terça-feira, 22 de outubro de 2013

O Grupo Baader Meinhof (Der Baader Meinhof Komplex)

Do rio que tudo arrasta se diz que é violento, mas ninguém diz violentas as margens que o oprimem.
Bertolt Brecht

Atualmente a Alemanha destaca-se como o país, economicamente, mais importante da Europa. Como sempre, a economia aquecida proporciona também o poder político na região, porém o caminho até essa condição não foi fácil. Na metade do séc. XX o país estava destruído, física e politicamente, tentando se recuperar e juntar os cacos espalhados pelo território dividido entre ideologias da guerra fria.

Diante de uma vertente imperialista do estado alemão, que consequentemente marginalizava ou apoiava a marginalização de minorias, muitas vezes dizimando as mesmas em conflitos armados, um pequeno grupo radical revoltou-se contra uma série de injustiças institucionalizadas. A opção foi o confronto direto através de atentados.

O grupo ficou conhecido como Baader-Meinhof, pois no começo eram liderados por Andreas Baader (Moritz Bleibtreu) e Ulrike Meinhof (Martina Gedeck). Sua história, pouco conhecida no Brasil, com exceção da intervenção nas Olimpíadas de Munique, marcou a segunda metade do século e influenciou toda a política alemã da época.

A violência das ações do grupo não chegou a resolver problemas ou sanar as reivindicações, pelo contrário. Conforme vemos no filme do diretor Uli Edel, inspirado no livro homônimo de Stefan Aust, vários membros da RAF (como o grupo ficou conhecido) sofreram consequências graves por seus atos.

O ponto central ao tentarmos entender as ações em questão é que nem a RAF nem nenhuma outra organização semelhante pretende utilizar a violência como um fim em si mesmo, mas como um meio para evidenciar problemas. Todo governo adota políticas que geram controvérsias, aqui o apoio (ou complacência) à guerra no Vietnã e a causa Palestina foram os principais alvos.

Quando a grande mídia é confluente com o governo, qualquer voz destoante que tente propor um diálogo ou ao menos questionar certas políticas será suprimida sem espaço ou direito à opinião. A reação violenta do oprimido, ou daquele que o defende, é como um grito de quem pede socorro, pois ainda que seus atos sejam noticiados como vandalismo, suas causas serão postas em evidência, sobretudo se as ações perdurarem.

O mais comum é que os atos de violência física sejam criticados, dado à barbárie intrínseca que possuem. Porém vale ressaltar que nem toda violência é física. A explosão de uma bomba pode ser resposta à violência simbólica, apenas se expressando em outra linguagem, como alguém que sofre uma tentativa de assalto e reage com socos e chutes contra o assaltante.

Se por um lado somos seres racionais, com potencial para abrir mão das agressões e solucionar desavenças mediante negociação, por outro muitas vezes a famigerada democracia se resume a uma fachada que oculta e, sobretudo manipula dados para que os conflitos sejam atenuados, a ponto de passarem despercebidos.

Até mesmo em virtude desta capacidade de negociação muitos rejeitam atos violentos alegando a existência de outros caminhos para protestos. De fato, em teoria esses caminhos existem, mas pensando pelo lado dos manifestantes, são cidadãos comuns que se arriscam, tanto pela própria violência dos atos que cometem quanto pela repressão estatal, que em nome da lei e da ordem chega a mobilizar o aparato militar do estado para neutralizar manifestações.

Os que estão dispostos a correr todos os riscos veem nas ações diretas a única forma de gritar contra as injustiças que vivenciam, e se gritar – metaforicamente – pode dar margem para uma falsa associação com imaturidade, vale lembrar que mesmo os bebês, cujo único recurso é o choro, conseguem o que querem com o grito.

Por fim, uma das funções do estado é a mediação de conflitos. Em último caso é o único a ter monopólio legítimo sobre a violência, o que daria o direito institucional de reprimir manifestações. Porém essas repressões não devem ser ilimitadas. Há, sim, um claro limite entre a autoridade e o abuso de autoridade.

Com a falácia de que em um conflito entre manifestantes e policiais os ânimos estão exaltados e ambos cometem excessos, passa despercebido o fato de que a polícia é exaustivamente treinada para agir em situações de tensão, enquanto por parte dos manifestantes, existe apenas um aglomerado de cidadãos civis, em um movimento horizontalizado, que não conta com ordens ou estratégias.

O grupo retratado no filme, que começou com Baader e Meinhof seguiu por várias gerações, de forma muito menos centrada do que pretendiam seus criadores, mas ainda assim com o mesmo espírito de luta, movido pela indignação perante injustiças sociais.

Não é por acaso que o conteúdo do filme se encaixa com o que o Brasil tem vivido graças aos Black Blocks. Aqui, na Alemanha e em qualquer outro lugar, sempre haverá pessoas que preferem a violência à letargia. Quando suas reivindicações são justas, resta pensar se o combate deve ser com mais violência ou com o bom senso de reivindicações atendidas.


terça-feira, 15 de outubro de 2013

Metallica: Through the Never

No começo dos anos 80 o Metallica era um grupo formado por quatro moleques, dispostos a beber o máximo possível e exteriorizar seus sentimentos através da música. Misturando power chords com influência do punk e do heavy metal, os garotos foram os precursores do thrash, estilo do qual foram se afastando ao longo da carreira.

Desde o início da década de 90, com o lançamento do black album, o Metallica não é mais somente uma banda, mas uma marca. Uma espécie de grife, que não vende apenas música, mas qualquer coisa que leve seu logo.

Inovadores desde sua origem, a nova empreitada é o lançamento do filme em 3D, que leva às telas de cinema um show da banda, recheado com uma história de ficção, que fica em segundo plano e não chega a atrapalhar a apresentação das músicas.

Uma característica da banda é a grande energia que transmitem ao público nos shows. É claro que em estúdio as músicas têm qualidade, mas a execução parece muito mais contida. O único que conseguiu reduzir um pouco essa diferença foi o produtor Bob Rock, depois de muito trabalho no black album.

Como era de se esperar, toda essa energia em uma tela de cinema, com recurso 3D e toda a edição de imagens, resulta em um espetáculo bem atrativo para os fãs da banda, que têm o desafio de se conter na cadeira do cinema aos sons dos clássicos que consolidaram a banda como uma das mais influentes do rock.

O trabalho do diretor Nimrod Antal não deve ter sido fácil. Com o objetivo de filmar uma história paralela para não lançar somente um show em 3D, Antal corria o risco de interferir muito no show, que independente de qual seja a expectativa de quem for ao cinema, vira prioridade logo na primeira música.

A ficção mostra o roadie Trip (Dane DeHaan) maravilhado no backstage do show, como qualquer fã ficaria se estivesse nessa situação, porém no fim da primeira música recebe a ordem de buscar uma encomenda na cidade e voltar antes do final da apresentação.

A partir disso a história começa a se desenvolver de forma linear, depois foge completamente da realidade, ficando mais interessante e prendendo a atenção, mesmo em meio às apresentações fantásticas das músicas. Logo dá para perceber que a jornada de Trip está encadeada com as músicas do show, portando tudo vai ganhar mais sentido se você conhecer pelo menos o tema da letra da música.

Dentro da história, que é curta por ter elementos somente entre as músicas do show, há um grande mistério (sem entrar em detalhes aqui, para não estragar a surpresa de quem ainda não viu) que torna ainda mais importante saber sobre o que a música em questão está falando. Ainda que não exista uma resposta exata para o tal mistério, o filme dá uma sugestão.

Em relação ao Metallica, as expectativas são correspondidas. Ótimos músicos que são, contam com a edição de imagens e as tomadas captadas em mais de uma apresentação que, associadas ao efeito 3D, oferecem uma ótima perspectiva de visão, que em nenhum ponto da plateia é possível conseguir.

Filmado no Canadá, em shows realizados especificamente para fornecer material ao filme, só o palco já é uma atração à parte. Tecnologia de ponta, trazendo uma coletânea de marcas importantes ao longo da história da banda, como a estátua da justiça se despedaçando, as cruzes de Master of Puppets (com direito a uma bandeira do Brasil de relance na plateia) e o acidente encenado durante Enter Sandman.

O filme cumpre bem seu papel. Oferece mais que um show e explora bem os recursos cinematográficos. O curioso é que o retorno não tem sido tão bom quanto o esperado e sem dúvida isso pode inibir bandas que tenham gostado da ideia. Difícil dizer qual o fator determinante para o filme não ir tão bem nas bilheterias, talvez a postura contida de uma cadeira de cinema que nunca vai substituir um show de verdade.

De qualquer forma, produzir um filme 3D foi caro e trabalhoso. Mesmo com a qualidade final e com a inovação da banda, é bem provável que sua produção fique apenas registrada como curiosidade na história da música.


(diferente do trailer, no filme as letras das músicas não são legendadas!)

terça-feira, 1 de outubro de 2013

Capitães da Areia

Nunca pensei que um dia eu colocaria uma obra de Jorge Amado entre minhas favoritas. Meu gosto pela leitura começou tarde, já no final do ensino médio. Havia lido “Mar Morto” por imposição escolar e não me despertara grandes sentimentos; acho que eu não estava maduro para ele.

Depois, vi em algum lugar uma defesa à obra de Paulo Coelho dizendo que em sua época Jorge Amado também era alvo de críticas. A péssima fonte me rendeu uma péssima conclusão que durou muito tempo. Alguns anos mais tarde li "A morte e a morte de Quincas Berro d´Água", uma crítica bem humorada, que me agradou, mas não me revelara o verdadeiro escritor.

Cheguei, antes tarde do que nunca, ao “Capitães da Areia”. Finalmente entendi porque Jorge Amado era mal visto em seu tempo, ficou claro porque a Rede Globo, diante da impossibilidade de negar o valor de sua obra, ressalta apenas os aspectos da sensualidade de seus livros.

Cecília Amado se dispôs ao trabalho dificílimo de adaptar às telas o livro de seu avô. A dificuldade está exatamente na diversidade de personagens do livro, cuja história individual de cada um pesa muito no resultado final, mas não caberia no espaço de um filme. Uma alternativa muito viável seria a produção de uma série, com capítulos interligados e contando detalhadamente tanto as histórias diretas do livro, quando um pouco de suas descrições psicológicas e histórico dos personagens, mas sem dúvida o resultado incomodaria a muita gente.

Escrito em 1937, Capitães da Areia é assustadoramente atual. Jorge Amado usa a literatura para, da forma mais didática possível, explicar que o problema de menores infratores vai muito além da falta de punição ou má índole, blindando sua análise lúdica de críticas superficiais e antecipando argumentos que apesar de falhos continuam sendo usados amplamente até hoje.

A comparação entre literatura e suas adaptações ao cinema costuma ser muito injusta. São linguagens diferentes e, sobretudo, intenções bem distintas, portanto não cabe julgar qual é ‘melhor’, já que seria inviável colocar sob os mesmos critérios um livro que tem todo o espaço para desenvolvimento de personagens, divagações psicológicas e narrador onipresente, com um filme que deve condensar em menos de duas horas o conteúdo de origem, contando com atores mirins que não tinham experiência em atuação.

Superada a falácia de eleger qual a melhor obra, vemos no filme pontos importantes do livro, que em alguns planos podem ter ficado muito reduzidos ou simplificados, mas que ainda assim retratam dificuldades e artimanhas desenvolvidas pelos meninos de rua, que existem, independente da organização do grupo Capitães da Areia, e lutam para além de superar os percalços da vida, lidar com o preconceito de quem espera de adolescentes – por vezes crianças – maturidade e discernimento habitualmente ausentes até mesmo em adultos.

Infelizmente o filme deixa margem para críticas pouco instruídas, não sobre sua produção, mas sobre o próprio conteúdo exposto, já que é um prato cheio para aqueles que enxergam claramente os delitos dos jovens para com a sociedade em que vivem, fechando os olhos de forma muito conveniente para o caminho contrário e se negando a considerar que quando não há boas alternativas, o jeito criar algo que individualmente seja ‘menos pior’.

O que também não tem tanto destaque nas telas é a ética presente entre os meninos do grupo, ou seja, muitas atitudes podem ser consideradas imorais perante a uma sociedade habituada com a competitividade desenfreada, desta forma, àqueles acostumados a hostilidade de quem quer ser promovido no emprego, mesmo que às custas de, até então, colegas de trabalho, a lealdade dos meninos aos Capitães de Areia como um grupo é censurável. O argumento alegado é o de que não deve haver lealdade com o que está fora da lei, porém o que fica implícito nesse tipo de crítica é a vergonha de admitir que a ética entre os Capitães de Areia esta ausente em muitos ambientes corporativos.

Mais esperançoso que o livro, o filme termina indicando finais hipotéticos e de forma bastante otimista. Na verdade o que é narrado como um vislumbre é o que se concretiza no livro (sem detalhar para não estragar o final de quem ainda não viu), porém ao contrário do otimismo indicado no filme, o livro coloca as mesmas situações de forma mais melancólica, mais crua, mais triste por ser mais real.


quarta-feira, 18 de setembro de 2013

A espuma dos dias (L'Ecume des jours)

Por não ter grande tradição em movimentos artísticos e literários o Brasil acaba pagando um preço alto, ou seja, não ter artistas que se destacam em determinadas correntes. É o que acontece com o surrealismo, por exemplo. Apesar de ser uma das grandes influências do movimento modernista, este sim com mais relevância em nossa sociedade, conhecemos (mal) o surrealismo apenas através de artistas estrangeiros, sobretudo o espanhol Salvador Dalí.

Com uma visão de mundo tradicionalmente utilitarista, que marginaliza o que não é objetivo, acabamos nos afastando também de qualquer forma de expressão alternativa, como o realismo fantástico, marcante em vários países da América Latina. Desta forma um filme como “A espuma dos dias”, do francês Michel Gondry, costuma soar estranho em terras brasileiras.

Diferente de nossas comédias sem graça, com histórias fáceis e finais felizes, Gondry traz uma adaptação da obra de Boris Vian repleta de referências culturais, desde a clássica cena de “Um cão de Andaluz” em que uma personagem tem o olho cortado com uma navalha, aqui bem mais suave ainda que um tanto aflitiva, até o filósofo francês Jean Paul Sartre, que no filme vira Jean Sol-Partre, passando pelas claras referências a Woody Allen.

Com técnicas simples de stop motion associadas a efeitos especiais mais elaborados, o filme cria um universo onírico que rompe completamente com a relação espaço-tempo convencional. Neste ponto a obra se aproxima do realismo fantástico já citado, pois apresenta com extrema naturalidade fatos completamente inusitados, fazendo com que ao abrir mão da necessidade de cenas factíveis, os personagens fiquem livres para mesclar sonho e realidade, característica típica do surrealismo, para concretizar a narrativa.

O enredo do filme é simples, narra em linhas gerais uma história de amor entre Colin (Romain Duris), até então bastante solitário e desajeitado com as mulheres, e Chloé (Audrey Tautou, a eterna Amélie Poulain). Estão nessa trama todos os elementos de uma história que tem como base a sequência utilizada desde as clássicas obras gregas. A particularidade é que, diferente de outras correntes literárias, que primam pela perfeição, omitindo os percalços da realidade, o surrealismo exterioriza esses percalços, expondo tudo de forma caricata, cômica e desajeitada.

Até mesmo a relação com as drogas, frequentemente associadas aos artistas surrealistas que por vezes utilizavam de seus efeitos para conseguir resultados mais vigorosos nos trabalhos, está presente entre os personagens do filme. As substâncias que distorcem os sons, as cores e as formas são proibidas, recriminadas, porém não deixam de marcar presença e render cenas cômicas, assim como os fatos inesperados da vida, tão bem trabalhados no filme.

É curioso que quando somos crianças gostamos de desenhos insanos, que tenham as cores explodindo na tela, com personagens inanimados interagindo com seres humanos e/ou animais. Aos poucos vamos crescendo e aceitando a falsa necessidade de seriedade, para que a realidade que nossos olhos nos mostram não seja manchada com o que foge aos nossos sentidos.

A ideia do surrealismo, muito bem trabalhada neste filme, é exatamente hipervalorizar metáforas aparentemente sem sentido para narrar fatos cotidianos e mostrar, ou sugerir, deixando a cargo da imaginação daqueles que assistem enxergarem as faces que a tendência romântica dos filmes costuma ocultar.

Haveria metáfora mais suave para um câncer do que afirmar que a personagem tem uma flor de lótus crescendo no pulmão? O eufemismo não tira a gravidade do fato e seu desdobramento, também repleto de metáforas, é uma forma de encenar um cotidiano extremamente difícil de forma lúdica.

O enredo não abandona os passos clássicos da construção de uma narrativa, mas mostra comédia e drama com um viés distinto, colocando um pouco de magia no cotidiano e tentando suavizar de forma metafórica os problemas que insistem em aparecer na vida real e que no filme acabam se tornando mais um diferencial para comédias com enredo irritantemente linear.

Apostar na retomada de um movimento artístico costuma ser ineficaz, ou seja, o surrealismo é uma corrente historicamente superada, que deixa raízes como todas as outras, mas não pode ser ressuscitado. Ainda assim, da mesma forma que o romantismo teve seu ápice há muito mais tempo e continua contaminando, muitas vezes de forma extremamente prejudicial, as obras de artes contemporâneas – sobretudo a literatura e cinema – seria muito interessante se mais artistas se inspirassem em fontes surrealistas para narrativas alternativas às tradicionais.


terça-feira, 10 de setembro de 2013

Muito Além do Cidadão Kane (Beyond Citizen Kane)

Cidadão Kane é o personagem fictício do filme homônimo de Orson Welles. Inspirado na vida de um magnata do jornalismo norte americano, Kane manipulava informações e exercia seu poder transitando entre política e imprensa.

Em 1993 uma emissora britânica lançou o documentário "Muito além do cidadão Kane", dirigido por Simon Hartog, com pinceladas sobre a sociedade brasileira – a ser apresentada aos ingleses – e relacionando fortemente a figura de Roberto Marinho, na época com 87 anos, à história recente do Brasil.

Em uma época em que a TV brasileira tinha ainda menos concorrência do que hoje, sem a alternativa da internet, canais por assinatura e apenas quatro canais abertos (Globo, SBT, Manchete e Bandeirantes), já era notável a hipocrisia de estrelas como Xuxa – mais uma rainha para a monarquista rede Globo, junto a Pelé, Roberto Carlos, entre outros que receberam a coroa da emissora – que construía um mundo de sonhos junto com suas paquitas, loiras, magras, jovens e bonitas.

Apesar de ter abandonado os longos programas matinais para crianças, ainda notamos o empenho de produções para o público infantil, hoje não só da Globo, para vender a imagem de sonhos da infância, que escancara o contraste entre quem passa o dia com um copo de leite e socialites que despejam dinheiro em seus bichinhos de estimação.

Sobre a sociedade brasileira, o filme indica que 50% do país pertenciam a 1% da população. Considerando que se este número mudou, não foi para muito melhor, a maioria da população ainda tem acesso apenas às imagens da mercadoria anunciada. A venda é de sonhos, não de produtos. Um carro dito popular e sendo anunciado como uma grande oferta, por quase 60 salários mínimos, serve para duas coisas para a massa que não faz parte do 1% citado: parcelar um carro em infinitas prestações, gerando renda ao banco, à concessionária, à montadora, etc., ou sonhar com o dia utópico em que poderá comprar um automóvel.

A princípio isso poderia gerar uma crítica ética, à qual a emissora poderia se esconder utilizando o falso argumento de que produz conteúdo e quem não gosta tem a liberdade de mudar de canal. O problema maior aparece quando vemos que a concessão às televisões, sobretudo no início recente da TV brasileira, era dada diretamente pelo presidente, sem nenhum critério técnico.

Não é difícil perceber que opositores ao governo jamais receberiam a autorização para um veículo de manipulação, digo, comunicação em massa. Desta forma, com base na amizade, Roberto Marinho conseguiu sua primeira concessão dada por Kubitschek.

Recentemente, em resposta às manifestações populares que diariamente entoavam o coro de “a verdade é dura, a rede Globo apoiou a ditadura”, a emissora admitiu o apoio, em nota seguida de uma retratação. Alegou ter sido enganada, assim como toda a sociedade brasileira, uma vez que os militares haviam prometido uma intervenção breve, que na verdade durou duas décadas.

O que o filme mostra, a Globo esconde e a sociedade sabe é que a emissora apoiou todos os presidentes, em maior ou menor grau, ajudando a derrubar os mesmos quando a queda já era inevitável. Na via de mão dupla entre poder executivo e organizações Globo (que incluem também mídia impressa, rádio e, atualmente, internet e TV por assinatura) há um pacto de não agressão com limites muito nítidos.

Por um lado o governo pode não renovar a concessão da emissora, por outro esta tem poder de sobra para derrubar qualquer presidente. Assim trocas de farpas ocorrem com precisão cirúrgica para que este equilíbrio, benéfico para ambas as partes e prejudicial para o país, seja mantido.

Há 20 anos o documentário já questionava a idoneidade da Globo, tanto com hipóteses de manipulação de dados em relação ao crescimento econômico durante a ditadura militar quanto com fatos dificilmente refutáveis como a manipulação do debate entre Lula e Collor, a “maquiagem” do início da campanha das Diretas Já, a distorção de pesquisas eleitorais e, agora, o apoio à ditadura militar.

Pelo apoio à ditadura houve um pedido de desculpa, no qual exaltavam a democracia e a liberdade. Curioso já que este mesmo documentário tem sua exibição proibida no Brasil, graças ao peso político da Globo. Sua exibição sempre ficou restrita a locais não comerciais e agora na internet.

Com tantas incoerências e mentiras que rondam a emissora família Marinho, questionar sua atual veiculação de notícias é mais que pertinente. É latente a diferença que a emissora dispensa às notícias de corrupção ou escândalos políticos e a manipulação dos telespectadores, eleitores, continua forte, ainda que o monopólio da terceira maior emissora do mundo venha diminuindo.


terça-feira, 3 de setembro de 2013

Imaginaerum

Logo após os finlandeses do Nightwish lançarem o sétimo álbum de estúdio, Imaginaerum, a ideia de um filme baseado na obra ganhou forma. A parceria não tão explorada entre cinema e música rendeu o longa homônimo, que é um bom filme e mesmo não sendo uma obra-prima do cinema, tem pontos interessantes e quem sabe não inspira outras bandas a complementarem o trabalho de estúdio nas telas.

O diretor Stobe Harju também assina o roteiro, junto com Tuomas Holopainen, tecladista e principal compositor da banda. Como era de se esperar, o enredo traz muito do universo onírico e grandiloquente, que marca o estilo da banda, trazendo ainda referências cinematográficas marcantes, sobretudo com o boneco de animação, que tem clara inspiração no cineasta Tim Burton.

A história do filme gira em torno de Tom Whitman (Quinn Lord, Tuomas Holopainen e Francis McCarthy, aos 10, 47 e 70 anos), que a beira da morte devido a um AVC, delira em coma, fantasiando ainda ser criança. Sua memória da vida adulta não existe e em seu mundo de fantasia – onde podemos conferir as músicas do Nightwish, inclusive com os músicos tocando, fato que a princípio parece interessante, mas nem sempre foi bem encaixado nas sequências do filme – o velho homem segue sendo uma criança.

Fora do mundo onírico de Tom, sua filha Gem Whitman (Marianne Farley) não chega a ter grandes problemas em ver o pai à beira da morte, encarando com indiferença a escolha de desligar ou não os aparelhos que o mantém vivo. Tangenciando o tema da eutanásia, que não é a ideia do filme, o ponto central é que Gem se sente rejeitada pelo pai, carente da atenção que ele nunca lhe deu.

Ainda que esse enredo tenha se desenvolvido de forma interessante no filme, a inexperiência do diretor com este seu primeiro longa e mesmo de Tuomas, com seu primeiro contato com o cinema, ficam latentes em algumas partes, não sendo suficientes os requintes de superprodução para dar ao filme a qualidade final que mereceria.

Mesmo assim vale a pena um olhar mais atento sobre o desdobramento da história de pai e filha, que mal se reconhecem nestes papéis familiares. Em meio ao universo de sonhos e a fria realidade somos levados por um corredor estreito, esbarrando ora na insegurança da filha, ora na desconfiança, dada a demência do pai. O fato é que independente de filmes, fantasias ou enfermidades, dois pontos de vista sobre o mesmo fato, ou sobre a mesma relação ‘pai e filha’ nunca são iguais.

A versão que temos sobre nossas próprias vidas é construída a cada vez que relembramos fatos vividos. Por mais detalhistas que tentemos ser, ou talvez exatamente por sermos detalhistas, alteramos mentalmente os acontecimentos, excluindo algumas coisas e acreditando que realmente aconteceram pontos gostaríamos que tivessem acontecido. Assim Gem construiu a própria imagem do pai, corroborando a cada dia sua ideia pré-concebida de abandono. Por outro lado, alterado pelos problemas mentais, o pai vivia sonhos grandiosos para sua infância, desde seu boneco de neve que ganhava vida até o duelo entre bem e mal, vivido imaginariamente.

Em um filme fica mais fácil acompanhar duas versões da mesma história, confrontando os pontos contraditórios, conferindo de perto os equívocos e tirando as próprias conclusões sobre o que é apresentado. O que nos faz pensar em uma analogia com a vida real, não necessariamente em um conflito familiar, mas em relação à própria imagem que fazemos de outras pessoas.

Diante de uma situação em que todos os envolvidos juram ter completa certeza sobre o passado, em versões conflitantes entre si, como garantir que a veracidade dos fatos já não foi alterada, ainda que sem intenção, pelos sentimentos tendenciosos de nossa própria consciência?

Na verdade essa garantia não existe. Muitas vezes sequer uma acareação pode resolver determinados impasses e, não tendo na vida o recurso lúdico do cinema para retratar fatos passados, nos resta considerar a hipótese de nossas certezas não serem tão corretas quanto pensamos, e quem sabe considerar os benefícios da dúvida.

Com o filme o Nightwish mantem a característica de instigar aqueles que conferem suas obras a não somente contemplar o conteúdo, mas também pensar nos temas trabalhados e buscar significados em metáforas e histórias.


quarta-feira, 21 de agosto de 2013

Na quadrada das águas perdidas

O Brasil é um país múltiplo. Em todos os sentidos. Chega a soar estranho nos referirmos a ele no singular. Seria muito mais condizente falarmos em Brasís, vários, especificando sobre qual exatamente queremos dizer quando o singular Brasil é citado.

Dentro do mesmo nome há desde grandes megalópoles como a cidade de São Paulo até o sertão nordestino, isolado e aparentemente inóspito, enquanto um olhar mais atento não revela a riqueza local.

É este olhar atento que os diretores Wagner Miranda e Marcos Carvalho nos oferecem, traduzido brilhantemente pelo sertanejo Olegário (Matheus Nachtergaele), que como em uma poesia sem palavras cruza o sertão feito um personagem de João Cabral de Melo Neto, apresentando com naturalidade as dificuldades e recompensas que a terra hostil tem a oferecer.

Munido de poucos bens materiais, Olegário deixa a casa de pau-a-pique na companhia de duas cabras, na carroça puxada pelo burro, com a escolta de um cão e sob o olhar simbólico do urubu, que parece segui-lo de perto.

Durante a peregrinação nordestina, famosa desde o clássico “Vidas Secas”, vemos o homem em comunhão com o meio que o cerca. Olegário se diferencia de Fabiano, o protagonista que Graciliano Ramos imortalizou, por ser ainda mais solitário e, consequentemente, ainda mais calado. O filme não tem diálogos, não tem monólogos, não tem palavras. Tudo é dito com imagens, com as cores vivas e quentes do sertão.

A serpente denunciando a morte; as tartarugas (ou algum parente próximo) anunciando a vida, que assim como as recém-saídas do ninho tende a ser lenta, porém resistente ao sol e à seca; a ave de rapina entre os dois extremos, a espreita de uma morte que lhe garanta a própria vida. São várias as metáforas que enriquecem a caminhada de Olegário, que entre guerras e pactos com o sertão, segue seu caminho obstinadamente.

Diante das dificuldades que parecem tornar a vida quase impossível, podemos ser tentados a pensar que aquela condição humana é inadmissível, sobretudo com a existência velada da chamada indústria da seca, que lucra e, portanto sustenta muitas daquelas dificuldades. Entretanto não é só com as recompensas que o sertão oferece ao nordestino que podemos encarar sua vida como muito mais natural que a vida urbana.

Muitas dificuldades do sertanejo poderiam ser sanadas com medidas relativamente simples e alguns investimentos em infraestrutura, porém não seria uma alternativa viável pensar no sertão urbanizado, com muitos elementos que só estão presentes na cidade. Mesmo que o sertanejo tenha direito a serviços básicos, aos quais todos os cidadãos têm, pelo menos em tese, direito, aquele ambiente não deve ser totalmente descaracterizado ou modificado por intervenções humanas.

Um exemplo prático pode ser notado a partir de Guimarães Rosa. O médico/escritor passou parte da vida vagando pelo sertão mineiro, visitando povoados isolados para cuidar da população doente. Tudo isso no lombo de animais e sem a infraestrutura de um grande hospital. As histórias vividas viraram grandes obras da literatura brasileira.

Hoje, quase cinquenta anos depois da morte de Guimarães Rosa, a figura do médico que viaja sem rumo e sem estrutura, em busca de moléstias a serem tratadas, ficou para trás. A tentativa de trazer médicos de outros países para atuarem em áreas isoladas, como o sertão retratado no filme, esbarra no falso argumento de que a carência do país não é de profissionais, mas sim de infraestrutura.

De fato, os investimentos no desenvolvimento de cidades são precários e isso influencia na baixa qualidade de serviços de saúde, educação, segurança, etc., entretanto esperar que locais ermos sejam reestruturados e cidades sejam construídas no lugar de vilarejos seculares é utopia inviável e desnecessária.

Em todo o Brasil, ou em muitos brasís, há diversos ‘olegários’, que precisando de serviços básicos não podem esperar pela chegada de investimentos que, mesmo contando com uma política extremamente eficiente, diferente da que estamos habituados, demorarão muito tempo para chegar.

O que fica claro no filme é que dificuldades podem ser contornadas sem que a harmonia entre homem e meio-ambiente seja radicalmente alterada, sendo possível a união de conhecimentos empíricos com pequenas intervenções tecnológicas que facilitem a vida daqueles que vivem em locais tão distantes. Não é imprescindível a construção de toda uma infraestrutura de primeiro mundo para que só então profissionais possam atuar.


terça-feira, 13 de agosto de 2013

A Verdadeira História de Lena Baker (The Lena Baker Story)

Uma mulher que confessa o assassinato do patrão é julgada e condenada à morte nos EUA – não é um spoiler, esse desfecho já é apresentado no trailer ou na sinopse. A princípio essa sentença deve ganhar muitos adeptos. Com sede de vingança, parte considerável da população tem se achado no direito de julgar e condenar, geralmente de forma bastante impiedosa.

Assim foi com Lena Baker (Tichina Arnold) em 1945. Se hoje, mais de um século após seu nascimento, a sociedade ainda conta com o ranço do preconceito racial e com o machismo, ambos teoricamente inexistentes em sociedades ditas democráticas, mas que por vezes aparecem de forma escancarada na sociedade, podemos imaginar no início do séc. XX, no sul dos EUA.

Este é o cenário do filme do diretor Ralph Wilcox, que nos apresenta a protagonista desde a infância, passando por várias dificuldades devido ao preconceito em relação à cor de sua pele. Semelhante à vida dos negros no Brasil, mesmo após o fim da escravidão institucionalizada os EUA não davam muitas alternativas aos descendentes de uma imigração forçada.

Os negros daquela região acabavam forçados a trabalharem nas fazendas de algodão, de uma forma ou outra subjugados aos brancos. Essa obrigação não era direta, ou seja, teoricamente os negros já estavam livres para ganharem a vida como quisessem, porém o trabalho pesado da lavoura era o único que aceitava os ex-escravos, que evidentemente tinham o acesso à educação proibido. 

Sem estudo e sem alternativa de trabalho para o próprio sustento, Lena começa a se prostituir ainda jovem. Como sempre este é um campo aberto para a união de machismo, moralismo e preconceito racial. Quem frequenta os prostíbulos e procura os serviços das prostitutas negras são os homens brancos, muitas vezes casados e frequentadores de igrejas aos domingos. Apesar disso a culpa sempre cai sobre as mulheres, que supostamente levam os homens para o chamado mau caminho – pobrezinhos.

O desenrolar da vida de Lena indicava mais uma negra dentro do padrão de vida imposto, ou seja, explorada para conseguir uma vida minimamente aceitável, com filhos que muito provavelmente seguirão os mesmos passos por falta de alternativa. A particularidade se dá por nuances do destino.

Como tantas outras, Lena foi abusada várias vezes pelo patrão. Lutando contra a violência física e contra a pressão psicológica por parte da família branca que, como sempre, tentava colocar a culpa na vítima, em uma tentativa de omitir o alcoolismo de seu patrão. O subterfúgio de culpar o agredido não é muito criativo, porém infelizmente é tão convincente que até hoje é frequente, em casos de estupro, a menção às roupas curtas ou comportamento da vítima.

Se optasse por tentar enfrentar a opressão e lutar por direitos que na época nem eram reconhecidos, Lena esbarraria na repressão que seria direcionada não só a ela, mas também à família. A mulher que tolerou até o limite extremo a falta de liberdade e os abusos teve que enfrentar um júri composto exclusivamente de homens brancos – que representavam exclusivamente a classe que a oprimiu durante toda sua vida. Alguma dúvida de que o julgamento tinha cartas marcadas?

As nuances de um julgamento, como a composição do júri, influencia julgamentos em todos os casos. Não são raras as lutas feministas para que estupradores sejam julgados por mulheres, que não querem vingança, mas justiça; juízes compostos pela elite econômica, que têm condições de dedicar a vida toda à carreira de direito, julgam criminosos que muitas vezes sequer sabem ler, com a arrogância da meritocracia, típica daqueles que herdaram tudo o que têm dos pais.

Diante de um caso como o relatado no filme, as pessoas tendem a se esconder com o falso argumento de que os crimes não devem ser impunes. De fato não devem, mas o direito não é uma ciência exata. Quem quer justiça com as próprias mãos ou exige uma pena draconiana para qualquer delito, deveria pensar só um pouco no contexto histórico dos crimes.

Assim como o julgamento de Lena Baker foi baseado em preconceitos históricos, no Brasil, há poucas décadas havia, por exemplo, o crime de honra. Um estupro era considerado crime contra o marido da vítima, não contra a mulher abusada. Hoje isso é absurdo, mas como soarão os julgamentos tão enfáticos que a população dispensa a crimes cotidianos neste início de séc. XXI?


terça-feira, 6 de agosto de 2013

Melaza

Melaza retrata um pouco da vida de camponeses em Cuba. A migração de boa parte da população mundial do campo para as cidades, depois da revolução industrial, tem criado em todos os países identidades distintas entre a população. Aqui o diretor Carlos Lechuga deixa claro que tais identidades demandam políticas também distintas.

Em todo o mundo a vida acaba sendo mais difícil para os camponeses, que por vezes acabam passando necessidades. Parece difícil a quem sempre viveu na cidade compreender que o cotidiano rural é bem distinto de uma vida urbana.

Em Melaza, cidade fictícia que como o nome indica vive do cultivo da cana, Monica (Yuliet Cruz) vive com sua filha (Carolina Márquez), o marido Aldo (Armando Miguel Gómez) e a mãe (Ana Gloria Buduén) em uma cadeira de rodas. Às dificuldades comuns dos camponeses a família deve incluir também o delicado período da economia cubana com o declínio do mercado de açúcar, e o empenho do governo para impedir a concentração de renda, que por vezes acaba prejudicando os pequenos produtores.

A tradição de práticas esportivas da ilha mantém forças, mas a falta extrema de recursos faz com que Aldo tenha que lecionar natação em uma piscina sem água, apenas treinando o movimento ideal. A indústria que Monica trabalha já faliu, mas deve manter as aparências como se estivesse funcionando para manter os recursos que recebe.

Se a especulação imobiliária é um grande problema em grandes cidades, concentrando a renda nas mãos de quem possui muitos imóveis – muitas vezes herdados ao longo de várias gerações da família – e excluindo de algumas partes da cidade quem não tem dinheiro para pagar o aluguel das casas, o extremo controle estatal para evitar tal prática pode implicar em tirar a fonte de renda de uma família como a do filme, que tenta alugar um quarto apenas para aumentar um pouco a renda.

O mesmo ocorre com o comércio. Não é muito difícil perceber que o livre comércio não é tão livre nas cidades brasileiras, se pensarmos que, sobretudo em determinados ramos, há poucos comerciantes controlando preços e ofertas. Para barrar esse tipo de exclusão foi imposta a necessidade de uma autorização estatal para a venda.

O problema é que muitas vezes tudo fica tão burocrático que um pequeno produtor quer apenas vender mercadoria para sobreviver, ou, no caso de Aldo, gostaria de pegar carne com um amigo para vendê-la, pagando por isso depois, mas não pode devido à falta de autorização.

Ao contrário dos pequenos produtores rurais brasileiros, Monica e sua família não são absorvidos por grandes latifundiários em conluio com empresas, todavia à quem passa necessidades não faz grande diferença quem é o agente causador dos problemas.

Um estado que intervenha com o intuito de não permitir a concentração extrema de renda não só é benéfico como necessário, porém é impossível prever de um gabinete todas as implicações das intervenções postas em prática. O que vemos em Melaza é a distância entre estado e moradores, talvez bem próxima da distância entre essas mesmas partes no Brasil, porém sem a presença de latifundiários.

Diante de necessidades sociais o desenvolvimento das ações pessoais é praticamente um roteiro pré-escrito, por se repetir com frequência. As pessoas tentam burlar as leis, arriscam quebrá-las e evitam até a última esperança romper com os valores morais. Essas ações, que não deixam de ser imorais a quem as praticam, são postas em prática pela necessidade, e podem ser representadas desde uma inocente ação de criança, que rouba um doce que havia sido deixado como oferenda, até adultos que precisam sustentar a família, mais que sustentar a moral.

O dever básico de um estado é ouvir a população sob sua tutela, e isso deve ser feito de forma contínua, para que as demandas sociais, essencialmente dinâmicas, não caiam na ilusória pretensão dos governantes de sanar problemas com medidas anacrônicas.

Igualmente importante é que todas as pessoas sejam ouvidas, pois só assim a desigualdade pode ser combatida de forma eficiente. Ainda que as leis devam ser aplicadas de forma igualitária, é impossível planificar a sociedade ao ponto das mesmas medidas para zonas urbanas serem adequadas também às zonas rurais.

O poder estatal com influência direta do capital privado é extremamente nocivo – fato que pode ser comprovado folheando qualquer jornal brasileiro – porém o estado deve, a qualquer custo, servir a população, o que não deve ser restrito a um pacote esporádico lançado de um avião aos moradores, como mostrado no filme.


terça-feira, 30 de julho de 2013

Sociedade dos poetas mortos (Dead poets society)

A Welton School, retratada no filme do diretor Peter Weir, tem muitos aspectos típicos de instituições de ensino norte-americanas. O internato tem fortes bases religiosas e segue uma metodologia extremamente ortodoxa. Mesmo com algumas particularidades em seu funcionamento, muito do que é exposto no filme pode ser útil em uma análise sobre o sistema educacional, que costuma seguir alguns padrões nem sempre benéficos.

O foco unidirecional da escola em preparar seus alunos para a universidade é posto como virtude por seus diretores, entretanto esconde a supressão dos sonhos individuais, já que fica claro no filme a decisão dos pais sobre o futuro dos filhos. Os jovens não chegam a fazer grandes questionamentos em relação à interferência, nem revindicam liberdade de escolha. A rebeldia dos internos fica por conta de atitudes consideradas intransigentes, como fumar escondido nos quartos e fazer piadas com os religiosos da escola.

O que quebra a letargia do sistema de ensino da referida escola – que tem como um dos quatro pilares a tradição – é o professor de literatura inglesa, John Keating (Robin Williams), que instiga os estudantes a, pouco a pouco, usar a cabeça para pensar e criar, não apenas acumular conteúdo. A princípio mesmo as pequenas mudanças, como levar os estudantes para fora da sala de aula, já soavam estranhas àqueles acostumados ao estilo tradicional e ineficiente de aulas, em que os professores apenas falam e os estudantes apenas escutam.

Em pouco tempo, por apresentar alternativas muito mais atrativas, Keating cativou seus alunos e mostrou que o conteúdo escolar não precisava ser necessariamente um martírio. Os textos lidos poderiam ser inspiração para que eles escrevessem seus próprios poemas, expressassem as próprias emoções e sentimentos ao invés de simplesmente viverem a vida que seus pais escolhessem. Poderiam aproveitar os espaços físicos da escola, que apesar de serem extremamente atraentes, eram mal aproveitados por aqueles que utilizavam apenas a opressora sala de aula. Enfim, Keating ensinou na teoria e na prática o significado da expressão latina Carpe Diem.

Foi ao procurar sobre o passado do professor, que fora aluno da Welton School, que os estudantes conheceram a “Sociedade dos Poetas Mortos”, um grupo de estudantes que se encontravam fora do horário escolar para lerem poemas – clássicos e de autoria própria – simplesmente por gostar disso, não por serem obrigados para fazer uma prova.

O problema, ao menos para os religiosos que dirigem a escola, é que quem aprende a estudar por ver sentido naquilo que faz, ao invés de absorver conteúdo sem saber por que, também desenvolve senso crítico, que costuma ser tolhido em escolas e, sobretudo em igrejas. O professor, que já não era bem visto pelos diretores, por romper com o sistema ortodoxo de ensino, passou a ser muito mais questionado quando seus alunos começaram a reivindicar mudanças na escola – fato considerado uma afronta.

É interessante notar que as ações de Keating não vão além de estimular seus alunos. Ele intervém pouco no cotidiano da sala com a expectativa de estimular a criatividade sem limites, o que é bastante louvável, porém acabou abdicando dos benefícios da experiência, que poderia guiar os jovens, não como um limite para a potencialidade dos mesmos, mas como responsabilidade para negociar e expor suas opiniões críticas em relação à escola. Talvez essa tenha sido a falha do professor.

O estímulo à criação em sala de aula é fundamental para dar sentido ao conteúdo aprendido, transformando o mesmo em conhecimento, mas isso não dispensa a presença do professor, sobretudo na orientação sobre como lidar com adversidades dentro de uma hierarquia de poder que não se desfaz repentinamente.

Se em um extremo existe a intransigência de pais e diretores da escola, que não abrem mão de preparar os estudantes para um futuro bastante longínquo para os padrões dos adolescentes, no outro existe a grande liberdade jogada no colo de estudantes que não estavam acostumados a lidar com ela. É verdade que, conforme deixa claro o Prof. Keating, não há limites para as realizações dos jovens, mas a maturidade que pode partir do mestre auxilia no sentido de não apenas ensinar o conceito de Carpe Diem, mas mostrar que é mais válido estende-lo para toda a vida, sabendo recuar estrategicamente em determinadas situações, do que vivê-lo em sua plenitude por pouco tempo, por não compreender que as relações sociais existem e não mudam de uma hora para a outra.

A Sociedade dos poetas mortos pode ser bem mais que um filme inspirador e bonito. Abre espaço para muitas críticas ao sistema educacional e à forma como as pessoas interagem – ou deveriam interagir – no ambiente escolar. Entre tantos problemas que poderiam ser citados em relação à educação, a falta de diálogo entre os agentes ainda tem grande destaque.



terça-feira, 16 de julho de 2013

A experiência (Das Experiment)

Apesar de ser um filme alemão, com direção de Oliver Hirschbiegel, a experiência do longa foi realizada nos EUA. O fato de o filme ter se baseado em acontecimentos reais e, pelo que pude encontrar da experiência real, ter sido fiel em boa parte do tempo, o torna ainda mais inquietante e perturbador.

Após um início impreciso e às vezes um pouco confuso, as peças começam a se encaixar e criamos afinidade com os personagens selecionados para a tal experiência. Os vinte selecionados não sabiam muito sobre o projeto, apenas que iam receber uma boa quantia em dinheiro, perderiam alguns direitos civis (o que gera o maior estranhamento por parecer estranho que alguém aceite isso, mesmo que por dinheiro) e que em nenhuma hipótese poderiam usar a violência, que acarretaria em expulsão.

Quando oito deles são escolhidos para serem os presos e os doze restantes os guardas de uma prisão fictícia, as instruções são para atuar com exatidão; o que não chega a acontecer no começo. O clima de amizade ainda imperava, mesmo que os presos fossem identificados por números, para que tudo ficasse mais impessoal, e os guardas tivessem autorização para agir com rigor (porém, sem violência).

Era de se esperar que sem o treinamento adequado, apenas com algumas instruções sobre manter a ordem, os guardas seriam os primeiros a incorporarem as características dos personagens em questão e utilizar a autoridade a eles atribuída.

Entre os presos, aproveitando o clima descontraído que havia no começo da experiência, as brincadeiras desencadearam uma pequena rebelião, que foi reprimida com rigidez pelos guardas. A partir disso o filme entra em uma tensão crescente, que prende a atenção ao mesmo tempo em que desperta sensações estranhas, sobretudo quando lembramos que muitas daquelas cenas de fato ocorreram.

Ciências humanas diferem das exatas por não abrirem espaço para experimentos em laboratório. Não dá para controlar as condições e repetir o teste para verificar os resultados já que há o comportamento humano, imprevisível. Apesar disso é possível verificar padrões de comportamento, como no caso em questão.

Das iniciais duas semanas previstas para a duração da pesquisa, após alguns dias tudo teve que ser interrompido. Sem entrar em detalhes sobre o enredo, é possível adiantar que o final foi a parte que mais sofreu alterações em relação ao experimento real, sem que isso promova grandes alterações de conteúdo, foi apenas uma transposição para a linguagem cinematográfica.

Rompendo os limites do filme e até mesmo da experiência que deu origem à obra, é possível pensarmos na relação de prisioneiros e guardas em uma prisão real, impossível de ser desfeita e com muito menos rigor em relação ao uso da força. Ainda que em um presídio os detentos tenham cometido crimes, portanto não estão em condição idêntica dos selecionados na experiência, a relação de poder continua questionável.

Mesmo que os agentes penitenciários tenham, na condição de representantes do estado, o monopólio legítimo da violência, os limites e até a necessidade desse direito é bastante restrito. No filme o uso de violência física é proibido, apesar disso há vista grossa para muitas atitudes dos guardas, e é notável que existem várias formas não física de ações violentas.

Imaginando que a experiência visava representar com a maior exatidão possível as condições reais de uma cadeia, é de se supor que entre os detentos houvesse motivos distintos para estarem presos. Delitos diferentes demandam penas diferentes e estas devem ser definidas por um juiz, sendo totalmente excluídos da punição os maus tratos, sobretudo quando é feito um nivelamento de todos os prisioneiros, com todos tratados da mesma forma agressiva, independente dos motivos que os levaram à prisão.

É comum quando se fala sobre o tratamento dispensado aos presos os questionamentos em relação ao merecimento, dado que se estão presos é porque algum delito foi cometido. O filme de Hirschbiegel evidencia o excesso por parte de guardas que perdem o controle e deixam o poder de uma farda dominar a própria personalidade, exteriorizando a revanche de sentimentos pessoais reprimidos.

A questão extrapola a forma como cada detento merece ser tratado, dado que, como já comentado, a pena para cada delito não deve ser pensada pelos agentes penitenciários, tão pouco deve ser acrescida de tortura. O fato é que o poder se manifesta em diferentes esferas, pois mesmo que os guardas sejam subordinados a uma série de superiores, diante de um detento ele é a autoridade e é fundamental que haja um treinamento extremamente eficiente para que essa autoridade não seja utilizada de uma forma que não pode ser chamada de animalesca, pois animais não torturam seus semelhantes.


*Não encontrei o trailer legendado, mas tem o filme dublado completo no Youtube.

terça-feira, 2 de julho de 2013

O dia que durou 21 anos

"Nós devemos amar a Deus e se não amarmos a Deus devemos temer a Deus. De modo que aqueles que não amam a revolução ou a situação que foi imposta, pelo menos devem temê-la, porque nós saberemos, se necessário, impô-la"
(General Carlos Guedes, 1964)

Com a recente efervescência política na sociedade brasileira e a onda de nacionalismo que aproveitou as revoltas populares para ganhar força, o espectro de um golpe militar voltou a rondar o país, mesmo depois de quase três décadas de latência.

Como a história tem muito a ensinar sobre o presente, esse documentário dirigido por Camilo Tavares mostra uma semelhança que chega a ser assustadora entre os meses predecessores ao golpe militar de 1964 e o período que estamos vivendo atualmente.

O longa dividido em três partes começa com “A Conspiração”, mostrando como o presidente João Goulart vinha conquistando o apoio popular através de promessas que sempre desagradaram às classes dominantes. Falando claramente em realizar uma reforma agrária, que solucionaria os confrontos no campo, e começando a indicar as ilegalidades nas concessões para empresas estrangeiras, o presidente obteve em pouco tempo o repúdio da elite.

Começa a entrar em cena o embaixador dos EUA, Lincoln Gordon, que de acordo com o material apresentado pelo filme, teve papel decisivo para o apoio dos norte americanos ao golpe. Muitos estudiosos negam esse apoio, ou mesmo qualquer influência dos EUA, mediante provas contundentes, entretanto história não é uma ciência exata e as gravações apresentadas no documentário são bastante convincentes.

Com o capitalismo em franca expansão e no ápice da guerra fria, tendo o IBAD (Instituto Brasileiro de Ação Democrática), uma organização anticomunista financiada por vários empresários brasileiros e norte americanos, voltado a bombardear políticos como Goulart, Brizola e as ideias de reforma agrária ou a desapropriação de concessionárias que não cumprissem seu dever, não foi muito difícil conseguir o apoio da população, sobretudo a classe média.

Cabe salientar aqui que os problemas que o presidente visava combater se estendem claramente até hoje, com o país tendo vários latifúndios improdutivos, fazendas que empregam trabalho escravo, desmatamento predatório de mata nativa, mas intocáveis enquanto muitos pequenos agricultores lutam no MST por um pedaço de terra para cultivar. Concessionárias privadas que lucram muito e oferecem pouco tomariam todo o espaço deste texto. As teles, as empresas de ônibus, concessionárias de rodovias cobrando pedágios absurdos, etc. Todas intocáveis, geralmente até mesmo pelos protestos populares, cujas lideranças se escondem.

Com o engodo do comunismo, que aterroriza a classe média mesmo que esta não saiba do que se trata, a oposição ao governo teve terreno livre para implementar a ditadura. O curioso é que o termo “comunismo”, da forma como vem sendo utilizado, em nada se assemelha à teoria que o desenvolveu. Por tratar-se originalmente de uma sociedade extremamente evoluída, na qual o povo governa diretamente, dispensando assim um governo centralizado, com um pouco de rigor torna-se cômico, desde aquela época, falarmos em Cuba, China ou União Soviética comunista.

Este símbolo, que até hoje aterroriza alguns setores da sociedade brasileira, já não funciona nos EUA. Com o capitalismo tão enraizado e o fantasma da União Soviética desfeito, o país encontrou uma nova fonte de pânico com o terrorismo. Assim como aqui tudo parece ser justificado quando é feito contra o comunismo, lá tudo é válido na fictícia luta contra o terror.

A segunda parte do filme aborda “O golpe de estado” e como a tomada de poder pelos militares sequer sofreu a rejeição por eles esperada. Com o discurso de Jango baseado em reforma agrária, reforma tributária, reforma eleitoral e justiça social, houve prontamente a “marcha da família com Deus pela liberdade”, evocada como uma comemoração pelo fim da ameaça comunista. Ainda que na época as igrejas evangélicas não tivessem a força de hoje, o conservadorismo clerical tinha grande poder sobre as massas, convencendo os fiéis de que as reformas de base, prometidas pelo presidente, eram maléficas.

O filme termina com a terceira parte, “O escolhido”, mostrando o desdobramento do golpe e as tentativas patéticas de justificá-lo. O principal argumento dos militares é o de que só tomaram o poder depois de informações seguras de que o presidente não convocaria eleições em 1965, conforme previa a constituição. No mínimo sem sentido o combate a esse medo deixar o país sem eleições diretas até 1989.

A atual situação do Brasil torna-se preocupante, não por uma comparação direta entre a atual Presidenta e João Goulart, mas pelos argumentos conservadores, os ataques aos movimentos sociais e a manipulação da população em torno de um movimento supostamente sem partido (mas que ataca nominalmente apenas o que está na situação), clamando, difusamente, por ideais integralistas e travestindo-se de uma necessidade de um grande salvador da pátria.

Dificilmente tudo isso culminaria em um novo golpe nos moldes de 1964, com a escória de nossa sociedade tomando o poder por tanto tempo, mas pela proximidade física, social, econômica e política, tivemos recentemente no Paraguai e Honduras os presidentes depostos e um governo transitório que chamou eleições, o mesmo foi tentado sem sucesso na Venezuela. Vamos torcer para que não passem de coincidências.


terça-feira, 18 de junho de 2013

Pixo

João Wainer e Roberto Oliveira levam às telas um tema geralmente relegado à marginalidade. A pichação costuma ser tão reduzida ao vandalismo que quem não tem contato com esta realidade tem até dificuldade de enxergar qualquer coisa diferente de uma violência.

Porém o cinema tem como uma de suas funções levar aos que assistem uma realidade diferente, sem que haja a necessidade de vivenciar o que é visto. Assim os diretores dão voz àqueles que costumam ter como única forma de expressão os muros e prédios a serem pichados.

Com origem na necessidade de um canal de expressão política, as primeiras pichações a ganharem destaque foram as realizadas durante a repressão da ditadura militar. Uma forma barata e eficiente de expressar o descontentamento com o regime, ainda que tivesse a necessidade de ser uma mensagem concisa e naturalmente efêmera. Aos poucos a ideia de se expressar em muros extrapolou o contexto político nacional, chegando às periferias e, detalhe fundamental, desenvolvendo sua própria estética.

Talvez esse seja um ponto central que permeia o filme, portanto o tema. É muito fácil pegarmos uma ação criminalizada desde sua origem, pois os militares evidentemente já desqualificavam essas ações, e taxarmos de vandalismo, dizer que não é arte e que não deveria existir. No entanto, para quem está imerso nesta cultura, o sentido é bem diferente. Conforme o filme mostra claramente, um dos jovens estudou até a oitava série e mal consegue ler palavras simples em letra de forma, mas decifra com a facilidade com que você está lendo esse texto as letras codificadas do pixo.

Quanto ao argumento mais que frequente de que o pixo deixa a cidade feia, primeiramente uma cidade como São Paulo, com seus prédios abandonados e paredes sujas, não precisa de ajuda para ficar feia, além disso nosso padrão estético também é construído de acordo com nossas experiências. Acostumados com a imposição da estética burguesa, ouvimos desde crianças que as obras expostas em um museu são belas, assim nos deparamos com obras cubistas ou do expressionismo abstrato e dizemos serem bonitas, ainda que muitas vezes não conseguimos compreender seu sentido.

Se um artista, socialmente reconhecido como tal, utiliza telas ou cria formas diferentes para expressar sua criatividade, os pichadores veem na cidade a forma de expressar uma realidade com a qual não costumamos ter acesso. É cômodo morar em um bairro nobre e desqualificar os pichadores e seus trabalhos, porém a força desta intervenção vem de periferias carentes de formas alternativas de cultura, de outras formas de expressão e mesmo educação institucional.

Enquanto desqualificamos o trabalho dos pichadores, o documentário nos mostra que São Paulo é uma atração turística para estrangeiros que visitam a cidade especificamente para ver os prédios pichados, já que a cidade é a única à oferecer esta arte de forma tão intensa e rica.

E esses artistas, vândalos para alguns, mas que de uma forma de outra atraem turistas para a cidade, sequer tem um retorno concreto disso. Escalar um prédio sem nenhum equipamento de segurança, chegar perto da rede de alta tensão, “rodar” nas mãos da polícia. Tudo isso tem um propósito maior do que somente vandalismo. É um desafio, busca reconhecimento, forma de expressão. Motivações e trabalhos que costumam ser incompreensíveis para quem não conhece.

Antecipando a crítica pouco criativa, mas inevitável, eu não gostaria de ter minha casa pichada. Tenho minhas opiniões pessoais em relação ao uso da pichação, mas o reducionismo de taxar todo o movimento de vandalismo é ineficiente. Tão ineficiente quanto a ação da polícia ao deter os pichadores. Agredir, humilhar, pintar uma pessoa que, mesmo inconscientemente está buscando uma fuga da realidade dura que enfrenta é sem dúvida uma forma trágica de tratar o problema, como costuma ser a especialidade da polícia paulistana.

Apoiar a agressão aos pichadores sem compreender suas causas é tolerar a intervenção urbana igualmente violenta, tanto no descaso urbanístico por parte dos governantes quanto na ação publicitária massiva da maioria das empresas privadas, que tiveram uma pequena regulamentação com a lei cidade limpa, mas já começam a driblar a proibição em pontos de ônibus “patrocinados”.

Da mesma forma que o documentário, o objetivo aqui não é concluir se a pichação é arte ou não, até porque o caráter transgressor e marginalizado está em sua essência e é desejado pelos pichadores, mas é inegável que se trata de uma expressão cultural, sendo que nesta qualidade, deve ser mais compreendida do que o reducionismo de vandalismo permite.


quarta-feira, 12 de junho de 2013

Terapia de Risco (Side Effects)

Se por um lado o homem vem desenvolvendo a medicina há milênios, com registro de cirurgias complexas desde a civilização egípcia, há mais de cinco mil anos, por outro muitos afirmam que ainda estamos engatinhando no que diz respeito à cura. De fato alguns procedimentos ainda são extremamente invasivos, outros agressivos ou pior, empíricos, com bases quase intuitivas, como alguns tratamentos psiquiátricos.

O diretor Steven Soderbergh aborda esse aspecto incluindo os obstáculos da medicina contemporânea, que além das dificuldades biológicas deve driblar os problemas criados pelo homem. Entre eles a especulação financeira dos grandes laboratórios, a indústria de seguros, os processos, além de uma característica que não entra no filme – talvez brasileira demais – a máfia dos planos de saúde.

Não são raras as vezes que um médico acaba sendo peça chave em um julgamento, assim Dr. Jonathan Banks (Jude Law). Frequentemente só ele pode dar um veredicto sobre as condições clínicas do réu em determinado crime, mas há muitas coisas por trás disso. Tudo fica ainda mais complexo quando se trata de um paciente com distúrbios psicológicos.

Quem dera houvesse um exame de sangue, ou algo do tipo, que indicasse os níveis ideais de serotonina, dopamina e outros neurotransmissores, dentro de um espectro pré-definido, como a diabetes ou colesterol, entretanto para os antidepressivos, médico e paciente podem levar muito tempo testando doses e princípios ativos, até chegar ao medicamento ideal.

Dr. Banks faz o procedimento padrão de testar um medicamento. Seria desta forma até mesmo em uma sociedade ideal, sem grandes laboratórios patrocinando médicos para aumentar a venda dos remédios, imagine em uma sociedade cada vez mais dependente da necessidade de medicamentos, que assimilou a ideia de tomar antidepressivos como se fosse aspirina.

Por outro lado há o paciente com um distúrbio extremamente particular no corpo. Há quem encare o cérebro como qualquer outro órgão, ou seja, se sofre de alguma patologia, esta pode ser diagnosticada e tratada. Porém é difícil desconsiderar a particularidade de ser um órgão imensamente influenciado por fatores externos. Além das características físicas, existe a mente, a abstração de males que se por um lado são patológicos, por outro não são visíveis e muitas vezes demandam tratamento igualmente abstrato, como a terapia sem medicação.

Caímos em outro ponto delicado: quais traços de comportamento devem ser encarados como patológicos e, portanto, tratados? No filme Emily Hawkins (Rooney Mara) passa por um período difícil. Seu marido acaba de sair da prisão e isso não foi suficiente para por fim à sua depressão e ansiedade. Atualmente, sobretudo em grandes cidades, com o bombardeio de informações, pressões externas, cobranças e ritmo de vida frenético, dá para dizer que aqueles que passarem pela vida sem um período de ansiedade ou até mesmo depressão, formam um traço estatístico irrelevante perto da massa que terá que lidar com esses problemas uma vez ou outra.

Talvez Emily não precisasse de remédios, um tratamento baseado em terapia seria suficiente. Porém o histórico de acompanhamento psiquiátrico – ela já havia feito tratamento com a Dra. Victoria Siebert (Catherine Zeta-Jones) – pesou na hora de testar um novo medicamento.

Não tem como não mencionar mais controvérsias. Por mais que testes de novas drogas sejam feitos em animais (o que em si já desagrada muita gente) é inevitável que em uma etapa final o teste seja em humanos. Como toda droga causa efeito colateral, as bulas dos remédios trazem uma lista enorme e assustadora de adversidades que o produto pode provocar, reduzindo assim as chances de um processo por parte dos pacientes.

Se a hipótese de mover processos é viável, muitas vezes coibida apenas pelo poder econômico de grandes laboratórios frente aos pacientes, por outro lado somos engenhosos em encontrar brechas que compliquem ainda mais uma delicada estrutura, como a relatada relação entre médicos, pacientes, laboratórios e medicamentos.

Diante das peças que não se encaixam na história vivida pelo Dr. Banks, o personagem partirá para uma interessante história de detetive, focada na intuição e cruzamento de informações. Não vale a pena detalhar o final para não estragar nenhuma surpresa, mas o fato é que o enredo do filme expõe fraquezas de um sistema.

Não faltam exemplos na vida real em que médicos e, sobretudo, pacientes são prejudicados de alguma forma. Impossível saber quantos casos sequer são descobertos, porém um fato é evidente: os laboratórios, salvo raríssimas exceções, saem impunes.


terça-feira, 4 de junho de 2013

Elena Undone

Neste longa a diretora Nicole Conn mostra passo a passo o surgimento de uma paixão. Talvez o desenvolvimento do sentimento no filme fosse lento, não fosse a necessidade de desconstruir certas premissas antes de chegar ao ápice do enredo.

Primeiro somos apresentados à Elena (Necar Zadegan) e todo o conservadorismo que a cerca. Vinda de uma tradicional família indiana, a protagonista se casou para tentar fugir do conservadorismo e chega aos quinze anos de casada, com um pastor como marido e um filho adolescente, frequentando cultos que falam sobre encontrar o amor perfeito o mais cedo possível.

Seguindo o caminho desta vida morna, Elena conhece Peyton (Traci Dinwiddie). A afinidade entre as duas proporcionou o início de uma forte amizade, que não alterou nada na vida de Elena, apenas trouxe a tona pontos que ela ou desconhecia ou se esforçava em esconder. Passado o impacto ao descobrir que Peyton é lésbica, a protagonista passou a encarar o assunto com a naturalidade que só o preconceito impede.

É bastante previsível logo no início do filme que as duas irão se apaixonar, o fato é que se Elena tivesse encontrado outro homem e sentisse uma atração forte o bastante para abalar seu frágil relacionamento, todo o envolvimento poderia se desenvolver em uma ou duas cenas, para que a protagonista superasse as dúvidas e hesitações naturais e tomasse coragem para mergulhar em um novo amor.

O que chama a atenção no trabalho de Nicole Conn é a projeção de vários estereótipos nos personagens, que são desconstruídos com empatia e naturalidade. Diante da existência do preconceito, é mais viável identificar alguns padrões de comportamento, que são bem distintos entre si, do que tentar enfrentar a todos da mesma forma.

Vemos, por exemplo, que a hesitação inicial de Elena acontece pela falta de experiência. É compreensível que uma pessoa crescida em meio a valores extremamente tradicionais e casada com um homem machista e preconceituoso não se sinta a vontade diante de uma situação que sempre foi indicada como errada. Apesar disso a personagem não se mostra intolerante em nenhum momento.

É bem diferente de seu marido, o pastor Barry (Gary Weeks), que simbolizando todo o conservadorismo prega aos seus fiéis o tradicional discurso sem conteúdo sobre a tradição da família, ignorando, por exemplo, o fato de a própria igreja protestante ter surgido graças às divergências com dogmas católicos, que entre outras coisas proíbem o casamento dos sacerdotes.

A princípio Peyton é extremamente racional e centrada. Experiente, não quer se entregar a um sentimento que parece ter tudo para dar errado. De fato, se a mudança de comportamento de ambas fosse abrupta, seria um sentimento forçado e não seria tão bem aceito por quem assiste.

A naturalidade com que Elena passa a encarar a possibilidade de um relacionamento esbarra nas dificuldades evidentes de ter por outro lado uma família estruturada, a pressão social em relação ao impacto que uma separação gera nos filhos – independente da idade –, a tensão de informar ao marido que o casamento já não existe, etc.

E por parte de Barry, a reação foi a mais evidente, ainda que ridícula, ou seja, tentar encobrir as próprias falhas culpando as supostas más influências sofridas pela esposa, no caso por parte de Peyton. Muitas vezes a insegurança diante das próprias atitudes é defendida, mesmo que inconscientemente, através da desconstrução do outro. Desta forma, pelos outros estarem errados, a pessoa justifica (erroneamente) os próprios atos, que nem chegam a ser reconhecidos como preconceito.

A forma mais natural que o cinema tem para indicar que não há nada de errado com o enredo do filme, e seu caráter inusitado se dá pelo preconceito histórico, não por interdições biológicas, é evidenciar os percalços das duas personagens, que são rigorosamente os mesmos que seriam enfrentados caso no lugar de Peyton, Elena tivesse conhecido um homem. É evidente que existem nuances comportamentais que diferenciam as personagens, mas em essência, o filme consegue deixar claro que o estranhamento em relação ao casal se dá pelo preconceito, não pela relação ser homo afetiva.

Para um público específico, que já tenha superado preconceitos de gênero e sabe encarar com naturalidade situações que não demandam nenhuma reação adversa, o filme é um romance interessante, bem filmado, cujo enredo não traz grandes revelações, mas é no aspecto didático que Elena Undone ganha destaque, por cativar aqueles que assistem, desfazendo aos poucos o estranhamento, que pode dar lugar a uma visão de mundo menos preconceituosa.


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