quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

Rota Irlandesa (Irish Route)


O longa do diretor britânico Ken Loach cumpre o papel de reforçar denúncias de abuso por parte de soldados na guerra do Iraque. Por mais que isso seja claro para boa parte do mundo, ingleses continuam sendo o segundo país que mais têm soldados no país, com o apoio (construído) de boa parte da população.

Apesar do combate propriamente dito ter sido rápido, o desdobramento do conflito na região continua apresentando consequências lamentáveis e intervenções externas que ferem a soberania do Estado. Um exemplo é a atuação de empresas particulares investindo na segurança privada, aproveitando-se do medo constante gerado pela instabilidade.

Neste contexto o protagonista Fergus (Mark Womack) convence seu amigo de infância Frankie (John Bishop) a trabalhar no Iraque, pois superando o perigo o faturamento financeiro é altíssimo. É após a morte de Frankie na chamada Rota Irlandesa – indicada no filme como a rota mais perigosa do mundo – que alguns episódios suspeitos vêm à tona e Fergus, já na Inglaterra, passa a investigar a morte do amigo, junto com Rachel (Andrea Lowe), a então namorada de Frankie.

Tradicionalmente o britânico assassinado em um país que vive período tão tenso seria visto como herói, mas este papel é desconstruído pelo diretor, que traz nuances da atuação britânica – militar ou civil – que podem parecer imprecisas para o público de outros países. Acompanhamos a guerra com outro viés e com outras intenções, muitas vezes até acreditando que serve para levar a paz para o oriente, mas geralmente com um olhar muito menos inocente.

Ainda que para nós não seja tão necessário a revelação de interesses econômicos por trás da invasão, há lições importantes que o filme apresenta e que podem perfeitamente se relacionar com situações bem mais próximas à nossa realidade.

Primeiramente Fergus, totalmente passional e impulsivo, abre mão de qualquer tipo de regra para conseguir investigar os pormenores da morte do amigo e em seguida fazer justiça com as próprias mãos. É um caso bastante específico e o estado britânico além de não ter interesse em investigar, ainda se empenha ao máximo em esconder determinadas mazelas que rondam a desastrosa invasão ao Iraque.

A despeito disso, a justiça é sempre refém de equívocos, e quando a tentativa de sua execução não tem amparo legal, suas consequências parecem ser ainda mais devastadoras, por não caírem sobre uma instituição responsável, mas sobre um indivíduo em particular.

Além disso, o filme deixa claro que empresas que atuam em um nicho estatal (como a segurança da população), não fazem isso por benevolência. O objetivo dos amigos britânicos não era garantir a segurança da população iraquiana para que as pessoas pudessem exercer suas atividades, mas sim ganhar dinheiro – o máximo possível.

Delegar um serviço de cunho estatal a uma empresa privada, seja no Iraque, seja no Brasil, através de milícias ou empresas legalizadas, implica em relacionar um serviço ao lucro, não bastando que a segurança seja estabelecida, mas que o lucro seja potencializado. Uma empresa não mede esforços para maximizar seu faturamento e muitas, talvez a grande maioria, tem valores muito pouco sólidos quando se deparam com grandes somas de dinheiro em potencial.

O resultado nós podemos conferir diariamente no Brasil, ou, com outra roupagem, no filme em questão. As informações são distorcidas por todas as partes envolvidas, fazendo com que os fatos sejam desfeitos em versões. Não por coincidência, aqueles que têm mais dinheiro têm também um retrospecto de versões mais aceitas.

A prova incontestável do poder do capital diante de versões conflitantes é a própria justificativa da guerra no Iraque. Ainda que Saddam Hussein nunca tenha chegado perto do que se espera de um governante, as inexistentes armas de destruição em massa nunca renderam sequer uma advertência verbal àqueles que até hoje mantém tropas no Iraque.

A crueza com que algumas cenas do filme são mostradas pode ser chocante para padrões cinematográficos, mas não passa de um vislumbre se comparado à dureza de uma guerra real. A guerra, que a princípio envolvia armas e mísseis, mantém sua crueldade inerente, mas entra na fase da disputa de capital por parte de empresas privadas. Para quem vive a insegurança do conflito ou já perdeu pessoas próximas devido ao combate, há alguma diferença?


terça-feira, 11 de dezembro de 2012

Bullying (Bully)


Com base em um problema antigo, que só recentemente passou as ser divulgado com a devida atenção, embora ainda esteja longe de receber os cuidados necessários para que seja erradicado ou ao menos reduzido, o diretor Lee Hirsch apresenta seu documentário, fortemente ligado à exposição de casos reais.

Hirsch optou por inserir apenas algumas entrevistas para explicar e dar fluência às cenas gravadas em escolas, que flagram diversos tipos de agressões aos protagonistas. Assim o problema fica amplamente exposto, mas acaba sendo pouco conclusivo. Todas as interpretações ficam por conta daqueles que assistem ao filme, imersos em fortes emoções que o cinema tem a incrível capacidade de suscitar.

Ainda assim o conteúdo apresentado torna-se cada vez mais importante, sobretudo àqueles que, de uma forma ou de outra, tem algum contato com a realidade de preconceitos na infância, fase que deve ganhar mais atenção devido ao caráter fundamental na socialização dos indivíduos.

O bullying, no filme e fora dele, apresenta-se como um caldeirão de preconceitos, unindo o racismo, homofobia, machismo, xenofobia e tantas outras formas de humilhação, expressando-se muitas vezes em agressões físicas e gratuitas. Ainda que a vítima não tenha necessariamente a característica do preconceito em questão – não é necessário que seja de fato homossexual para ser alvo da homofobia, por exemplo – esse tipo de agressão é tão presente quanto negligenciada.

No filme a escola é o único ambiente retratado, embora não seja de fato o único local que a prática possa ser encontrada. Esse limite de espaço é pertinente. Todos os estudantes retratados são jovens, que devem lidar desde cedo com a hostilidade, mesmo sem a maturidade que poderia implicar em maior discernimento.

A referência que as crianças costumam buscar nos adultos diante de qualquer dificuldade nesta época da vida é absurdamente desfeita quando vemos os responsáveis pela escola eximindo-se de qualquer culpa e, pior, fazendo o possível para jogar a responsabilidade na vítima. Não chega a ser surpreendente que este fato se repita cotidianamente na vida adulta, pois podemos notar com frequência acusações de que uma mulher estuprada supostamente provocou seu estuprador, ou que um homossexual agredido agiu de forma a justificar a violência sofrida.

A naturalidade ao tentar culpar aquele que está na condição de vítima, assim como a forma com que o agredido encara a situação, forma-se desde os primeiros anos de infância. Para quem assiste o documentário pode parecer confuso que um garoto volte apanhando dentro do ônibus, sem nenhum motivo que pudesse ser usado como falsa justificativa, e diga que seus agressores eram seus amigos, porém a noção de amizade e até mesmo de agressão devem ser desenvolvidas socialmente, por meio de exemplos e contraexemplos.

Aos poucos fica claro que aquelas crianças, quando reagem ou quando toleram com naturalidade as agressões, agem por acreditar que é a maneira correta, e acreditam por assumir uma culpa que não lhes cabe, mas é apreendida aos poucos, iniciada pelos colegas e referendada pelos funcionários complacentes com a violência. Essa naturalização de atos inadmissíveis torna-se tão enraizada que passamos a encarar com indiferença quando uma vítima é culpada.

Seguindo a conclusão do documentário, o ápice dessas agressões são os casos de suicídio provocados pela humilhação aos jovens. Esses casos promovem as reações por parte de pais e amigos, talvez as únicas que se contrapõe à indiferença com que os profissionais da educação lidam com o problema ao longo do filme. Esta também é uma tendência social, ou seja, a valorização daquele que chama mais a atenção; o que explode, interna e externamente. Porém para cada suicida há uma série de vítimas caladas, que sucumbem de outras formas.

Assim como em uma sala de aula o estudante bagunceiro é taxado de problemático, enquanto o mais calado, com seus problemas internos passa despercebido, as consequências do bullying também podem se expressar de forma silenciosa, bem mais discreta que um suicídio.

Quando a socialização é comprometida desde suas primeiras lições, ainda na escola, dificilmente o indivíduo vai recuperar esse aprendizado em uma etapa muito posterior de sua vida. É claro que muitos superam seus traumas e seguem a vida normalmente, mas por certo muitos seguirão suas vidas cometendo uma espécie de suicídio social.

Se no filme o garoto não sabe sequer diferenciar amigos de agressores, o que esperar de seu discernimento quando chegar à vida adulta, tendo que se relacionar em um ambiente de trabalho ou em um namoro? A descriminação poderá mudar de forma, atuando de forma sutil, silenciosa, mas inevitavelmente preconceituosa e ignorante, agora em relação às atitudes que fogem do padrão, pela deficiência de socialização que atuou fortemente em uma etapa essencial.


terça-feira, 4 de dezembro de 2012

Era uma vez eu, Verônica


A personagem do título, interpretada por Hermila Guedes, traz à tela a vida da médica psiquiatra recém-formada, que trabalha como residente em um hospital de Recife e passa a ter que viver na prática a relação nem sempre harmoniosa entre médico e paciente. Mais que isso, o diretor Marcelo Gomes apresenta as angústias de uma Verônica ora médica, ora paciente, que se vê subitamente imersa em um oceano de dúvidas quanto à carreira e à vida, além de uma série de problemas que surgem para deixar as escolhas ainda mais difíceis.

Cursar medicina tradicionalmente remete à condição privilegiada, que coloca o profissional em relação de superioridade ao paciente – profissional, social, econômica, etc. Apesar de não ser de uma família rica, Verônica tem estabilidade econômica e mora com o pai, José Maria (W. J. Solha), que vive entre a alegria de ver a filha formada e a angústia de lidar com uma doença, que faz com que sua vida esteja no fim.

A doença do pai é um dos problemas externos com o qual Verônica deve lidar de forma solitária. Sua formação é uma de suas crises internas. A graduação é um período marcante na vida de qualquer um, mas o período de provas e trabalhos, atenuados por festas e amigos, chega ao fim jogando subitamente o até então estudante em um mundo prático, onde nem sempre a teoria do curso é suficiente.

A vida de festas com a qual a nova médica estava habituada não é nem um pouco condizente com a realidade de um hospital público, com poucos recursos e que abriga pacientes que muitas vezes, além da patologia clínica, apresentam uma carência de atendimento que é acumulada, graças ao descaso dos serviços públicos.

Não bastasse a doença do pai, o choque de realidades e a mudança no cotidiano – de estudos para atendimento – Verônica é uma psiquiatra, ou seja, seus diagnósticos geralmente não são condicionados a um exame laboratorial que irá indicar o medicamento e sua posologia. A médica depende do diagnóstico clínico, por vezes difícil e auxiliado pela experiência prática, que ela ainda não tem.

Um grande diferencial da protagonista é que apesar de se dizer fria e sem emoções, suas atitudes mostram o contrário. Com seu pai era de se esperar que houvesse mesmo grande atenção, corroborada pela ausência da figura materna, porém mesmo no hospital, com seus pacientes, Verônica dribla as dificuldades, crises e inexperiência com uma característica que muitos médicos acabam perdendo, com o olhar viciado que se desenvolve ao longo da prática profissional: a atenção ao paciente.

Na verdade a única frieza que a personagem tenta defender, sem muito empenho, é o distanciamento de sua vida pessoal durante uma consulta, tentando se afastar de seus problemas ao ouvir os lamentos, nem sempre remediáveis, de seus pacientes. A parte disso, Verônica é passional na medida necessária para fornecer, como profissional, a atenção e a resolução de problemas maiores do que uma consulta pode suportar.

Alguns serão complacentes com o sentimento de inadequação vivido pela médica, neste período de transição entre os estudos e a vida profissional. De fato este passo nem sempre é natural. Porém o grande destaque da personagem é sua postura que não se desvincula do paciente. Diferente de muitos profissionais da vida real, que provenientes de uma classe social extremamente privilegiada carregam certos conceitos que os fazem sentir-se superiores aos pacientes, por vezes tratados como se fossem verdadeiros incômodos em suas vidas, ela se reconhece em muitas angústias e medos daqueles que são atendidos.

Tanto diante dos problemas dos pacientes quanto em diante de suas próprias dificuldades, Verônica faz o que é possível em relação aos males que nem sempre têm cura. Na melhor das hipóteses a solução viria de uma reestruturação, que para quem é atendido no hospital, seria muito maior do que uma consulta pode proporcionar, mas ao menos para a médica, parece ser de fato uma fase – ruim, angustiante e que demanda tempo para ser resolvida.

É de se esperar que aos poucos os problemas de Verônica sejam resolvidos e que com a prática suas consultas fiquem mais seguras. Intercalando decepções com atividades bem mais prazerosas, como os amigos, o namoro (ainda que forçado), a música, a personagem parece considerar a hipótese de luz no fim do túnel. O que seria realmente conveniente é que ela mantivesse o profissionalismo e a atenção com que olha seus pacientes, atendendo cada um como se fosse o primeiro, mas com a experiência benéfica para a análise clínica.


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