terça-feira, 20 de dezembro de 2016

Querida, vou comprar cigarros e já volto (Querida voy a comprar cigarrillos y vuelvo)

Voltar no tempo e reviver alguma situação pela qual passamos, mas com a maturidade que só a experiência pode proporcionar. Um tema recorrente no imaginário popular, que virou tema para os diretores Mariano Cohn e Gastón Duprat. De forma bem humorada e explorando os aspectos trágicos das situações, os diretores permeiam a história com algumas questões bem interessantes, que além de divertir nos instigam a pensar em aspectos de nosso cotidiano.

O protagonista é Ernesto Zambrana (Emilio Disi), que com cerca de sessenta anos recebe a proposta de reviver dez anos de sua vida, a partir de qualquer data de sua escolha. Essa proposta tende a ser mais valiosa que um prêmio de mega sena. Não é só o dinheiro, mas a chance de consertar erros cometidos no passado que tiveram consequência ao longo de toda a vida. Pense rápido, para qual dia você gostaria de voltar?

Ernesto opta por voltar a tempo de pedir desculpas à mãe pela distância ao longo da vida. Note que ele iria reviver dez anos, podendo passar todo esse tempo próximo a ela caso quisesse realmente arrumar o que considerava um erro, mas prefere voltar apenas a tempo de se desculpar. Não temos elementos suficientes para julgar essa atitude. Nunca se sabe o que leva alguém à escolha de seus caminhos.

Pego de surpresa e munido apenas da esperança de tornar sua vida recente marcante, o protagonista logo percebe que reviver um período não o torna imune às imprevisibilidades do destino. Não é uma questão moral, pois sendo egoísta ou altruísta os imprevistos seguem transformando sua vida em algo independente de sua própria vontade.

Quando pensamos em algum erro cometido temos a tendência de imaginar que se pudéssemos consertar aquele ponto específico todo o resto teria o mesmo desdobramento, com a vantagem de um problema desfeito. O que o filme mostra, ainda que de forma cômica e caricaturada, é que nossa vida se equilibra em uma estrutura formada pelos detalhes do dia-a-dia. Alterar um detalhe implica em desestruturar os eventos seguintes.

Claro, são hipóteses que não passam de uma abstração, não se trata de considerar uma viagem no tempo oferecida por um emblemático ser imortal como o filme sugere, mas podemos pensar em como, independente da maturidade e experiência de vida que temos, nossos erros são inevitáveis a ponto de ser mais eficiente uma flexibilidade diante dos desdobramentos de nossas ações do que o saudosismo de um fato que deveria ter acontecido.

Não bastasse a versatilidade de nossa própria vida de acordo com os caminhos que escolhemos com o passar dos anos, ainda temos inúmeras pessoas com quem interagimos de uma forma ou de outra, por vezes sem nem perceber, e que vão influenciar em nossa vida. Em meio à comédia de personagens rabugentos e mal humorados, existe certa melancolia da vida como uma prisão, da qual não podemos escapar e tão pouco tomar as rédeas. 

As supostas vantagens que a experiência poderia trazer a um jovem com décadas a mais de vivência esbarram no fato de que a vida sempre irá frustrar nossas expectativas, sobretudo quando elas forem muito fechadas. As oscilações do comportamento humano ao longo da idade não ocorrem por acaso, mas são fruto de uma longa evolução que levou a adaptação dos indivíduos de acordo com a necessidade de cada época da vida.

Ernesto volta à juventude apostando em sua sabedoria, porém não demora para perceber que tem muito o que aprender. Apesar do corpo agora jovem, sua mente não tem a versatilidade do início da vida e seu conhecimento está deslocado no tempo. Uma ação que parece razoável hoje pode ter um impacto bem distinto quando transposta para um tempo com costumes bem distintos.

O que o filme mostra nas entrelinhas de todo o enredo inusitado e cômico é que a vida não é uma máquina com funcionamento isolado, à qual podemos trocar peças e rearranjar funções. Talvez a melhor definição seja a de John Lennon – que não escapou do roteiro do filme – quando afirmou que a vida é o que acontece conosco enquanto estamos ocupados fazendo planos.

A vida de Ernesto não precisou de nenhuma magia para chegar ao tédio extremo do início do filme. Basta passar o tempo todo imaginando o quão grandioso nosso destino poderia ter sido, o que na prática se concretiza para pouquíssimas pessoas, ao invés de imaginar o que podemos extrair do que realmente temos.


terça-feira, 13 de dezembro de 2016

Califórnia

Em seu primeiro longa de ficção a diretora Marina Person nos leva até meados dos anos 80 para acompanhar a adolescente Estela (Clara Gallo). Permeando os problemas característicos dessa fase da vida temos uma série de referências à cultura pop que florescia na época, além de fatos históricos marcantes. Com tudo isso somado o resultado vai muito além de um filme adolescente e agrada a quem assiste de várias formas.

Não há nada de excepcional na vida de Estela. É uma adolescente que, como tantas outras, enfrenta um turbilhão de dúvidas e angústias quase inevitáveis para a sua idade. O tabu da sexualidade, a descoberta do mundo que começa a aparecer fora da influência dos pais, o sonho que se torna meta de vida – que no seu caso é ir para a Califórnia, encontrar com seu tio Carlos (Caio Blat).

Entre os problemas corriqueiros cabe destaque à ironia de ter que lidar com o pai conservador e reacionário vivido por Paulo Miklos, que na época do filme despontava nos Titãs como ícone de rebeldia e contestação. Os Titãs se juntam a uma trilha sonora que reúne clássicos nacionais e internacionais dos anos 80, para deixar qualquer um que tenha vivido e efervescência cultural da época animado a relembrar histórias pessoais.

Hoje temos acesso tão fácil a determinadas coisas que frequentemente nos esquecemos de como era difícil ouvir uma música recém-lançada, conseguir uma camiseta de banda ou mesmo ter privacidade para falar ao telefone na única linha fixa da casa.

A dificuldade acaba valorizando as conquistas. Aquela camiseta importada que era lavada com todo cuidado, até desbotar e continuar quase como uma segunda pele, virando marca registrada do dono; a fita cassete que ao ser gravada não remetia apenas às músicas, mas também à pessoa que gravou, que muitas vezes torcia para que aquela lista de músicas ajudasse na expressão de sentimentos – era quase um perfil de rede social; saber do lançamento de um filme em Hollywood significava a espera de meses até que chegasse a um cinema nacional.

Nem tudo são flores na referida década. Mesmo que muitas diferenças sejam tecnológicas, a economia precária do país era crucial para que até uma camiseta fosse festejada. Além disso, aos poucos fica claro que tio Carlos precisa voltar ao Brasil por conta de uma doença que começava a se apresentar ao mundo, ainda desconhecida e negligenciada.

Essas referências temporais são fundamentais para que o filme deixe de ser apenas uma história adolescente. A obra também não se restringe ao saudosismo. Com a história retratada em uma época turbulenta, logo após a campanha das diretas já, que marcaram o início de uma nova fase do país, podemos estabelecer um paralelo entre as carências e esperanças da época com a situação que encontramos cerca de trinta anos depois.

A base das alegrias e problemas de uma jovem adolescente segue muito semelhante. Características sociais mudam lentamente e a tecnologia desenvolvida nas últimas décadas apenas deu uma roupagem nova à relação dos jovens com o mundo que os cerca.

Politicamente se na época retratada o país lutava para superar uma fase difícil e consolidar a democracia, acompanhada da abertura comercial e desenvolvimento, hoje colhemos muitos frutos provenientes da geração da personagem. Toda a luta expressa no filme pela correspondência de Estela com Carlos foi decisiva para que o país virasse uma página tão triste de sua história.

Por outro lado aquela foi uma geração marcada pela utopia e pelo otimismo. O fim da ditadura cultivava a esperança de melhorias, que de fato vieram. Os que dizem hoje que o país passa pela pior crise de sua história ‘esquecem’ da inflação galopante e dos assassinatos políticos da década de 80.

Nem mesmo em relação à AIDS podemos negar o progresso da ciência. Ainda que não tenhamos chegado à cura, a prevenção e a expectativa de vida dos que contraem o vírus não se comparam ao que tínhamos na época do filme.

O aspecto que aparenta ter regredido vergonhosamente é a postura política da sociedade em geral. Parece termos saído de uma utopia vanguardista para um conservadorismo que se resigna ao retrocesso. Claro que o roteiro do filme não foi pensado como uma crítica à postura política atual, mas diante dos fatos recentes a comparação é tristemente inevitável.


terça-feira, 6 de dezembro de 2016

Guantanamera

A década de 1990 foi bem difícil para o povo cubano. Depois de uma década próspera graças à proximidade com a União Soviética, a Ilha passou a sofrer com a falta de apoio financeiro, pagando um preço alto por não ter aproveitado o período favorável para investir em sua industrialização.

Parte disso é exposto de forma metafórica e muito bem humorada pelos diretores Juan Carlos Tabío e Tomás Gutiérrez Alea, repetindo a parceria de ‘Morango e Chocolate’. O filme foi lançado em 1995. Curioso como duas décadas mais tarde a viagem que compõe a história central do filme seria refeita pelo personagem mais enigmático da história do país.

Em tempos de crise não há saída, é necessário cortar o que é supérfluo, economizar no que é indispensável e ainda assim os gastos aumentam. O impasse inicial do filme gira em torno do que fazer quando uma pessoa morre em uma província distante de sua terra natal. Enquanto uns insistiam na coletividade, indicando que a pátria era uma só, portanto não havia diferença quanto ao local do enterro, outros indicaram logo a recusa em serem sepultados longe do local escolhido.

Neste ponto Afonso (Carlos Cruz) tenta se valer dos ideais da Revolução, de socializar ganhos e perdas entre todos, para solucionar os problemas. Cada província arcaria com uma parte dos custos do traslado, mantendo a cota de combustível dentro da meta. A surpresa foi a morte repentina de sua sogra, que o faria ser o primeiro a por seu plano em prática cruzando a ilha de Guantánamo, no extremo leste, a Havana. Caminho inverso que fizeram com as cinzas de Fidel, até Santiago de Cuba.

A viagem que segue fornece elementos para críticas severas ao regime cubano, assim como virtudes que não se encontra em países sul-americanos. No que fica isento de críticas positivas ou negativas, a história mostra que a vida é feita de imprevistos, que não podem ser planejados em uma mesa de reunião e demandam soluções que fogem ao protocolo rígido que as instâncias governamentais tendem a impor.

Uma das coisas que Afonso não poderia prever é que sua esposa Georgina (Mirtha Ibarra) encontraria com um ex-aluno, Mariano (Jorge Perugorria). Cabe ressaltar que Georgina deixou de dar aula de economia e Mariano se formou em engenharia, mas trabalha como caminhoneiro e ganha até mais nessa profissão. Há quem veja como insanidade um caminhoneiro ter salário equivalente ao de um engenheiro.

Toda história tem pelo menos duas versões. Se Afonso narrasse o filme provavelmente se colocaria como uma vítima de Mariano, que tentava seduzir sua esposa. Poderia citar infortúnios do destino, culpar os personagens que atravessaram seu caminho – como uma mulher em trabalho de parto – ou qualquer outra coisa para justificar as dificuldades que teve.

Como o filme não é narrado por ele, resta a imagem personificada de um burocrata restrito, cuja devoção aos valores revolucionários não visam o bem da sociedade, mas um cargo de destaque que coloque seu nome na história do país. Dessa forma faz de tudo para que a realidade se adeque aos seus planos, não o contrário.

A morte, trágica, mas trabalhada de forma leve e cômica ao longo do filme, sugere que aquilo que já foi grandioso, como Yoyita (Conchita Brando), a falecida sogra de Afonso que fora uma artista de sucesso, pode chegar ao fim quando menos esperamos e depois disso deixa um corpo que ainda precisa de atenção.

Em qualquer país do mundo a sociedade é muito mais dinâmica que as leis. Estas são passíveis de interpretações e corrupções – não necessariamente grandiosas, mas essas pequenas corrupções do dia-a-dia, que por vezes nem nos damos conta de que cometemos – enquanto as situações reais demandam urgência que foge do escopo da burocracia.

Assim o cadáver insepulto que insiste em causar transtornos nos planos de Afonso estaria presente de forma metafórica independente da área em que o funcionário público trabalhasse. Seu problema não era o cadáver da sogra, mas o cadáver de uma ideologia distorcida, que nasceu tendo por base a ascensão pessoal enquanto dizia se apoiar no bem comum.

Superando o discurso e a postura ultrapassa de Afonso, vemos os demais personagens vivendo a vida fora do papel. A vida que traz surpresas que podem ser tão ruins quanto a morte, ou tão boa quando um reencontro afetivo. Melhor que tentar adequar os imprevistos à burocracia é encontrar uma saída satisfatória, que não implique em renunciar aos sonhos, nem sepultá-los em uma terra distante.


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