quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

Além da Vida (Hereafter)

O diretor Clint Eastwood está agora com oitenta anos, tem maturidade de sobra e experiências de vida que lhe permitem lançar um olhar bastante maduro sobre os temas abordados neste filme. Comovente na medida certa e sem tomar partido de forma desnecessária em relação a dogmas que permeiam a fronteira entre a vida e a morte, o diretor trabalhou em Além da Vida (Hereafter) não necessariamente o pós-morte, mas a sequência da vida de três protagonistas após eventos marcantes.

Marie LeLay (Cécile de France) é uma renomada jornalista francesa, que passa por uma experiência de quase morte durante um tsunami na Indonésia. A cena chama a atenção pelo realismo e a capacidade de demonstrar a angústia gerada pela onda devastadora. Ao retornar à França, Marie passa por uma súbita mudança em seus valores, passando a questionar o racionalismo extremo com o qual encarava a vida e a se aproximar de possibilidades muito mais sensitivas. O problema é que ninguém na redação de seu jornal estava disposto a encarar tais possibilidades.

Em Londres o pequeno Marcus (George McLaren) vive ainda na infância situações que seriam difíceis para qualquer adulto, como a mãe dependente química, a perda de uma pessoa próxima e a necessidade de subitamente ter que cuidar da própria vida, optando por buscar incansavelmente um contato mediúnico. É curioso como Marcus poderia ser uma presa fácil de falsos videntes, porém a astúcia de quem está acostumado com grandes problemas e a visão despretensiosa da infância faz com que o garoto identifique com facilidade atuações que, por mais patéticas que possam ser, convencem muitos adultos. Também chama a atenção a forma como o egoísmo da infância é retratado, pois o grande apego material está presente até mesmo após a vida notado pelo boné utilizado por Marcus, que não deixa de ser um banho de água fria no apego do jovem ao irmão.

Por fim somos apresentados a George Lonegan (Matt Damon), um vidente – este é o ponto que o filme mais se aproxima da crença, ainda que interpretações racionais sejam possíveis – que prefere encarar sua capacidade de entrar em contato com os mortos como uma maldição. A princípio essa reação soa estranha, mas os problemas que a vidência gera para George tornam sua repulsa compreensível, já que lidar com as emoções de pessoas desconhecidas, que recebem o impacto de um contato com outra vida, fazia com que o personagem carregasse um fardo cada vez mais pesado – e desnecessário. Além disso o suposto dom fez com que o rapaz ficasse cada vez mais solitário, tentando levar uma vida normal para voltar a se aproximar das pessoas.

O que une os personagens, independente de qualquer contato entre eles, mais do que a experiência com algum tipo de vida após a morte, já que os três fatos são bem distintos entre si, é a dificuldade que todos encontram com o ambiente que os cerca. Marie tenta abrir os olhos para uma possibilidade distinta sendo desestimulada pelas pessoas próximas, que encaram sua mudança de comportamento como um problema e tentam moldar sua forma de agir de acordo com os interesses do trabalho. Marcus é retirado de uma vida que já não era fácil e jogado sem muito amparo em outra realidade, com adultos querendo colocá-lo em uma espécie de forma, da qual saísse plenamente adaptado e remodelado. George sofre grande pressão de seu irmão Billy (Jay Mohr) para voltar a fazer os contatos, de forma que ambos possam ganhar dinheiro com isso, e tem ainda tem que lidar com pessoas que, após descobrirem seu dom, exigem um contato, ignorando as advertências para se arrependerem depois.

A impressão que fica, não pelo que os protagonistas fazem, mas pelo que passam, é que “além da vida” não existe a morte, mas existe o outro. Cada um é marcado pelo individualismo dos que os cercam e sofrem consequênicas de suas próprias atitudes, por vezes altruístas, outras apenas diferentes do esperado, lutando por um pouco de autenticidade em meio às imposições de comportamento de massa. Entre um representante da infância e dois da vida adulta, faltou um personagem mais velho, que fica por conta da visão do próprio diretor.

Conforme apresentado, “Além da Vida” pode oferecer uma leitura pouco relacionada com a vida após a morte, independente da visão que cada um tem sobre o tema. Há uma série de fatores a serem encarados além da vida e o pós-morte é apenas um deles. Para uma leitura mais individual sobre a relação pessoal com a morte, o próximo texto será sobre Biutiful.





segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

Lixo Extraordinário (Waste Land)

Os trabalhos habituais de Vik Muniz, fotografando mosaicos gigantes montados com lixo para formar imagens muitas vezes consagradas, rodam o mundo e encantam pela originalidade, beleza e capacidade de prender o olhar por tempo indeterminado. É possível passar horas observando a mesma tela e desvendando nuances, tanto ao observarmos de longe, quanto ao chegarmos perto para ver que tudo é formado por materiais descartados, desde pequenas tampas de garrafas até geladeiras e pneus.

Em linhas gerais era essa a ideia que eu tinha sobre a obra do artista e quando fui ver o documentário, dirigido pela britânica Lucy Walker, em parceria com João Jardim e Karen Harley, esperava algo como um making of da montagem das obras, mas Lixo Extraordinário vai além e não mostra apenas a transformação de materiais descartados em uma obra de arte, mostra também a transformação do artista ao longo do trabalho, dos catadores que ganham a vida no aterro do Jardim Gramacho e inevitavelmente provoca mudanças profundas em quem assiste o documentário.

Como plano de fundo é possível ver a produção das obras de Vik Muniz, mas o que surpreende, choca e comove é a apresentação das pessoas que trabalham no maior aterro sanitário do mundo. A princípio temos a confirmação de uma imagem pré-concebida, baseada na falta de conhecimento, de que o lixão é uma área isolada composta por uma massa uniforme de material inutilizado, onde ratos, urubus e porcos disputam espaço com seres humanos, que também costumamos uniformizar como pessoas sem qualificação, a margem da sociedade. O preconceito é desfeito sem muitas dificuldades.

Tião é o presidente da ACAMJG (Associação de Catadores do Jardim Gramacho) e com sua simpatia nos conta um pouco sobre sua vida e apresenta alguns outros trabalhadores retratados no filme. Aos poucos vemos quanta diversidade cerca o local, com divisão clara das tarefas em todas as etapas da coleta e a personalidade marcante dos trabalhadores. Aproveitando o gosto pelos estudos Tião, assim como seu amigo Zumbi, recolhe livros encontrados no lixo e guarda para formar uma biblioteca; assim já leu Maquiavel, Nietsche, Schopenhauer, etc. Algumas querem deixar o aterro, como Isis e Magna, porém sabem da importância do trabalho e não se envergonham do que fazem, enfim, o que une os catadores como um ponto comum a todos é a consciência de quem são e o que fazem, a clareza dos motivos que os levaram a recolher material reciclável para viver e a necessidade de união para superar as dificuldades vindas de todos os lugares.

Quando vemos tudo o que é considerado pelos catadores para fazer a seleção do material é possível lembrar a cômica teoria da microeconomia, onde supostamente o mercado atingiria sua eficiência máxima livremente. A demanda maior de certos materiais faz com que o valor aumente no mercado, aumentando também sua procura; não há salário mínimo para os trabalhadores nem impostos sobre o que é coletado, o que supostamente – para a microeconomia – é nocivo ao mercado. A grande diferença entre este mercado e as grandes empresas é que para estas o estado permanece ausente até que uma crise financeira force os cofres públicos a despejarem rios de dinheiro para salvar más administrações, enquanto que aos membros da ACAMJG a participação do estado só é visível quando governantes favorecem grandes empresas de reciclagem em detrimento dos catadores, que recebem centavos da grande fortuna gerada pela reciclagem.

O mercado de bens simbólicos permitiu que as obras de Vik Muniz, retratando os trabalhadores do Jardim Gramacho, arrecadassem dinheiro para a ACAMJG, mas o aterro será fechado em 2012. A princípio seria uma atitude compreensível, já que o local não fornece condições de trabalho, porém nenhuma medida eficaz foi tomada para realocar os trabalhadores que ganham a vida em um local que aceita qualquer pessoa, independente da qualificação ou currículo.

Através de Lixo Extraordinário os trabalhadores do Jardim Gramacho nos comovem e ensinam, não pelo comodismo reducionista de achar que há alguém com trabalho mais pesado e vida mais dura, mas pela clareza que possuem sobre a própria condição e a preocupação constante com dois pontos primordiais para encarar qualquer tarefa: a instrução e a união dos trabalhadores envolvidos. Entrei no cinema para conhecer mais sobre a obra de Vik Muniz e saí com a certeza de que essa é apenas uma parte do que o filme tem a nos oferecer. Impossível ter algum contato com o documentário sem sofrer nenhuma transformação, tal qual o lixo que pode ser transformado em obra de arte.





terça-feira, 11 de janeiro de 2011

Sal de Prata

O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
(Fernando Pessoa)


A ideia de trabalhar a produção cinematográfica dentro de um filme não é nova, muitos longas utilizam certa metalinguagem, mostrando os bastidores do cinema nas telas de diversas formas. Em “Sal de Prata” o diretor Carlos Gerbase explora os desdobramentos do relacionamento da economista Cátia (Maria Fernanda Cândido) com o cineasta Veronese (Marcos Breda), depois que este morre e deixa trechos de roteiros incompletos.

O universo do cinema, e das obras de arte em geral, abre espaço para sonhos e devaneios que podem ser inspirados em fatos reais e particularidades da vida do autor, mas isso não é regra, sendo que os fatos descritos, muitas vezes minuciosamente, podem não passar de imaginação. É com esse entrave que a economista se depara quando começa a ler os roteiros que o cineasta, quando vivo, não mostrava para ninguém. Acostumada com um campo de atuação profissional muito mais focado na realidade, sem muito espaço para sonhos em meio às transações financeiras milionárias, Cátia tem grande surpresa ao ver que Veronese recheava suas obras com cenas de sexo.

Ainda que a economista soubesse que seu relacionamento não era um mar de rosas, diante dos roteiros o ciúme era inevitável ao imaginar que as cenas eram inspiradas em outras mulheres, principalmente na bela Cassandra (Camila Pitanga), a atriz favorita de Veronese, que, assim como ocorre com cineastas reais, passou a despertar suspeitas de relacionamento entre as pessoas próximas.

A partir daí o diretor oferece uma série de hipóteses interessantes de conflitos para pensarmos o filme. Além do ciúme póstumo de Cátia, que curiosamente fortalece o relacionamento do casal quando já não há possibilidades devido à morte de Veronese, temos algumas disputas pelos roteiros inacabados que acirram a disputa entre diretores e a gradual inserção de Cátia no sedutor ambiente de filmagens, a partir do momento que a moça supera o impacto de se deparar com histórias até então inimagináveis escritas pelo namorado.

Durante o filme, como é característico em histórias similares, alguns momentos começam a deixar dúvida sobre o que é ficção e o que é realidade na vida das personagens. Este limite incerto é trabalhado propositalmente, explorando as possibilidades ilimitadas que o cinema oferece, porém não é tão incomum nos depararmos com situações cotidianas que parecem fugir da realidade, diálogos diante dos quais somos forçados a interpretar os diversos personagens que inconscientemente criamos – e estas interpretações não são necessariamente pejorativas –, ou mesmo situações para as quais imaginamos caminhos completamente inviáveis, tal qual um roteiro de ficção, apenas pelo deleite de sonhar com o que sabemos que não acontecerá.

Este limite entre real e imaginário que atua diariamente dentro de cada um de nós costuma passar despercebido. O mundo do cinema que Gerbase retrata é capaz de chamar a atenção para a possibilidade do irreal, da expressão dos sonhos que por vezes reprimimos sem perceber, mesmo diante da dura realidade, e dos prazeres que a representação na vida cotidiana pode proporcionar, já que atuar e encarnar personagens na vida “real” é obrigatório para todos, ainda que muitos não tenham consciência disso. A diferença entre as pessoas que atuam de forma deliberada não está relacionada ao caráter ou à sinceridade, mas ao prazer que os personagens da vida real podem proporcionar. Sem medo e sem culpa.



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