação que sempre foi indicada como errada. Apesar disso a personagem não se mostra intolerante em nenhum momento.

É bem diferente de seu marido, o pastor Barry (Gary Weeks), que simbolizando todo o conservadorismo prega aos seus fiéis o tradicional discurso sem conteúdo sobre a tradição da família, ignorando, por exemplo, o fato de a própria igreja protestante ter surgido graças às divergências com dogmas católicos, que entre outras coisas proíbem o casamento dos sacerdotes.

A princípio Peyton é extremamente racional e centrada. Experiente, não quer se entregar a um sentimento que parece ter tudo para dar errado. De fato, se a mudança de comportamento de ambas fosse abrupta, seria um sentimento forçado e não seria tão bem aceito por quem assiste.

A naturalidade com que Elena passa a encarar a possibilidade de um relacionamento esbarra nas dificuldades evidentes de ter por outro lado uma família estruturada, a pressão social em relação ao impacto que uma separação gera nos filhos – independente da idade –, a tensão de informar ao marido que o casamento já não existe, etc.

E por parte de Barry, a reação foi a mais evidente, ainda que ridícula, ou seja, tentar encobrir as próprias falhas culpando as supostas más influências sofridas pela esposa, no caso por parte de Peyton. Muitas vezes a insegurança diante das próprias atitudes é defendida, mesmo que inconscientemente, através da desconstrução do outro. Desta forma, pelos outros estarem errados, a pessoa justifica (erroneamente) os próprios atos, que nem chegam a ser reconhecidos como preconceito.

A forma mais natural que o cinema tem para indicar que não há nada de errado com o enredo do filme, e seu caráter inusitado se dá pelo preconceito histórico, não por interdições biológicas, é evidenciar os percalços das duas personagens, que são rigorosamente os mesmos que seriam enfrentados caso no lugar de Peyton, Elena tivesse conhecido um homem. É evidente que existem nuances comportamentais que diferenciam as personagens, mas em essência, o filme consegue deixar claro que o estranhamento em relação ao casal se dá pelo preconceito, não pela relação ser homo afetiva.

Para um público específico, que já tenha superado preconceitos de gênero e sabe encarar com naturalidade situações que não demandam nenhuma reação adversa, o filme é um romance interessante, bem filmado, cujo enredo não traz grandes revelações, mas é no aspecto didático que Elena Undone ganha destaque, por cativar aqueles que assistem, desfazendo aos poucos o estranhamento, que pode dar lugar a uma visão de mundo menos preconceituosa.


terça-feira, 28 de maio de 2013

A Caça (Jagten)

Neste longa o diretor dinamarquês Thomas Vinterberg traz um tema inquietante, abordado de forma perturbadora. Somos apresentados a uma pequena comunidade, na qual todos são muito amigos e unidos. Lucas (Mads Mikkelsen) trabalha em uma creche e é querido pelas crianças, muitas delas filhos de seus amigos.

Na vida raramente as coisas se resolvem sozinhas. Geralmente quando sentamos e cruzamos os braços as coisas boas não batem à nossa porta, nem as dificuldades são superadas de alguma forma com a qual não precisamos nos preocupar. Já com os problemas é bem diferente. Sem termos que fazer nada para isso, de repente nossa vida pode virar de cabeça para baixo, como acontece com a vida de Lucas.

Tudo corre normalmente até que a pequena Klara (Annika Wedderkopp), de apenas cinco anos, diz à diretora da creche que o professor havia lhe mostrado seu órgão genital. O fato não ocorreu, na verdade a menina estava apenas frustrada por ter sido repreendida e utilizou um conteúdo que ouviu do irmão mais velho. A partir disso, o desenrolar da história torna-se muito atrativa.

Assistimos à história no conforto do cinema, ou no sofá de casa, na qualidade de expectadores oniscientes que, por sabermos todos os fatos, temos toda a capacidade de discernir o que deve e o que não deve ser feito, mas para compreender melhor o papel de cada um no filme, são necessárias algumas abstrações.

Para a diretora da creche, a única prova é o relato confuso e por vezes incoerente de uma menina. O problema é que em casos reais de abusos, sobretudo em relação a uma vítima tão nova, os relatos são de fato confusos, imprecisos e as versões podem sofrer alterações involuntárias, sem que a vítima esteja mentindo. Trata-se apenas de um mecanismo de defesa, com o cérebro tentando esquecer um trauma. Era mesmo dever da profissional apurar o caso e tentar investigar o que aconteceu, não dá para dizer que ela estava errada ao fazer isso.

Theo (Thomas Bo Larsen) era um grande amigo de Lucas e também pai de Klara. Por um lado ele confia no amigo, com quem convive há anos e nunca foi motivo de suspeitas, por outro há o amor e confiança muitas vezes incondicionais dos pais para com os filhos, que chega a impedir a percepção de erros gritantes das crianças, que dirá neste caso tão confuso, no qual não há provas concretas. Por mais que haja confiança no amigo, não tem como não pairar sobre Theo a hipótese da acusação ser verdadeira.

Em relação à menina, há o consenso, falso, de que crianças não mentem. Podem não ter a malícia de articular mentiras para atingir uma grande meta, mas é notório que tentam por a culpa de seus erros em outras pessoas e fantasiam muitos episódios vividos. Não é uma questão de serem crianças boas ou más, e sim um comportamento recorrente, que nos põe em dúvida quanto ao que é realmente a verdade. Quantas vezes não acreditamos lembrar claramente de um fato cujo relato entra em conflito com o de outra pessoa? Ou acreditamos ter memorizado fielmente a cena de um filme e ao rever notamos estar inegavelmente equivocados? Portanto o que esperar da confusão estabelecida em Klara, com todos insistindo que o professor de quem ela tanto gostava havia feito coisas horríveis sem que ela possa corrigir?

O único que não passa pela angústia da dúvida é Lucas. Em compensação, sofre uma das piores sensações, de ser acusado com veemência de uma coisa terrível que não fez, não tendo como provar a própria inocência. Impossível saber quantas condenações fora do universo cinematográfico ocorreram nessas condições. Nos presídio há poucos réus confessos. A maioria afirma ter sido condenado por engano, a maioria mente ao afirmar isso, mas no meio de todas as mentiras, em celas ou corredores da morte, podem haver vários Lucas.

Temos a tendência de condenar no primeiro impacto. Somos implacáveis, por vezes até sanguinários e cruéis. A população retratada no filme estava à beira de um linchamento, vendo de fora temos condições de perceber a injustiça, mas dentro do problema, tudo fica mais nebuloso e complexo, principalmente em relação a uma hipótese de crime tão repulsivo como a pedofilia.

O tema desta obra de ficção é tão plausível que se assemelha muito ao documentário Na Captura dos Friedmans, do diretor Michael Moore. Nos deixa a reflexão, por um lado não há hipótese de sermos complacentes com a pedofilia ou outros tipos de crime, por outro devemos tomar muito cuidado ao estarmos convictos da aplicação de uma pena capital.


terça-feira, 21 de maio de 2013

O Abismo Prateado


Quando você me quiser rever 
Já vai me encontrar refeita, pode crer
Olhos nos olhos, quero ver o que você faz
Ao sentir que sem você eu passo bem demais

O diretor Karim Aïnouz se inspirou na canção “Olhos nos olhos”, de Chico Buarque, para mais um filme intimista e poético. Focado na interpretação de Alessandra Negrini para a protagonista Violeta, muitas vezes os personagens interagem utilizando várias formas de expressão, como olhares, gestos, expressões faciais, etc. relegando às palavras a função de preencher o que não pode ser dito de outra forma.

Seguindo a narrativa da canção, no filme vemos a atitude bastante covarde de Djalma (Otto Jr.), que para terminar o casamento com Violeta deixa apenas um recado no celular, deixando a casa, esposa e filho. Ninguém quer um casamento que caia na rotina, sem surpresas ou novidades, ao mesmo tempo em que ninguém quer esta rotina quebrada por um tsunami repentino e devastador.

Relacionamentos não são sentenças imutáveis. Foi, sem deixar saudades, o tempo que o divórcio era proibido por lei. Entretanto usar a desculpa de que é melhor sumir do que resolver as pendências em uma conversa adulta geralmente camufla as próprias inseguranças. Afirmamos que sumimos pensando em aliviar a dor do outro para não encararmos que em pouco tempo seremos apenas um passado superado.

Com esse plano de fundo, seguindo o ritmo da música, Violeta a princípio se vê perdida, sem referências, tentando se segurar em um passado que já não existe e forçar um futuro em conjunto com quem já não compartilhava as mesmas ambições. Em meio a esse período de transição inevitavelmente variável, cuja duração depende muito de cada pessoa, a protagonista tenta se livrar da angústia de várias formas.

Sair de casa (cada detalhe lembraria o, agora, ex-marido), tentar pegar um avião para um último encontro (doce ilusão que isso resolveria as coisas), ir para uma boate para beber e dançar (quem sabe um pouco de álcool e um pouco de endorfina não alivie o peso). Até que, já perto do amanhecer, Violeta chega à orla de Copacabana.

Não faz muito tempo tive a sorte de passar uma noite vagando pela charmosa zona sul carioca, vendo os primeiros raios de sol na princesinha do mar. Uma experiência quase mística, que dá uma sensação de alívio e renovação, como se a brisa que vem do mar trazendo o som calmo das ondas nos mostrasse um refúgio, um lugar tranquilo, a partir do qual pudéssemos recomeçar o que quer que seja.

É através da protagonista que o diretor lança um olhar de poeta sobre os fatos cotidianos, do início de tarde fatídico em que o recado no celular é ouvido, até o amanhecer do dia seguinte. Olhando com atenção para tudo que está em seu redor Violeta processa as informações e trabalha tudo dentro de seu novo cotidiano, utilizando o difícil e doloroso momento pelo qual está passando para poder traduzir toda a angústia em aprendizagem.

Não é um filme melodramático, que apela para o choro do espectador pelo sofrimento exagerado da heroína. A piedade é substituída pela força de passar por um período crítico, com a capacidade que todos têm – mas nem todos utilizam – de superar o que parecia o fim. No aparente abismo Violeta enxerga a luz através de pequenos detalhes que juntos formam seu novo cotidiano, sua nova forma de olhar para o mundo, que como já cantava Chico Buarque, pode se mostrar melhor que antes.

Uma das metáforas para a nova realidade da protagonista é exposta através do encontro com a pequena Gabriela Pereira e com Nassir (Thiago Martins). A dupla pode ser interpretada como o contato com uma realidade mais difícil, sobretudo quando comparada à vida da dentista, que mora na zona sul do Rio e apenas passa por uma separação, mas aqui também o ritmo do filme foge do óbvio e aprofunda a relação entre as partes.

Há uma troca de experiência entre os personagens que é benéfica para todos. Cada um com seus traumas e dificuldades, mostrando ao outro alternativas para a vida, sem a benevolência piegas de quem quer mostrar a emoção de forma vazia. Não fosse desta forma, estria justificada a atitude patética do ex-marido, de terminar tudo com uma fuga. Há formas mais interessantes de transformar o passado em lembranças que podem até ser boas, mas, além disso, constituem nosso presente – podendo nos tornar pessoas melhores se bem trabalhadas.



terça-feira, 7 de maio de 2013

Doméstica


O diretor Fernando Meirelles já havia filmado o longa Domésticas, abordando de forma ficcional e bem humorada o cotidiano dessas profissionais. Agora é Gabriel Mascaro quem dirige o documentário Doméstica, que mesmo abordando muitos pontos em comum com longa anterior – não teria como ser diferente já que o tema é o mesmo – ganha particularidades por contar com filmagens e entrevistas que não foram realizadas pelo diretor.

As câmeras foram entregues a sete jovens, que filmaram o cotidiano da casa, dando ênfase ao que considerassem relevante na relação da família com a empregada doméstica – ou empregado doméstico, em uma das casas. Sem controle sobre o que seria registrado, o diretor montou o filme a partir do material que recebeu, de forma que a maioria das críticas fica nas entrelinhas do filme. Não chegam a ser explícitas, pois se escondem em meio à naturalização da exploração do trabalho doméstico.

É bastante comum entre as famílias a confissão de que não conheciam certos aspectos das profissionais que cuidam do lar, nunca tinham parado para uma conversa na qual a doméstica falasse sobre a própria vida ou sequer tinham visto a realização de determinado serviço.

O enfoque geral das famílias é a tentativa mais comum de tentar suavizar a própria imagem afirmando que a empregada é como se fosse da família, porém as supostas provas para corroborar essa bobagem chegam a ser cômicas. Uma das famílias, judia, chama a empregada para participar de um ritual religioso junto à mesa. De fato é um interessante intercâmbio cultural, que faz com que a empregada aprenda novos costumes, mas será que ela teria liberdade de propor algum rito de sua religião na mesa, ou deve apenas seguir uma religião diferente da sua?

Pelo mesmo caminho uma das adolescentes deixa claro, e com muito orgulho, que a empregada é “praticamente da família”, tanto que se senta à mesa com eles para a refeição (como se isso fosse um grande favor). Porém esse membro da família dorme no quartinho dos fundos, separado da casa, e entre todos os integrantes da família a doméstica é sempre a responsável por preparar a refeição e lavar os pratos.

Chega a ser notável certa inocência na exploração que grita na tela o tempo todo. Quando a patroa se emociona ao falar do bebê da empregada, que novamente foi amparada “como se fosse uma filha”, não percebe que ela foi deixada sozinha no hospital para o parto, pois a patroa não pode ficar (maneira fria de tratar uma filha). A ideia aqui não é insinuar que a mulher deveria tratar a empregada efetivamente como filha, mas esconder-se atrás desse paradigma apenas atenua a relação de exploração.

E a naturalização de certos absurdos não se restringe às telas. Em uma pré-estreia com sala lotada, em São Paulo, a plateia gargalhava com uma cena: a empregada, uma negra bem acima do peso, faz verdadeiras acrobacias para passar pano embaixo do sofá (como pode ser conferido no trailer em 1:20), posteriormente a mesma é filmada dormindo ajoelhada sobre o sofá, arrancando risos da jovem patroa que está filmando e da plateia. Não é um riso inocente de uma cena cômica, mas um riso de alguém que sofre para satisfazer necessidades alheias, de alguém que trabalha à exaustão, chegando a dormir em uma posição extremamente desconfortável, tamanho o cansaço.

A crítica à forma como as empregadas são tratadas não propõe que a solução parta dos patrões, individualmente. É evidente que as domésticas devem ser bem tratadas, mas isso é o básico de uma sociedade que pretende ser civilizada. O fato é que a sociedade brasileira vem forçando a existência dessa relação de trabalho desde seus primórdios. Quando pensamos em trabalhadores de um escritório falamos em direitos trabalhistas, a Folha de São Paulo, ao noticiar a PEC 66/2012 em 27/03/2013 falou em “benefícios do empregado doméstico".

Há quem diga que a exploração não tem fundamento, já que nos últimos anos, com a economia aquecida, as empregadas estão cobrando cada vez mais caro, inviabilizando alguns serviços. De fato, ultimamente essas profissionais estão mais valorizadas, porém é uma condição totalmente vinculada à boa fase da economia, pois o pouco excedente de renda é aplicado em educação particular de baixa qualidade, planos de saúde de fachada, bens supérfluos como celulares de última geração e a estrutura de exploração continua, apenas seguindo caminhos paralelos.

Sem um sistema que tribute grandes fortunas para investir em serviços públicos de qualidade, a ascensão das classes baixas é momentânea e o sonho do oprimido é passar ao lado do opressor, como vimos no documentário, na casa de uma empregada que contrata uma doméstica para a própria casa.

Utilizando dois exemplos lúdicos, também do cinema, no filme Amor vemos o casal de idosos cuidando sozinhos da casa, mesmo com muito dinheiro são eles que preparam as refeições, arrumam a casa e fazem limpeza. Em Elles podemos ver Juliette Binoche interpretando uma profissional elegante e bem sucedida, que além de trabalhar fora ainda cuida da casa e cozinha para um marido patético e machista. Em contrapartida podemos pensar no filme de Gabriel Mascaro mostrando uma das famílias cuja empregada cresceu junto com a patroa, pois sua mãe era empregada da família. Depois de alguns anos os destinos de ambas voltaram a se cruzar, o traço em comum de uma foi seguir a profissão da mãe e da outra, que pode escolher qual caminho seguir, foi manter a exploração do trabalho doméstico.

É curioso notar que certas camadas sociais recorrem ao exemplo de países de primeiro mundo sempre que querem ratificar algum mau exemplo de nossa sociedade, mas fecham os olhos para tudo que seja voltado à equidade social.


terça-feira, 23 de abril de 2013

Margaret Mee e a Flor da Lua


A ilustração botânica acompanhou desde cedo a história do Brasil. A natureza exuberante, primeiramente relatada em longos textos à corte portuguesa, passou a ser retratada por autores como Frans Post e Albert Eckhout. Não são poucos os pintores inspirados pela beleza das paisagens naturais brasileiras, mas com o tempo o viés científico ganhou espaço entre as pinturas.

Já na metade do século XX recebemos a visita da britânica Margaret Mee, artista plástica que realizou mais de 400 ilustrações de nossa flora. Homenageada pela escola de samba Beija-flor, em 1994, agora Margaret Mee ganha as telas através da obra da diretora Malu de Martino.

As duas artistas têm em comum o fato de não se aterem ao caráter técnico da ilustração, estendendo o potencial da obra para o alerta aos impactos ambientais que flora vem sofrendo, sobretudo na região amazônica por conta da criação de gado e plantação de soja.

Alguns trabalhos da britânica foram muito bem documentados na época, com fotos e filmagens, além de entrevistas nas quais ela relata um pouco de seu trabalho na selva, incluindo alguns riscos como a intimidação de grileiros. Esse material enriquece o documentário, que é complementado por filmagens contemporâneas coletadas na Amazônia e Rio de Janeiro, onde a artista morou. Tanto as entrevistas com pessoas que trabalharam diretamente com Margaret quanto as paisagens amazônicas são muito reveladoras.

É através dos relatos dos amigos que confirmamos a impressão geral de que pouco mudou desde a década de 50, sendo que muitas situações se agravaram com o avanço do agronegócio. A região que tem potencial para ser o maior centro de pesquisas biológicas do mundo, além de um gigantesco polo turístico que beneficiaria toda a população, mas acaba gerando capital para poucos latifundiários, que exploram a região de forma predatória, comprometendo o equilíbrio ecológico.

E as imagens encantadoras da região amazônica, sobretudo com a alta resolução das filmagens atuais, confirmam o que diz um dos britânicos entrevistados: muitas vezes os trabalhos que retratam a Amazônia não são esclarecedores apenas para estrangeiros, mas também para os próprios brasileiros, que nem sempre conhecem a região como deveriam.

O isolamento da região mesmo entre os brasileiros é benéfico aos exploradores, já que quanto menor a notoriedade, maior a liberdade para desmatar impunemente. Desta forma o trabalho de Margaret Mee divulga um pouco da riqueza desconhecida que ocupa boa parte de nosso território, e o documentário de Malu de Martino resgata tanto a obra quanto a ideologia da britânica.

Ao refazer os passos do último trabalho de Mee, que fazia questão de pintar a Flor da Lua, quando seu corpo já estava debilitado, mas a obstinação continuava intacta, vemos as dificuldades do trabalho, advindas de todos os lugares. O acesso difícil, a precisão de uma flor que desabrocha por apenas uma noite e as adversidades climáticas são apenas algumas dificuldades agravadas pela ação do homem, intervindo diretamente, como a intimidação de posseiros, já citada, ou indiretamente com ações ilegais que causam desequilíbrio ambiental.

Os esforços, tanto da pintora quanto da cineasta, valeram a pena por produzirem trabalhos indispensáveis. Podem ser admirados por leigos, pela beleza intrínseca às obras que envolvem a floresta amazônica, contemplados pela riqueza técnica contida em cada passo e ainda servirem de exemplo por levantarem uma bandeira que fica cada vez mais urgente em todo o planeta, já que os impactos ambientais têm efeitos gritantes.

O corpo franzino e a aparência frágil de Margaret Mee guardavam a iniciativa e a coragem que muitas vezes falta diante de algo que não está certo. Claro que enfrentar posseiros armados e outras situações narradas no filme podem ser encaradas como imprudências que deve ser evitadas, mas como já previa a pintora, sua obra ultrapassa sua própria existência, e ainda servirá de exemplo durante muito tempo.

A Flor da Lua, que já encanta pelo nome, guiou a última expedição de Margaret pela Amazônia, assim como o documentário sobre seu trabalho, mas toda a beleza da flor ainda é apenas uma parte da importância de sua obra. Vale a pena conferir o filme, que torna irresistível a vontade de saber um pouco mais sobre essa britânica que parece ter encontrado no Brasil uma ótima forma de canalizar seu talento.


quarta-feira, 17 de abril de 2013

Depois de Lúcia (Después de Lucía)


Este longa mexicano, do diretor Michel Franco, aborda um assunto antigo que vem ganhando notoriedade recentemente, o bullying, agravado pelo uso de novas tecnologias, que podem causar uma série de transtornos, conforme vemos no cinema e fora dele.

A protagonista Alejandra (Tessa Ia), uma jovem de 15 anos, muda-se de uma cidade do interior para a Cidade do México, juntamente com Roberto (Gonzalo Vega Jr.), seu pai, pois ambos esperam que a mudança ajude a superar a morte de Lucía, mãe de Alejandra.

Uma mudança em condições normais já demanda adaptação, que nem sempre é fácil. Pai e filha têm que lidar ainda com a mudança inerente na estrutura da família e Alejandra, em meio à fase conturbada da adolescência, se esforça para superar a timidez e o luto através da aproximação de novos amigos. Como se a vida já não estivesse difícil o suficiente para a menina, ela vai para a cama com o namorado, que filma tudo e o vídeo, de alguma forma, é divulgado entre os amigos.

Na via de mão dupla entre a vida e a arte, chama atenção a semelhança da história retratada por Franco com o triste caso real de Amanda Todd, uma canadense da mesma idade de Alejandra, que antes de se enforcar postou um vídeo angustiante no Youtube, explicando sua história. Apesar de o tema central ser o bullying, as conclusões que podemos tirar extrapolam esses limites.

1) Tecnologias recentes permitem grande interação entre as pessoas e o registro fácil de momentos marcantes. O imprevisível são os desdobramentos de como essa tecnologia será usada e suas consequências. Esperar que jovens adolescentes, que já tem um comportamento relativamente inconsequente e costumam buscar e desafiar os limites do que os cerca, tenham maturidade para discernir o que não se deve fazer e o que não se deve divulgar na internet é muito pretencioso, principalmente quando notamos que muitas vezes nem mesmo os adultos têm esse discernimento. Monitorar o comportamento dos filhos nas redes sociais é pertinente, desde que seja com o intuito de ajudar, ao invés de censurar.

2) A partir do momento que conteúdos particulares são divulgados, não há como voltar atrás. É evidente que ninguém quer sua privacidade exposta, mas é interessante, no filme e na vida, como a dinâmica de marketing viral atua nessas situações. Muito conteúdo comprometedor acaba compartilhado na internet, porém vez o outra cria-se uma histeria coletiva, através da qual as pessoas abrem mão do senso crítico e ignoram as contradições do discurso que reproduzem. Julgam e condenam comportamentos cotidianos, como o de Alejandra, ainda que muitas vezes exerçam o mesmo comportamento, com a diferença de não ter o conteúdo divulgado.

3) O bullying deve ser fortemente combatido, seja ele virtual ou físico. Com a recente notoriedade do tema – cuja existência é antiga – já surgem algumas ironias e distorções em torno do próprio conceito, porém os danos causados pela prática de bullying costumam ser intensos e muitas vezes irreversíveis. Assim como podemos conferir no filme, o alvo das agressões passa a ser foco de uma ação social sem fundamentos. Muitas vezes não há motivos racionais para as agressões, para a rejeição e mesmo ao ódio demonstrado pelas amigas da protagonista. No caso específico Alejandra passa a ser odiada por ter ido para a cama com um garoto da escola. Por acaso foi a única?

4) Ambos os sexos sofrem com a violência do bullying, porém dentro dessa temática ainda é possível destacar o machismo que agrava a situação das mulheres vitimadas. Há uma infinidade de exemplos de materiais comprometedores divulgados na internet, a grande maioria de mulheres, que passam a ser fortemente condenadas pela culpa de outra pessoa – dado que o problema é a divulgação do conteúdo. Homens flagrados geram uma pequena repercussão, por vezes até glamorosa, e quando isso acontece com casais, como no caso do filme, a histeria que se forma parece esquecer que há um homem, muitas vezes até responsável, pelo ato imprudentemente censurado.

5) Sem adiantar o final do filme, que vale muito a pena ser conferido, é possível dizer sem estragar nenhuma surpresa que os adeptos da justiça com as próprias mãos ficarão um pouco perturbados. Quem sabe finalmente pensarão sobre a possibilidade de um julgamento ser complexo e estar, de forma muito prudente, subordinado a existência de provas e imparcialidade.

Depois de Lucia é um filme bem didático, sobre um tema que em tese chega a ser bastante simples, mas na prática ainda vai atormentar a sociedade por muito tempo. Um exemplo claro de como o conservadorismo é irracional e maléfico para todos, inclusive para os conservadores.


terça-feira, 2 de abril de 2013

Uma história de amor e fúria


Meus heróis nunca viraram estátua, morreram lutando contra quem virou.


Essa animação, escrita e dirigida por Luiz Bolognesi, é uma produção nacional não somente por ter sido realizada em estúdios brasileiros, mas também por contar nossa história com base em uma crença indígena e passando por períodos da luta do povo brasileiro.

Os longas de animação vêm ganhando espaço nas telas, com produções cada vez mais elaboradas. Entretanto os filmes produzidos pelos grandes estúdios têm explorado à exaustão a comédia, com personagens caricatos e enredo geralmente semelhante. Aqui Bolognesi se aproxima mais das animações europeias, deixando de lado o simples humor para explorar um recurso mais rico das animações.

O personagem principal, com a voz de Selton Mello, nasce em meio às disputas entre tribos indígenas, uma marca entre os índios brasileiros, porém utilizadas pelos colonizadores para a dominação local. O herói, segundo a mitologia indígena, está predestinado a uma vida de luta contra o inimigo.

Ao longo da história do Brasil o protagonista aparece em quatro episódios, não busca a luta, mas sim sua amada Janaina (Camila Pitanga). Apesar disso vemos que o casal, no constante cabo de guerra entre opressores e oprimidos, está sempre do lado mais fraco.

Os episódios escolhidos para serem retratados no filme são, além da dominação inicial por parte dos portugueses, a revolta da balaiada, a ditadura militar e um futuro não muito distante, nem muito esperançoso, no qual a água potável é vendida a preço de ouro, devido à escassez.

Fica claro no filme, principalmente fazendo uma analogia com os dias atuais, que a história é realmente cíclica e muitos outros episódios poderiam ter sido escolhidos para representar a ideia de um povo oprimido que, diferente da imagem de pacífico que insistem em nos empurrar, sempre procura formas de combater e lutar por direitos tão básicos que quando apresentados no cinema ficam evidentes, mas na prática, talvez pelo hábito enraizado há séculos, frequentemente passam despercebidos.

Somos tão acostumados com a história contada pelos opressores que a animação acaba funcionando como documento de versões alternativas para fatos consagrados. Desde a própria crença indígena, desconhecida para a maioria dos brasileiros, até fatos históricos como a criação do exército brasileiro, tendo atuado pela primeira vez contra a própria população do país, somos apresentados a uma série de fatos que nos fazem pensar sobre a origem de nossa sociedade e, consequentemente, dos problemas sociais que enfrentamos.

Se pensarmos nas dificuldades, sobretudo econômicas, que o cinema nacional precisa enfrentar, que inevitavelmente estão presentes também para animações, é muito mais viável não tentar enfrentar as superproduções americanas de igual para igual, mas criar uma identidade própria para as animações nacionais, que possam servir de instrução, como o próprio cinema tradicional vem fazendo desde sua origem, e também atrativo pela forma lúdica quase inerente às animações.

A produção deste longa contou com certa tecnologia, mas a maior parte do trabalho foi feito mesmo com desenhos manuais. A técnica trabalhosa aprimora os profissionais envolvidos e leva às telas os quadrinhos, sempre populares entre os jovens. Contar histórias, fictícias ou não, é uma forma de transmissão de cultura e a associação de cinema e quadrinhos é extremamente benéfica para tornar a história (acadêmica) mais atrativa.

Não há como não se interessar pela luta do protagonista ao longo dos séculos, pelo romance que resiste aos percalços e as injustiças que permeiam a sociedade em tempos diversos. Para além da ficção, ter como a guia da história uma crença indígena resgata uma face oculta da história do Brasil, que começou bem antes da chegada dos portugueses.

Unindo algumas frases de efeito do filme, “viver sem conhecer o passado é andar no escuro” e o esclarecimento proporcionado ao notarmos a exploração cíclica de nossa história é uma arma poderosa, que não por acaso costuma ser coibida. Para o protagonista, “mesmo sem perceber, todo dia a gente está lutando por alguma coisa”. É estimulante ver que muitas vezes essa “alguma coisa” é histórica, e a luta não é solitária, traz consigo um acumulado de motivações.

Uma História de Amor e Fúria tem tudo para estimular novas animações nacionais, que supera a verba exorbitante dos grandes estúdios de animação com talento e conteúdo, lançando uma história que diverte, entretém, mas principalmente ensina!


terça-feira, 26 de março de 2013

Menos que nada


Um filme rodado em hospício sempre causa certo desconforto, inerente ao ambiente. Não precisa ser um documentário, despido dos eufemismos da ficção feito “Titicut Follies”, de Frederick Wiseman, nem um protagonista lúcido internado por engano, como em “Bicho de sete cabeças”, de Laís Bodanzky.

Aqui o diretor Carlos Gerbase apresenta a história do protagonista Dante (Felipe Kannenberg), que de fato apresenta uma patologia que o encarcera em um hospício. As poucas visitas que recebia no início cessaram e agora ele passa os dias cavando e apresentando comportamento incompreensível para aqueles que não conhecem sua história.

Ainda que tenham comportamento agressivo e potencialmente perigoso, é sempre chocante a maneira hostil como certos pacientes são dominados, mesmo que para conter uma agressão. Porém essa questão não é o foco do filme.

Sua particularidade começa com a chegada da Dra. Paula (Branca Messina), que decide investir no tratamento de Dante, com o propósito claro de usar o paciente como estudo de caso. A partir disso ela busca elementos do passado do interno e estimula o depoimento de pessoas que fizeram parte da história de Dante, para tentar montar um quebra-cabeça de versões dos fatos e compreender seu comportamento.

Vemos que aquele personagem bestializado, incapaz de utilizar a linguagem falada para se comunicar, já foi um estudante universitário. Calado, distante, traumatizado por perdas ao longo da vida, mas bem diferente de sua atual fase no hospício. Mais do que os aspectos clínicos da esquizofrenia apresentada por Dante, restritos aos profissionais da área, o personagem do filme suscita uma reflexão sobre seu histórico, até a internação.

Em um mundo pasteurizado, em que os comportamentos devem ser padronizados e qualquer excentricidade é mal vista, as pessoas seguem suas vidas sem sequer perceber que pode haver algo de errado com quem está próximo, um filho, um amigo de infância, colega de sala, etc. Todos podiam notar que Dante era diferente, talvez estranho, mas isso nunca chegou a render a devida atenção, ou a curiosidade de ir a fundo e descobrir o porquê daquele comportamento.

Sobretudo no mundo acadêmico e profissional, as atenções são voltadas para a própria carreira, para os próprios projetos, cuja necessidade de números cada vez mais irreais supera a capacidade de olhar para os lados e notar qualquer diferença. É mais fácil ignorar e excluir.

Estendendo a superficialidade de comportamento para a clivagem proposta entre loucos e sãos, é pertinente olharmos com atenção para os demais personagens. Em um mundo no qual se pretende ser cada vez mais profissional e racional, a imaginação é vista como loucura, a particularidade é ignorada e certos comportamentos aceitos como normais.

O ciúme doentio do personagem Ciro (Alexandre Vargas) chega a ser visto como virtude em uma sociedade em que ciúme é encarado como prova de amor. A frieza da arqueóloga René (Rosanne Mulholland) encarada como profissionalismo. O comportamento patético de Gregório (Roberto Oliveira), pai de Dante, tolerado e explicado com a perda da esposa.

Dentre tantas insanidades socialmente aceitas, o estranho é aquele que desenvolve a esquizofrenia, que talvez seja o mínimo para alguém que tenha que lidar com tantas adversidades desde a infância.

Visto como mero entretenimento o filme pode ser apenas a história de um jovem esquizofrênico, porém associando com a realidade, guardadas as devidas proporções, vemos que para cada Dante, encarcerado em um manicômio e em sua própria loucura, nossa sociedade produz inúmeros indivíduos encarcerados no próprio silêncio, no próprio desconforto de quem não chega a demandar sedativos e enfermeiros fortes para amarrá-los, mas que permanecem distantes do que se concebe como saudável.

Talvez possa parecer exagero, afinal a história está repleta de doentes mentais, que sempre foram tratados (muitas vezes de forma absurda) e de uma forma ou de outra a sociedade segue em frente. De fato, mas dentro do contexto exposto no filme e aqui debatido, muitos casos talvez pudessem ser evitados, prevenidos ou encarados com mais respeito e atenção.

Entre os referidos inúmeros indivíduos que fogem da dita normalidade, mas não chegam aos manicômios e aqueles internos, a exemplo do filme, temos lidado com outros tipos, os que tomam uma atitude extrema. Podem atentar contra a própria vida, contra a vida de outros, contra a escola em que se formaram, como já aconteceu tantas vezes nos Estados Unidos, e aqui também.


terça-feira, 12 de março de 2013

O Mágico de Oz (The Wizard of Oz)


And remember, my sentimental friend, that a heart is not judged by how much you love, but how much you are loved by others.

A história do Mágico de Oz nos remete a três obras primas. Tendo origem em 1901, no livro de L. Frank Baum, repleto de metáforas sobre a sociedade norte-americana, suas divergências e transições econômicas, a história foi adaptada para as telas em 1939, com direção de Victor Fleming.

O filme chama a atenção pela qualidade da adaptação (sem cair na falácia de comparar com o livro para ver qual é o melhor) e pela produção extremamente detalhista. As cores gritantes da terra de Oz, os cenários mesclados com pinturas de paisagens, a maquiagem perfeita dos personagens. Tudo contribui para um filme que parece muito a frente de seu tempo.

Por fim, em 1973 a banda Pink Floyd grava o disco Dark Side of the Moon. Marco na história da música, o álbum ganha ainda mais brilhantismo por ser sincronizado com o filme. Inexplicavelmente a banda negou qualquer intenção de fazer isso, como se fosse possível tudo ser coincidência. A sincronia só começou a ser divulgada no fim dos anos 90, hoje há centenas de evidências apontadas. Muitas provavelmente são mesmo aleatórias, talvez até induzidas pelo clima do filme, porém as mudanças de ritmo, coincidências de falas e até sincronia de movimentos dos personagens com sons do disco dão corpo à palavra genialidade.

Em uma sinopse rápida o Mágico de Oz pode passar por uma fábula infantil. A pequena Dorothy (Judy Garland) vive na fazenda de seus tios, no Kansas. Uma vida apática, com a solidão entre os adultos quebrada apenas pela companhia de seu cão, Toto. Um tornado faz com que a casa voe pelos ares, cena que pode ficar ainda mais encantadora ao som de “The great gig in the sky”, aterrissando na maravilhosa terra de Oz. É neste ponto, quando Dorothy sai da casa, que o filme passa a ser colorido. Muitos dizem ser esse o significado da capa do disco, uma luz monocromática que passa por um prisma, revelando as cores do arco-íris. (confira no vídeo abaixo)

A partir deste ponto a história ganha personagens e metáforas que a afastam de um passatempo para crianças. Sem deixar de entreter, muitas mensagens podem ser identificadas no enredo. A estrada de tijolos amarelos, que simboliza o ouro e guia Dorothy, é pisada ao som de “Money”, no livro com sapatos prateados para indicar a necessidade de substituição da moeda do país, no filme foram usados sapatos de rubi, cujo vermelho brilha intensamente na tela, ressaltando as cores que ainda eram novidade nos filmes.

Em meio às bruxas boas e más, interpretadas como referência aos conflitos entre regiões americanas, é possível encontrar temas mais amplos e universais. A loucura, o medo, a ganância, o poder, a morte, são alguns pontos abordados claramente, que serviram de base para o tema das letras e a própria atmosfera da gravação do Pink Floyd. Muitas falas que permeiam as músicas foram gravadas em entrevistas com funcionários do estúdio, estimulados pelos músicos a falarem sobre os temas abordados.

As frases aparentemente perdidas nas músicas podem ganhar significado associando ao filme. Quando Dorothy segue para a Cidade das Esmeraldas, para que o todo poderoso Mágico de Oz (Frank Morgan) possa leva-la de volta ao Kansas, encontra no caminho o Espantalho (Ray Bolger, que em meio a tantos talentos consegue se destacar pela qualidade da interpretação de seu cômico Scarecrow), que segue com ela em busca de um cérebro, o Homem de Lata (Jack Haley), em busca de um coração, e o Leão Covarde (Bert Lahr) que busca coragem.

É impossível esgotar tudo o que há para dizer sobre a junção de três obras tão importantes para a literatura, cinema e música em um texto. Quem sabe em um livro. Mas é notável a relação entre essência e aparência trabalhada o tempo todo no enredo. O poder do Mágico, capilarizado em Oz, não passa de uma ilusão, assim como o medo que o sustenta, não é real, não vai além das fronteiras do indivíduo e só ganha força por uma ilusão coletiva.

A superação dos percalços que os personagens encontram não vem da magia. Ela pode até salvar, quando a bruxa boa faz nevar para anular o efeito soporífero das papoulas, mas essa é uma estratégia cinematográfica ausente na história original. A real solução para os problemas está dentro de cada indivíduo e muitas vezes só precisa de um olhar externo que lhe mostre o caminho com sabedoria. Percorrer o caminho é, portanto, indispensável para a aprendizagem.

Para cobrir todo o filme "Dark Side of the Moon" deve ser executado por duas vezes e meia, ou seja, algumas músicas são repetidas três vezes e apesar da maioria das referências estarem na primeira execução, em todas é possível encontrar alguma correlação. O filme acompanhado pelo disco ficou conhecido como "Dark Side of the Rainbow". Inacreditavelmente fantástico.


quarta-feira, 6 de março de 2013

A Papisa Joana (Die Päpstin)


Esta adaptação do diretor Sönke Wortmann conta a história de Johanna Wokalek, que driblou inúmeras dificuldades, tendo que se passar por homem para ter acesso ao ensino dos conventos do século IX ser escolhida para Papa. Muitos historiadores dizem não passar de uma lenda, de fato o enredo lembra muito as peripécias dos personagens de Giovanni Boccaccio em Decameron, satirizando o comportamento religioso.

Porém outros estudiosos afirmam que de fato houve uma Papisa. A igreja católica nega e afirma que a história é inverossímil, mas esse argumento partindo de uma instituição que afirma que houve a construção de uma arca para um casal de cada espécie de animais, do pinguim do polo sul ao urso polar do norte, do koala ao pernilongo, é bastante questionável.

Independente de lenda ou fato, o filme traz a tona relações de poder e intolerância que não estão superadas e ganham notoriedade em tempos de escolha do novo Papa. As mazelas da igreja são antigas e por mais que a instituição tente escondê-las, frequentemente escândalos explodem.

No filme Johanna Wokalek (Johanna von Ingelheim) nasce em uma pequena aldeia e é filha de um religioso extremista, que sonha em ver o filho mais velho como sacerdote e ignora o talento de Johanna em uma época que as mulheres não podiam estudar.

Esse filme exige a separação de religião e igreja, ainda que a primeira tenha originado a segunda. A religião surge como uma forma de conhecimento. É uma tentativa primitiva de explicar fenômenos que nos rodeiam. O desdobramento disso é que as primeiras escolas e universidades são administradas pela igreja, que com isso controla quem tem acesso ao conhecimento e o que é estudado, barrando os avanços científicos dos gregos durante toda a Idade Média.

Com o conhecimento fortemente ligado ao poder, a igreja católica manteve-se intocável por séculos, controlando e moldando a informação da forma mais conveniente para perpetuar-se junto aos poderosos. Desta forma a igreja sempre defendeu com unhas e dentes a estrutura social do ocidente, ou seja, a concentração de poder e de renda em uma sociedade extremamente machista e misógina.

Uma das explicações lógicas para a limitação da participação feminina no alto escalão da igreja, além do reflexo do machismo, é a questão dos descendentes, também abordada no filme. Não é de hoje que o celibato do clero é puramente teórico e não são poucos os casos de religiosos que tiveram filhos, ou seja, herdeiros, que para não terem direito às propriedades da igreja, costumam ser muito bem ocultados. Antes do exame de DNA era impossível provar a paternidade de forma irrefutável, mas o que fazer se uma religiosa engravidar (talvez em mais uma história digna de Boccaccio) e fornecer um herdeiro para dividir os bens da igreja? Haja espírito santo para justificar e ocultar tantos escândalos.

A postura de igreja, de defender de forma quase incondicional os dogmas postulados há milênios, é anacrônica e insustentável. Em decorrência disso a sociedade, que nunca foi tão estática quanto a igreja, muda seus padrões e cria novas categorias, como novas instituições, que mantêm as mesmas bases, mas fazem releituras convenientes, ou os tais “católicos não praticantes”.

Assim como o alto escalão da igreja, essas inovações moldam a palavra conforme a necessidade, o que não muda são os absurdos e terrores promovidos pelas instituições em nome da fé. A misoginia, que matou Johanna se a história for verídica ou que sem dúvida mataria, tornando a lenda verossímil, continua atuando. Segue também a tentativa desesperada da igreja de controlar a informação e encobrir as falhas em seus rígidos padrões teóricos, porém esta tentativa está cada vez mais frágil diante da facilidade com que a informação circula atualmente.

Esse filme é um bom exemplo de como o controle da igreja, que chegou a assassinar cientistas e artistas na inquisição, está enfraquecido, já que em outras épocas o simples lançamento seria impensável. Mesmo assim a instituição e fé seguem fortes, já que mesmo sendo um filme muito bem produzido, é bastante desconhecido e tem pouco espaço até mesmo nos meios especializados em cinema. Por mais que a história de Johanna seja encarada como lenda, o simples fato de ser plausível e das críticas permeadas nas entrelinhas serem incontestáveis, já é suficiente para tornar prudente o ostracismo da obra.

Se restar dúvida sobre o conservadorismo da igreja ou parecer uma teoria da conspiração, basta pensarmos na postura da instituição em relação ao uso de preservativos ou células tronco, ou ainda considerarmos que não há chance do próximo Papa ser mulher, e será visto como uma grande inovação se ele não for europeu!


terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

As vantagens de ser invisível (The perks of being a wallflower)


Há uma infinidade de filmes americanos com roteiros semelhantes ao deste longa, dirigido por Stephen Chbosky. Um adolescente que não consegue se enturmar e sofre com o bullying no colégio, até conhecer alguns amigos, com uma magia que só existe no cinema. A diferença aqui está na profundidade e sensibilidade de abordagem do tema.

Charlie (Logan Lerman) é o adolescente problemático da vez, isolado e conformado com as particularidades de sua solidão. Talvez pelo filme ter sido inspirado no livro homônimo, e a literatura ter mais espaço para descrições desenvolvidas, a vida de Charlie é mais detalhada por flashes de seu passado que indicam o motivo de seu comportamento.

A princípio foram alguns problemas da vida do protagonista que chamaram a atenção de Sam (Emma Watson) e Patrick (Ezra Miller), mas esse é o tipo de filme que se destaca muito mais pelo que deixa implícito. O que vemos são os dois amigos preocupados com o novo aluno esquisito, o que sentimos é que, assim como qualquer outra pessoa, eles escolhem a amizade tanto pela identificação pessoal quanto pelo que se pode aprender com ela.

Entre todas as pessoas que passam por nossa vida, ficam, ou fazem falta, aquelas que nos são próximas pelos sentimentos, pelas experiências e até frustrações. A dor que nos incomoda é mais suportável quando encontramos um par, ou ao menos alguém que se esforça em aceitar os sentimentos sem pré-julgamentos. 

É comum, tanto nos filmes quanto na vida, um personagem com dificuldades de relacionamento – quem nunca teve que lidar com isso em algum momento – que depois de uma fase difícil atinge a famosa meta de “viveram felizes para sempre”. Ainda que a felicidade perene não exista, o mais comum é mesmo uma superação de traumas e a continuidade com os altos e baixos da vida.

As exceções existem. Algumas vezes geram boas obras, como este filme ou mesmo o livro que deu origem ao roteiro. Infelizmente a maioria das vezes aqueles que não conseguem lidar com seus traumas não tem a sorte de um desfecho cinematográfico.

Vemos a angústia dos jovens diante da responsabilidade de conseguir uma boa universidade. Apesar das diferenças entre Brasil e EUA no processo seletivo, a escolha em si já é bastante desgastante. Há pouco tempo atrás as escolhas eram muito mais restrita e a vida quase pré-determinada. A tendência de seguir os passos da classe social em que estava era bem mais forte. Embora a sociedade atual seja mais pluralizada e ofereça varias alternativas, ela desconsidera nuances da personalidade de cada um e exige a padronização de escolhas, independente do histórico.

Tão certo quanto a dificuldade das escolhas para os jovens, que mesmo sem muita maturidade devem tomar um rumo para a vida, é o agravamento da situação para pessoas como Charlie, que além de pensar no futuro ainda se sente amarrado ao passado e importunado pelo presente.

Será que apenas o protagonista é estranho, ou fechamos os olhos para o absurdo de esperar que todos tenham a capacidade de superar grandes problemas, padronizando o próprio comportamento com base em uma sociedade muitas vezes insana? Logo no início do filme Charlie escreve em seu diário – confidente acima de qualquer julgamento – que não falou com ninguém durante todo o verão. Resta saber se isso foi tão ruim quando parece ou se seria pior perder tempo com as pessoas que o cercavam.

Diferente do usual em temas semelhantes, em que o protagonista é simplesmente hostilizado ou ridicularizado, construindo a imagem de errado por não se adequar ao comportamento dominante, aqui vemos Charlie com um problema mais grave que o normal, portanto – ou ainda – com mais dificuldade de superação, o que o torna marginalizado.

Como espectadores apenas recebemos o que o filme nos oferece, porém quando vivemos uma situação semelhante, nos acostumamos com a ideia de discriminar, ou a discriminação serve como um consolo covarde para nossa própria dificuldade de superar traumas, preferindo jogá-los embaixo de algum tapete?

O extremismo dos sentimentos e das atitudes de Charlie, ou qualquer um que seja semelhante a ele, não precisam nem devem ser encarados como um grande impasse. Todos têm algumas raízes que incomodam, por vezes não há psicanálise que resolva. Se a solução é simples quando a reação é leve, é também um pouco mais complexa quando a reação é exacerbada, como no filme. Um pouco mais de atenção e respeito costuma ter bons resultados.



terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

Quebrando o tabu


Com este documentário o diretor Fernando Grostein Andrade propõe um debate aprofundado sobre temas que costumam ser socialmente censurados e normalmente abordados de forma superficial. Mais do que uma bandeira em prol da legalização da maconha, o filme traz exemplos e personalidades renomadas que, mesmo com algumas opiniões divergentes, são unânimes ao afirmar que o atual modelo de abordagem de usuários de drogas não é eficiente – por mais que isso fique evidente em nosso cotidiano, é necessário sempre ressaltar.

Algumas partes deixam latente a falta de estudos consistentes sobre as drogas, não apenas em relação ao efeito delas no organismo, mas dos impactos sociais e políticos dos usuários e das políticas voltadas ao tema. Para tentar driblar essa dificuldade e dar credibilidade às abordagens, o diretor utilizou várias vedetes como o médico Drauzio Varela, o ator Gael Garcia Bernal e, talvez o principal para os brasileiros, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso.

O político brasileiro é um dos que aparecem no filme assumindo que errou no combate às drogas quando estava no poder e que agora mudou de opinião a respeito do assunto. É possível, porém analisando sua formação e história, é bem mais provável que quando estava no poder optou pelo caminho mais seguro quanto à própria imagem frente aos eleitores: tentar agradar a maioria apoiando a opinião majoritária.

Para qualquer político, propor grandes mudanças em relação a temas obscuros significa mexer em um vespeiro, que pode sepultar definitivamente sua vida política. O que alimenta isso é o preconceito criado pela ignorância em relação ao tema. Não há debates sobre o uso de drogas e o efeito de cada uma no organismo. O que mais se vê é o legalismo, que por um lado tolera álcool e cigarros e por outro coloca todas as outras drogas dentro do mesmo bojo, condenando com veemência qualquer atitude de esclarecimento, geralmente taxada de apologia inconsequente.

Um desdobramento desse preconceito é a criminalização do usuário, viciado ou não, e as políticas públicas desastrosas em se tratando da presença de substâncias proibidas na sociedade. Uma das arestas que veio à tona recentemente e é pouco explorada no filme é a internação compulsória de dos dependentes.

De um lado quem defende a internação, mesmo contra a vontade do dependente, argumenta que em casos extremos o viciado – sobretudo em crack, que está em maior evidência – perde a capacidade de decisão; o que de fato ocorre. De outro quem é contra argumenta que essa decisão pode ser arbitrária, política e inevitavelmente atropela o livre-arbítrio; o que de fato também ocorre.

Um agravante da internação contra a vontade é que mesmo os dependentes que querem se livrar do vício e têm para isso todo o apoio de amigos e familiares, apresentam taxa de recuperação muito baixa em longo prazo, que dirá os que não fazem a menor questão de deixar o vício, internados em clínicas com o padrão “estado brasileiro” de qualidade – podemos comparar com os antigos manicômios públicos, para não dizer os próprios hospitais, para termos uma ideia de como funcionarão tais clínicas.

A desvantagem de quem é contra a internação compulsória é que poucos se arriscam a propor uma alternativa. De fato, a solução em larga escala é dificílima, não basta criminalizar os usuários que se espalham por calçadas de cracolândias pelo país, tão pouco expulsá-los com truculência policial, ou criar leis, visto que se isso fosse suficiente ninguém sequer iniciaria o consumo.

Mais uma vez a falta de pesquisas específicas prejudica, mas muitas vezes quem procura uma droga, de cigarro a krokodil (eu não digitaria isso no google imagens, se fosse você), busca preencher um buraco. Angústia, medo, raiva, ansiedade e uma infinidade de outros sentimentos acabam oferecendo um vazio que muita gente tenta preencher com alguma droga. Muitos conseguem dosar bem a quantidade necessária, mas outros fazem com que esse buraco transborde – os dependentes crônicos.

Tratar um dependente deixando livre das drogas é relativamente fácil, mas o buraco metafórico volta a ficar vazio e precisa ser preenchido. Muitos conseguem com religião, daí a atuação de igrejas em cracolândias e afins, mas não existe fórmula mágica para o tratamento em massa. Cada indivíduo precisa achar sua forma de preencher o vazio antes ocupado pelo vício, caso não consiga controla-lo, e isso é um cuidado que uma clínica estatal, para internação compulsória, dificilmente conseguirá ter.

Criminalizar o diferente costuma ser o caminho mais cômodo, mas o aspecto legal é amplamente abordado no filme. Acreditar que uma lei fará alguém se livrar de um vício é no mínimo inocente. Já que o tradicional modelo repressivo tem se mostrado falho, torna-se pertinente a tentativa do diálogo e esclarecimento, no lugar do preconceito e obscurantismo.


terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

As quatro voltas (Le quattro volte)


O filme de Michelangelo Frammartino nos proporciona uma viagem no tempo. Em meio ao cinema hollywoodiano, cada vez mais preso aos efeitos especiais megalomaníacos, que parecem ter a obrigação de criar uma hiper-realidade dinâmica e frenética, acompanhamos aqui a vida mais que pacata em uma aldeia com origens medievais, que parece ter parado naquela época.

O velho pastor de cabras, já no fim da vida, aparenta ter exercido as poucas atividades retratadas no filme durante toda a vida, tendo provavelmente aprendido seu ofício com os antepassados. Não fossem os poucos elementos urbanos, como um caminhão e uma motosserra, o filme poderia ser um retrato épocas remotas, sem nenhum prejuízo ao seu enredo.

Sem diálogos ou atuações marcantes, o filme torna-se bastante original em um universo cinematográfico geralmente padronizado. Evidentemente contamos com particularidades e exceções, sobretudo considerando características de cada país, mas “As quatro voltas” é o tipo de filme que dificilmente ganha espaço nas salas de exibições. Sem dúvida a maior parte do público frequentador das grandes salas classificaria este longa como, na melhor das hipóteses, parado.

De fato, principalmente para uma geração acostumada ao dinamismo de redes sociais e linguagem iconográfica, que deve dizer muito de forma concisa, sem dúvida o filme será arrastado, mas cabe o questionamento da massificação da obra cinematográfica. Os filmes devem de fato apenas entreter e criar falsas realidades, com efeitos especiais dando vida a super-heróis, ou podem também oferecer algo mais?

Nunca fui à Itália. Poucas vezes fui a uma cidade tão pequena quanto uma aldeia da Calábria. Porém o cinema é extremamente eficiente na reprodução de um pequeno recorte da realidade. Apesar de um enredo simples, tal qual o estilo de vida dos moradores locais, o filme apresenta rico material histórico, que suscita muitas reflexões sobre o comportamento em sociedade e a relação do homem com o ambiente em que vive. Seria absurdo pensar em um retorno em massa para aquele estilo de vida, mas diante do comportamento tão predatório dos recursos naturais, um pouco do que vemos é extremamente válido.

Repleto de simbologia, o filme não se esgota em um texto de análise, principalmente pelo fato de que cada metáfora pode ser compreendida de uma forma diferente. Apesar disso podemos ver o corte direto indicando o ciclo da vida, da morte ao nascimento. Porém esse corte vai da morte de um homem ao nascimento de uma cabra, é direta a indicação de horizontalidade entre ambos. Não há domínio, mas sim continuidade entre homem e natureza, um complemento mútuo entre as espécies.

Além desta aproximação por parte dos humanos vemos também o inverso, o filhote recém-nascido se perde do rebanho e grita como uma criança que se perde dos pais em meio à multidão, vagando sozinho pela imensidão da mata nativa. O elo se fecha com o corte para uma grande árvore, também solitária como o pastor ou o filhote de cabra.

Esta solidão, presente entre os humanos, entre os animais e até entre as árvores, sentimento tão angustiante na sociedade moderna, é quebrada na aldeia com a intervenção da pequena sociedade local. A encenação de uma peregrinação do período romano – indispensável para a transmissão da cultura local, assim como o cinema tem a capacidade de ser – nos remete à união dos habitantes, assim como o ritual que se dá em torno da derrubada de uma árvore, utilizada em uma festa – a Pita.

Apesar de retratar uma aldeia encravada entre as montanas, que aparentemente não tem nenhuma relação com as grandes cidades, notamos a presença de elementos comuns fundamentais, apenas expressos de forma mais rústica, ou seja, qualquer sociedade tem suas datas comemorativas e festividades locais, marcando uma identidade e fortalecendo as relações entre os moradores. Esta característica pode ser notada desde a aldeia italiana, com bases medievais, até uma festa junina de um bairro de qualquer metrópole.

O extrativismo local pode ter certo tom predatório para os padrões que estamos acostumados, contudo a carvoaria da aldeia – que diferente do que estamos acostumados a ver em nossos noticiários, não conta com trabalho infantil – é uma atividade alternativa à dos pastores.

Existe a possibilidade de uma substituição da fonte de renda, já que o velho pastor não aparece ensinando seu ofício, o que indicaria uma corrupção dos hábitos locais, mas ainda assim é uma hipótese remota, pois a carvoaria permaneceria distante da diversidade de elementos fornecidos pela criação de cabras.

A beleza deste longa nos oferece uma alternativa sedutora ao cinema de massa, que repete a mesma fórmula à exaustão. Não temos super-heróis, nem efeitos especiais, explosões ou atitudes megalomaníacas, mas temos a vida, como vem sendo vivida há tanto tempo.


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