terça-feira, 27 de março de 2012

A Onda (Die Welle)

E o fascismo é fascinante deixa a gente ignorante e fascinada.
É tão fácil ir adiante e se esquecer que a coisa toda tá errada.
A história se repete mas a força deixa a história mal contada.


Saber que o roteiro do filme de Dennis Gansel foi baseado em fatos reais só o torna mais perturbador e instigante. A tentativa pedagógica do professor Reiner Wenger (Jürgen Vogel) de por em prática um regime autocrático com seus alunos até perder o controle da situação pode parecer absurda, mas o longa é bem conduzido ao ponto de convencer que a experiência é assustadoramente viável, bastando que o líder saiba quais os pontos certos a serem trabalhados. Dizer que a Onda é uma loucura é uma conclusão rasa diante de tudo que dá estrutura à ideia.

A escola inevitavelmente tem grande influência no sistema de pensamento do indivíduo. É uma etapa fundamental no processo de socialização de cada um e trabalha em um processo de formação individual, consequentemente de formação da própria sociedade. Outro importante pilar desse processo de formação é a família, como indica o filme através de Karo (Jennifer Ulrich), que contesta ordens escolares principalmente depois de ter sido alertada pela mãe sobre a importância de lançar um olhar crítico em relação às ordens recebidas. Uma análise possível é que as principais críticas não devem ser destinadas apenas ao professor, mas ao ensino prévio que os estudantes tiveram, pois todos encontraram na Onda pontos que a escola deveria oferecer desde os primeiros anos, porém acompanhados de senso crítico.

O grande atrativo da Onda acabou sendo a oferta do que os estudantes, mesmo sem se dar conta, demandavam, ou seja, respeito e tolerância para evitar o bullying, como no caso de Tim (Frederick Lau); o trabalho em grupo; uma meta a ser seguida por adolescentes confusos; desafios a serem vencidos; etc.

Evidentemente que o trabalho do professor é censurável. Para exemplificar, quando os estudantes não querem marchar e o professor coloca como sentido para tal atitude atrapalhar a aula da outra turma, ele passa (junto com a ideia de trabalhar em grupo) a intolerância e a rivalidade negativa aos alunos. Vemos nessa cena como os adolescentes gostam e querem uma meta, um desafio, portanto cabe ao professor encontrar formas de lhes estimular, porém sem criar rivalidades hostis como no filme.

Entretanto o docente viu desde o início que os estudantes preferiam sua aula, mesmo com um tema menos atrativo, à aula de anarquia com um professor extremamente conservador e desinteressante. Além disso, talvez nada seja mais estimulante a um professor do que seu plano de aula se mostrar extremamente bem sucedido, ao menos aparentemente, fazendo com que os limites de Reiner se tornassem quase inexistentes.

Além do desdobramento do experimento dentro da escola, o lado político do implemento de um regime autocrático, sobretudo na Alemanha, torna-se bastante inquietante. Mais de meia década após a queda do Terceiro Reich não faltam obras de arte, em todas as suas vertentes, retratando os horrores da Segunda Guerra. Até mesmo no filme, quando o Reich é mencionado, alguns alunos se mostram enfadados com o assunto recorrente. Fora das telas, sempre que algum material novo sobre o tema é lançado alguém comenta sobre o suposto esgotamento.

A lição explícita da Onda é que um regime autocrático não está tão distante e tão inerte quanto parece, ou quanto deveria. Em uma época carente de ideologia, quando ser politizado é quase um absurdo, um bom orador pode muito bem maquiar certos termos fascistas e exaltar o conteúdo integralista de um regime autocrático para dar vazão ao potencial de um grupo unido diante de um objetivo.

O que fica implícito no filme é que talvez seu conteúdo não esteja restrito a uma sala de aula alemã, distante da vida real. Em uma sociedade baseada no consumo, onde as pessoas são induzidas a comprarem roupas semelhantes, ouvirem músicas parecidas, consumirem os mesmos alimentos, etc., não é muito difícil supor que as pessoas abdiquem de sua individualidade, mesmo sem perceber, e prefiram um padrão a ser seguido a refletir sobre suas próprias vontades e necessidades. Acostumadas com a falta de senso crítico, ficam mais susceptíveis a ideologias políticas que aparentemente as fortalecem.

Não é raro vermos, por exemplo, uma polarização política no Brasil, através da qual eleitores do sudeste tendem a se posicionar como superiores à população nordestina, sem perceber a manipulação que permite a exploração do povo, já que este está mais preocupado com falsas disputas regionalistas do que com o combate à exploração como um todo. Mesmo dentro de uma cidade é possível identificarmos falsas clivagens que criam pequenos grupos, forjando uma superioridade tão falsa quando a Onda.

Os problemas sociais que permitem a criação de um grupo como a Onda devem ser combatidos em suas raízes, não em suas aparências. Esta é uma das grandes lições que a sociedade insiste em não aprender depois do Nazi-Fascismo.

terça-feira, 20 de março de 2012

Raul - o início, o fim e o meio

Quem não tem colírio usa óculos escuros
Quem não tem filé come pão e osso duro
Quem não tem visão bate a cara contra o muro


O filme do diretor Walter Carvalho acompanha a vida de Raul Santos Seixas do início ao fim. O material filmado para a produção foi extenso e diversificado, além disso, a própria vida de Raul Seixas foi cheia de altos e baixos, com fases distintas e divergências que fizeram da metamorfose ambulante um dos artistas mais consagrados do Brasil. Mesmo com essa diversidade o resultado final é um ótimo documentário, que mostra vários depoimentos sobre cada tema, deixando que a conclusão seja tirada por cada fã.

Foi ainda na infância que Raul começou a ter contato com o rock, estilo que também vivia sua infância, dando os primeiros passos desajeitados com Elvis Presley. Entre o mar de fãs de Elvis estava o menino baiano, que desde cedo mostrava divergências com os padrões sociais, enfrentando a família não como desrespeito, mas para traçar o próprio destino, como descreveria anos depois na canção ‘Sapato 36’. A descoberta e paixão pela música acabaram canalizando a criatividade do garoto que poderia não saber muito bem para onde estava indo, mas sabia que estava em seu caminho.

O novo estilo musical chegava timidamente ao país. Ainda desconhecido e primando sempre pela liberdade, contestação e questionamento, o rock se encaixou perfeitamente à personalidade intempestiva de Raul, que desde sua primeira banda, Raulzito e os Panteras, contribuiu decisivamente para o desenvolvimento de um rock brasileiro, misturando elementos nacionais como o baião, a MPB, o acordeom, mas sem perder as influências internacionais. Essa síntese fica clara em “Let me sing, let me sing”, na qual o músico mostra muito bem seu estilo despojado, com personalidade forte, que conseguiu encaixar ritmos nordestinos em meio a muito rock, blues e country.

A genialidade de Raul não costumava andar só. Ao longo da vida o artista contou com vários parceiros para letras e melodias, muitos deles aparecem no filme com depoimentos emocionantes e divertidos. Tendo uma vida marcada por fases tão diferentes, é natural que algumas entrevistas se mostrem contraditórias entre si, mas um ponto alto do filme é manter exatamente uma característica muito presente na vida e obra de Raul, ou seja, a fuga do maniqueísmo para mostrar que o mundo é mais complexo do que a divisão entre certo e errado pode sugerir.

As parcerias não renderam apenas músicas. Com os grandes amigos que fez durante a vida, Raul desenvolveu suas ideias sobre temas recorrentes em suas canções. Religião, drogas, amor, política, etc. Cada um desses temas poderia render um documentário à parte, já que as letras não costumavam ser diretas e claras.

Repletas de metáforas e com assuntos complexos – ainda que abordados propositalmente de forma simples – algumas músicas de Raul, sobretudo as que foram compostas em sua fase mais mística, possuem diversas interpretações que muitas vezes chegam a conclusões contrárias. Gerar polêmica era a provável intenção do músico; se equivocam aqueles que pensam compreender definitivamente uma das obras daquele que já dizia ter passado por todas as religiões, filosofias, políticas e lutas. Que aos onze anos já desconfiava da verdade absoluta.

Com o auge de sua carreira no auge da ditadura militar, Raul driblou várias vezes a censura, mostrando de forma direta e discreta o ouro de tolo que era o crescimento econômico do período. Não deixou de engrossar o número de exilados da época, fazendo do período que passou nos Estados Unidos uma grande aprendizagem. Ainda que a carreira internacional que tanto almejava não tenha decolado, o artista deixou algumas de suas marcas no país, como suas músicas e familiares.

As entrevistas com as companheiras que Raul Seixas teve ao longo da vida permeiam o documentário com depoimentos que revelam um lado muito terno. Não dá para pensar em uma família nuclear e tradicional por parte de quem cantou o amor em sua forma mais livre, que se por um lado pode machucar – característica inerente a este sentimento – por outro também liberta e agrega a cada indivíduo que o experimenta. Raul sabia muito bem que um amor a dois profana o amor de todos os mortais, sendo este mais um aspecto vivido intensamente pelo músico, até o fim de sua vida.

Com muita competência a vida de Raul Seixas foi condensada nessas duas horas de documentário, que servem tanto de memória aos que presenciaram a carreira do artista, quanto de apresentação deste que é um dos maiores nomes da música nacional. Sua vida pode ter sido curta, mas de intensidade infinita, guiada na palma de sua mão. Raul Seixas morreu dormindo tranquilamente, deixando uma legião de fãs e um legado para o rock nacional. Não importa quem esteja no palco, alguém na plateia sempre gritará: TOCA RAUL!




terça-feira, 13 de março de 2012

Nossa vida não cabe num Opala

O filme do diretor Reinaldo Pinheiro conta a história de quatro irmãos que, depois da morte do pai (Paulo Cesar Pereio), continuam a vida dura, com uma série de problemas e que, principalmente através da relação de dependência com Gomes (Jonas Bloch), revelam implicitamente relações de poder impostas por questões de gênero e, sobretudo econômicas.

Para ganhar a vida os dois irmãos mais velhos, Monk (Leonardo Medeiros) e Lupa (Milhem Cortaz), roubam carros. Os dois têm perfis diferentes, já que o primeiro chega a ser criticado por ter estudado, gostar de leitura e não ter, materialmente, ganhado nada com isso, enquanto Lupa, que ganha destaque com a ótima atuação e com a quebra certas tensões com um pouco de humor, sempre se orgulhou de, aparentemente, viver a vida da forma que lhe convém, avesso às formalidades e imposições sociais. O estudo parece não ter feito diferença entre os irmãos e o alvo dos roubos não é qualquer carro, mas Opalas, carro antigo que sempre foi símbolo de masculinidade.

O irmão mais novo é Slide (Gabriel Pinheiro), que tem os mais velhos como referência e mesmo contra a vontade deles quer seguir os passos de ladrão de carros. Um ponto em comum entre os três, herdado do pai da mesma forma que a profissão, é a dependência de Gomes, que financia a família e faz com que os roubos sejam lucrativos. Evidentemente que essa relação não é harmoniosa e os irmãos são explorados economicamente. Todos têm consciência disso e a todo o momento lembram Gomes que o finado pai foi arruinado por ele, que deixa claro sua indiferença.

Por fim, a única irmã é Magali (Maria Manoella), que apresenta outra relação de dominação muito presente na história. O machismo é latente ao longo de todo o filme, a ponto de incomodar, indignar e envergonhar qualquer pessoa. Todos os homens do filme são machistas, cada um de sua forma, e Magali é o principal alvo, sobretudo de Gomes. A tímida tecladista que se apresenta em um bar, onde é obrigada a abandonar suas preferências musicais e tocar músicas bregas, para atrair clientes ainda mais bregas, acaba sendo assediada de forma repugnante, por homens que insistem em tratar mulheres como mercadoria. Gomes, indicado como o melhor cliente, é o que mais considera como virtude ter dinheiro para pode pagar pelo que quer.

Até aqui o filme, infelizmente, retrata o cotidiano. Não faltam exemplos reais que corroboram os estereótipos encenados, porém é interessante notar a submissão do machismo ao poder econômico, indicando inclusive, ainda que historicamente mulheres sejam as grandes vítimas desse absurdo sem nenhum sentido, que o machismo em si não chega a ser benéfico para o homem, a menos que ele detenha também o poder econômico.

Os três irmãos, orgulhosos em ostentar a virilidade quando estão juntos, acabam ocasionalmente saindo com Silvia (Maria Luiza Mendonça) e ela é o exemplo mais claro de como muitas vezes a imagem que o machismo impõe ao homem é insustentável, sobretudo quando estes são sobrepujados por outras relações de poder. Aqueles mesmos machos que contam vantagem nos botecos com histórias nas quais são mais que heróis, mostram-se perdidos diante de Silvia, tão submissos diante das mulheres quanto diante daqueles que os oprimem economicamente. O único que consegue se manter um pouco mais coerente é Monk – que fique claro que ser coerente para sustentar o machismo não é nenhum triunfo.

De maneira sutil, por vezes cômica, o filme mostra como a vantagem que o machismo oferece à maioria dos homens não passa de migalhas para confortar ignorantes, que caso percebessem os absurdos ao que se sujeitam, poderiam unir forças contra a dominação econômica, ao invés de contar vantagem sobre uma falsa postura, que sustenta uma superioridade que na maioria das vezes não beneficia quem a detém.

No caso do filme, o machismo é o elemento que satisfaz os irmãos, que com exceção de Monk mal se dão conta da própria condição de marionetes, pois quem realmente ganha com toda a situação exposta é Gomes, que por deter o poder econômico diante dos irmãos, inclusive Magali, pode até utilizar as táticas mais mesquinhas para obter o que quer, sem a oposição por parte dos desarticulados oprimidos, jogados uns contra os outros por uma estrutura social predatória.


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