terça-feira, 20 de janeiro de 2015

Whiplash - em busca da perfeição

Que a qualidade de um músico está relacionada à sua dedicação poucos duvidam. Alguns têm mais facilidade e outros precisam de mais treino, porém os maiores gênios da música acumulam horas e horas de estudo musical.

O que o diretor Damien Chazelle nos mostra são os bastidores de um músico com técnica extremamente apurada e uma das formas, bem controversas, desse músico ser ensinado e treinado por um mestre.

A junção de um professor exigente e técnico ao extremo como Terence Fletcher (JK Simmons) com um aluno dedicado e esforçado como Andrew Neyman (Miles Teller) pode render apresentações que deixam o público boquiaberto. Por outro lado a música, qualquer que seja o estilo, não se restringe à técnica, pois esta é uma ferramenta para que sentimentos e emoções sejam expressados pelo músico que a executa.

Terence Fletcher alega ser exigente em sua busca pela perfeição. Por um lado isso é o mínimo que se espera de um professor da melhor escola de música dos EUA, por outro existem muitas formas de guiar essa busca que não incluem humilhações, agressões e desmotivação de alunos.

O trabalho de Fletcher dá resultados, afinal uma escola renomada não manteria um professor que não forma bons profissionais. Podemos pensar até mesmo em casos reais que vivenciamos, já que todas as áreas têm profissionais como Fletcher, e apesar de incomodadas com o estilo de ensino, as pessoas acabam, bem ou mal, concluindo o curso.

O que fica implícito no filme é que para cada músico excepcional lapidado por Fletcher, há uma infinidade de bons músicos em potencial que acabam desistindo da carreira. Sem nenhum spoiler é possível dizer que o filme deixa bem explícito um exemplo de fracasso deste método de ensino, que poderia ter sido evitado.

É bem compreensível que Andrew não meça consequências para se firmar como principal baterista da banda ensaiada pelo tão temido professor. Além do gosto pela música e da determinação que o leva a correr atrás de seu sonho muito bem planejado, sua personalidade responde muito bem ao estilo de desafio imposto.

Um profissional extremamente renomado chegar para um iniciante e destruir suas expectativas afirmando categoricamente que ele não tem talento e nunca chegará em um nível satisfatório pode render reações opostas. Muitos simplesmente baixam a cabeça e desistem; entre estes é possível que haja alguns que realmente nunca conseguiriam ter sucesso, mas outros acabam desperdiçando um potencial. No outro oposto há pessoas como Andrew, que farão qualquer coisa para provar que são capazes.

Entre os pouquíssimos personagens que fazem parte da vida de Andrew fora da escola de música, presentes sobretudo para servir de contraponto à sua vida profissional e para mostrar o quanto ele está disposto a se dedicar a música, estão sua namorada, a quem ele abandona diante da primeira ameaça do professor de tirá-lo do posto de baterista principal, e seu pai, que talvez seja também o único amigo de Andrew.

A família tem sempre um papel delicado no desenvolvimento de um músico. São evidentemente contrários à forma como o filho é tratado por Fletcher, o que é muito compreensível, só não podemos esquecer que a ascensão profissional é sempre difícil e trabalhosa. Muitas vezes no ímpeto de proteger a cria, os pais afastam os filhos do que consideram prejudicial e com a melhor das intenções acabam dificultando a superação de desafios. Fique feliz se seus pais te elogiarem, mas fique preocupado se só seus pais te elogiarem.

Permeando a conturbada relação entre Andrew e Flechter, Whiplash explora muito bem a linguagem cinematográfica para retratar a música. O ator Miles Teller tem ótima atuação e o som da bateria sincronizado com imagens que ressaltam os detalhes geralmente perdidos por nossos olhos são realmente inspiradores.

Para quem não faz questão de aplicar uma técnica perfeita e impecável a música pode ser uma válvula de escape para a tensão, cansaço e stress do dia-a-dia, com qualidade satisfatória para a maioria esmagadora de pessoas que não têm ouvido apurado o suficiente para identificar falhas tão sutis.

Aos que não abrem mão do nível máximo de excelência, é possível que um professor como Fletcher caia como uma luva, mas ainda acho que o verdadeiro mestre não é aquele que trata a todos com o mesmo rigor, mas aquele que sabe identificar o método mais eficaz para extrair o máximo de cada aluno, respeitando as características de aprendizagem de cada um e, principalmente, sem desmotivar ninguém. Fácil, não é.


terça-feira, 13 de janeiro de 2015

Esse amor que nos consome

Os diretores Allan Ribeiro e Douglas Soares trouxeram para as telas a Companhia Rubens Barbot Teatro de Dança, juntamente com seus integrantes, para um filme que mistura documentário e ficção, mostrando mais que a realidade de um grupo artístico. Dentro do contexto do filme podemos notar uma crítica sensível a questões pertinentes, sobretudo em grandes cidades, como a especulação imobiliária, discriminação social e a dificuldade de exercer uma atividade artística de forma profissional em uma sociedade tão utilitarista.

Com um ritmo mais lento, diálogos bem naturais e planos longos, o filme tenta mostrar o cotidiano de forma fiel, nos aproximando do dia-a-dia dos personagens que encenam suas próprias vidas. Curiosamente destoa de filmes comerciais e consequentemente luta por notoriedade e espaço, assim como a própria companhia que guia a história.

O primeiro impasse a ser superado é a falta de local para ensaiar. Se por um lado os ensaios não demandam muito – apenas uma sala vazia, com espaço suficiente para os integrantes – por outro o grupo não consegue patrocínio e é com dificuldades que consegue se manter ativo. Como em qualquer grande cidade, a despeito da demanda de imóveis para os mais diversos fins, há várias casas e prédios vazios, que permanecem nesse estado por vários anos, se deteriorando, acumulando lixo e sem exercer a função social, que teoricamente é garantida pela constituição.

Foi uma consulta aos búzios, uma entre tantas influências que o candomblé exerce sobre os personagens, que confirmou a viabilidade de aceitar a oferta de um empresário que autorizava o uso de um casarão, ainda que o mesmo estivesse à venda. Enquanto o grupo ensaia alguns interessados visitam a casa, acompanhados pelo corretor, que interage com os responsáveis pelos ensaios com muita naturalidade.

Com um problema ao menos temporariamente resolvido, o grupo segue seus planos. Em paralelo com as ideias que afloram de um coletivo voltado para a arte, o diretor busca patrocínios para ampliar as possibilidades artísticas. Cada vez mais visto como um investimento, os empresários querem patrocinar qualquer coisa que traga lucro para a empresa. Com isso as chances de uma companhia de dança, ou seja, uma expressão artística que insistimos em ver como um passa tempo, receber um bom patrocínio são muito baixas.

Qualquer um que tenha contato com alguma atividade artística, seja a dança, pintura, música, artes cênicas, etc., sabe o quanto a dedicação é diretamente proporcional à qualidade do resultado. O amor à arte consome tempo, consome recursos, consome dedicação, sendo que neste caso não estamos falando em artistas consagrados e bem remunerados, com todas as condições de exercer sua atividade de forma profissional. A grande maioria dos artistas deve exercer outra atividade remunerada para ter seu próprio sustento, que nem sempre dá condições financeiras para que a dança seja exercida ao mesmo tempo.

Assim sentimos o pesar do personagem que comunica ao diretor a necessidade de um afastamento para conseguir um emprego. O lamento expresso quase como um pedido de desculpa é bem compreendido pelo diretor, que conhece aquela situação, mas pouco tem a fazer para resolvê-la.

Ser artista nunca chega a ser fácil, a menos que se tenha nascido em berço de ouro e às vezes mesmo assim o caminho é tortuoso, porém em países com mais tradição artística, principalmente na Europa, as atividades talvez sejam um pouco mais valorizadas. Aqui não temos essa tradição. Somos, desde nossa origem, um país voltado para a produção material, que abastecerá o mercado externo. Ainda que hoje a população tenha acesso à arte e ao consumo imaterial, o caminho do artista ainda é subjugado e visto com preconceito quando comparado a uma profissão economicamente mais lucrativa.

Esse amor que nos consome, entre outras interpretações possíveis, é o amor à arte, à dança, à expressão artística que exige tanto e socialmente retribui tão pouco. Uma vantagem das grandes cidades, que no filme é o Rio de Janeiro, mas a característica se repete nos outros centros urbanos, é que em meio ao caos, ao stress e a pressão por resultados econômicos, há um espaço apertado e de difícil acesso ao que foge da rotina.

Com toda a dificuldade que envolve a dança, além da dificuldade intrínseca de aprimoramento de sua técnica, há a recompensa de viver um sonho quando se consegue superar as dificuldades, alcançando uma vida distinta dos que infelizmente não conseguem superar todos os obstáculos e acabam sucumbindo a uma vida dentro dos padrões, com a segurança de um salário fixo e a ausência deste amor, que nos consome.


terça-feira, 6 de janeiro de 2015

Infância Roubada (Tsotsi)

Um assaltante rouba um carro, levando no banco de trás o bebê da vítima. Já vimos isso acontecer algumas vezes por aqui, porém é esse o fato que conduz o longa do diretor Gavin Hood; uma história desenvolvida na África do Sul, mas que poderia tranquilamente retratar a sociedade brasileira.

O terror de uma pessoa que vê o filho com poucos meses de vida levado por um assaltante é indiscutível, o tipo de sentimento que só sabe realmente o que é aqueles que infelizmente tenham passado pela mesma situação. Mas esse não é o foco do filme. O que vemos é o desenrolar deste fato na vida do protagonista Tsotsi (Presley Chweneyagae), que roubou o carro.

Por vezes diante de um crime de muito impacto vemos opiniões que parecem olhar para os criminosos como isentos de qualquer tipo de sentimentos e qualquer tentativa de análise que fuja de uma condenação simples e draconiana é logo rechaçada. Esse julgamento impiedoso poderia começar a ser construído em relação a Tsotsi, já que no início do filme não sabemos nada sobre sua vida e seu comportamento parece bastante agressivo, entretanto mesmo a partir do ponto de vista mais frio e isento de afetividade, não faria sentido levar um bebê sem se importar com as consequências.

Além de juridicamente a pena por sequestrar uma criança ser muito maior que um roubo de carro, a comoção e mobilização da sociedade em torno de algo que envolva um bebê também é enorme, sobretudo se for de uma família rica como a do filme, o que faz com que as chances da pessoa que cometeu o crime ser descoberta aumentem muito.

É com o desenrolar da história que conhecemos um pouco mais sobre Tsotsi. Vemos que ele está longe de ser um criminoso tão impiedoso e mais que isso, conhecemos sua trajetória até chegar ao mundo do crime. É um modelo de vida bastante frequente. Cotidiano tanto na África do Sul quanto aqui, ilustra o histórico de vida de diversos jovens que tentam ganhar a vida cometendo crimes.

Por mais estranho que possa parecer, nossa noção de crime é uma construção social. Temos valores assimilados desde a infância que abominam certas atitudes e se não nos fazem impassíveis diante de outras, nos deixam ao menos um pouco mais tolerantes. É isso que faz, por exemplo, um sujeito criticar um morador de rua por pedir esmolas ao invés de procurar emprego e, quando chega em casa, assistir à TV a cabo com ligação irregular.

Indo além de um exemplo banal, a tolerância aos crimes maiores também são construídas socialmente. Assim como uma criança que cresça em meio a advogados que constantemente movem processos para resolver desavenças irá assimilar essa prática, uma criança que cresça rodeada por armas, assassinatos e agressões também ira naturalizar esse tipo de violência.

Essa análise visa exatamente à quebra da dicotomia entre bem e mal, portanto não se trata de defender bandido, dar liberdade a criminosos e prender os ditos ‘cidadãos de bem’ em casa ou qualquer outro equívoco do tipo. O fato é que uma cidade com desigualdade social tão grande a ponto de proporcionar a convivência de realidades tão distintas gera conflitos inevitáveis.

No engodo de defender a repressão como forma de inibir a violência, costuma-se deixar de lado a vida extremamente restrita que uma pessoa sem estudo e sem oportunidades terá. Quando muito pegam como exemplo um caso de sucesso, no qual o indivíduo superou problemas homéricos até obter sucesso econômico de maneira honesta e tentam coloca-lo como viável para todos.

Um caso entre milhares é o que Pierre Bourdieu chamava de exceção que serve para confirmar a regra. É falsa a premissa de que a meritocracia resolveria os problemas individuais, dado que a grande maioria trabalha pesado a vida toda para ganhar pouco e não conseguir ascensão social.

Alguns, como Tsotsi, optam por um caminho radical, criticável, mas condizente com a realidade social com a qual estão habituados. Quando desde criança um jovem é cercado por diversos tipos de violência, sem referência familiar e com pouquíssimas perspectivas, é no mínimo inocente acreditar que naturalmente ele irá discernir entre certo e errado, sobretudo quando o ‘certo’ envolve aceitar uma desigualdade que o desfavorecerá durante a vida toda.

Igualmente inocente é a crença de que os que optam pela criminalidade tem uma vida boa ou de alguma forma melhor do que aqueles que trabalham. Basta olhar o índice de mortalidade entre jovens da periferia para ver que a realidade é mais dura do que os preconceitos podem tentar convencer.


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