Este filme foi produzido na Tchecoslováquia em 1963. Escrito e dirigido por Vojtěch Jasný, seu enredo simples me lembrou algumas histórias de Saramago por pegar uma ideia inusitada e desenvolvê-la com muita competência para imaginar como as pessoas se portariam caso tal fato realmente acontecesse.
Aqui o inusitado é um gato que usa óculos escuros, pois quando sua visão está livre as pessoas mudam de cor de acordo com seus atos e sentimentos. Assim os apaixonados ficam vermelhos, os desleais amarelos, as pessoas mentirosas e hipócritas tornam-se roxas, etc. A ideia de expor de alguma forma o que as pessoas escondem, muitas vezes até delas mesmas, não é tão nova e já foi explorada de várias formas no cinema e na literatura, mas é com simplicidade e misturando elementos do universo das crianças que o diretor dá destaque à sua obra.
No início do filme o personagem Oliva (Jan Werich) resume com sua primeira frase o roteiro: “Vou contar uma estória com mais verdade que fantasia.” e segue observando do alto de uma torre os habitantes da pequena cidade. Vemos que cada um tem um ponto a ser criticado, portanto, ainda que a acusação não seja grave, Oliva indiretamente desconstrói a dicotomia de bons e maus, mostrando a diversidade que mesmo sendo tão óbvia, costuma passar desapercebida, e as pessoas que buscam a imagem de um comportamento exemplar também têm seus defeitos.
A fantasia, que segundo o personagem é menor que a verdade, é o inusitado, o impensável que costuma ficar no mundo dos sonhos, trazido à tona com a figura do gato que faz com que as pessoas mudem de cor. A verdade pode ser encarada como o desdobramento da história, ou seja, a hipótese de como as pessoas reagiriam se aquilo realmente acontecesse.
Na pequena cidade vimos que ao serem reveladas as cores das pessoas de acordo com seus atos, os apaixonados ficaram envergonhados, por vezes surpresos com a própria cor vermelha ou ao verem a pessoa ao lado em escarlate. Até aqui tudo seria divertido após o impacto inicial; uma forma de lidar com a atração de forma lúdica – como deveria ser cotidianamente. Mas o mágico felino não revelava apenas a paixão e muitos ficaram amarelos, cinzas, roxos, por vezes a mesma pessoa mudava de cor, mostrando a heterogeneidade dos sentimentos, o que certamente causaria problemas para muita gente.
Haveria uma solução simples para alguns casos, afinal um mentiroso poderia simplesmente mudar sua conduta para livrar-se da cor que o acusa, porém os poderosos que de repente se viram em cores relacionadas a atos constrangedores tentaram o caminho mais comum ao longo da história: matar o gato. O pobre animal aqui é a pequena parte da fantasia ao qual Oliva se referiu, mas podemos pensar na forte censura do regime autoritário vigente no leste europeu durante o pós guerra, sendo o elemento denunciador qualquer um que tentasse desmascarar alguma falcatrua do governo, feito um gato mágico que pudesse indicar os mentirosos, corruptos, torturadores, etc.
Curioso é pensar que em uma sociedade extremamente dinâmica, com desenvolvimento tecnológico galopante e constantes quebras de barreiras – como a que isolava a antiga Tchecoslováquia – um filme com quase meio século não se torna anacrônico. Por mais que a censura não atue de forma tão direta e agressiva na maioria dos estados como já vimos no passado, caso apareça um gato mágico moderno capaz de denunciar o que foi jogado para baixo do tapete, através de um site que revela a ligação de governantes com tortura, crimes de guerra, preconceito, etc, a reação não será a mudança de conduta para agir de acordo com as expectativas da população, mas sim matar o gato, prender o administrador do site, ou o que quer que seja preciso para poder agir irresponsavelmente.