O diretor Sergio Bianchi tomou o conto “pai contra mãe”, de Machado de Assis, como ponto de partida para seu filme. A obra original gira em torno de uma escrava fugitiva que é capturada por um capitão-do-mato (negros que, para salvar a própria pele, trabalhavam para os senhores evitando fugas). A partir disso o roteiro desenvolve mais que um filme de época, pois faz um paralelo entre a escravidão institucionalizada, descrita por Machado, e a atual condição da população explorada no Brasil – em sua maioria formada por negros.
Do ponto de vista da literatura, podemos ver o quanto a obra do escritor infelizmente permanece atual. É possível identificar o poder atuando de forma capilar e onipresente, conforme foi muito bem teorizado por Michel Foucault em “Vigiar e punir”; a parcialidade no cumprimento das leis em favor dos mais ricos; e as origens do ranço asqueroso do racismo, que permeia nossa sociedade e atua diariamente, variando apenas sua intensidade.
Hoje, fora das telas de cinema e das páginas dos livros, conforme ações que visam à equidade social sofrem com o ataque retrógrado dos que defendem direitos supostamente iguais – alegando que cotas, leis e incentivos raciais e sociais iriam ferir o a premissa da igualdade – seus defensores costumam alegar uma dívida histórica contra a população negra e indígena, porém este é o grande equívoco, já que não há dívida histórica nenhuma. Só poderíamos alegar dívida histórica se seu conteúdo estivesse relegado aos tempos de escravidão legalizada, porém o preconceito que impede a camada mais pobre – não necessariamente negros – de ascender economicamente é extremamente atuante e está tão enraizado na sociedade que seus efeitos tendem a ser atenuados até por quem o sente na pele. Este é um dos grandes destaques de Quanto vale ou é por quilo?.
Ninguém nega a barbárie de um sistema equivalente a um holocausto de quatro séculos, mas assumir simplesmente deixaria brechas para que os subjugados reivindicassem direitos verdadeiramente iguais, a partir daí moldam-se os argumentos das formas mais tragicômicas possíveis, como alegar que os próprios negros africanos escravizavam tribos rivais, o que tiraria a barbárie das mãos dos exploradores, não fosse o fato dessa escravização não ter sido espontânea, mas forçada sob a ameaça de extermínio caso a captura não fosse feita pela tribo em questão. Desconsiderando ainda que uma pessoa utilizar escravos, ainda que não tenha capturado o indivíduo em sua terra natal, não diminui a responsabilidade de quem escraviza.
Um recurso do cinema muito bem explorado é a construção da imagem, para destacar o que nossa memória heterodirigida tende a atenuar. Quando queremos suavizar alguma lembrança ou fato, o cérebro irá inconscientemente construir uma imagem mais tênue, ou seja, imaginam-se negros presos, acorrentados pelos pescoços ou atados a troncos, mas para tentar diminuir o terror de uma atitude tão vil não imaginamos o desespero causado pela privação dos movimentos, o sangue que escorria das feridas causadas pelas pesadas peças de ferro e outros detalhes, ressaltados no filme quando a trama se desenvolve no século XIX.
Transpondo o enredo aos dias atuais as cenas são menos agressivas, afinal a violência que atua sobre a população oprimida hoje é mais simbólica, ainda que não menos nociva. O sentimento falso de superioridade continua fornecendo base para abusos, com a diferença que hoje é necessário encontrar brechas na lei – nada muito difícil, visto que estas são formuladas pelos opressores.
O desvio de verbas de doações, como apresentado no filme, permite que empresas enriqueçam às custas do governo, ou seja, dos impostos pagos pela população, e ainda agreguem valor à sua marca com suposta responsabilidade social. O poder exercido pelos mais poderosos, que se aproveitam do conhecimento negado aos explorados, permite a utilização de “laranjas” para golpes que sequer são notados pelos donos das contas. A comparação direta da condição atual de negros com o período legalmente escravista. Esses e outros exemplos do filme culminam na reação extrema, que é praticamente a única, pois se a única alternativa a política é a guerra, a alternativa a uma política igualitária entre classes, sempre negada pelos poderosos, é a violência direta, que é condenável, mas bastante compreensível.
Quanto vale ou é por quilo? mostra que a exploração continua manchando nossa sociedade, que quando muito aboliu a legalidade dos castigos físicos arbitrários, desta forma não é por acaso que a violência – tanto entre classes distintas, quanto entre as classes mais baixas, que precisam salvar a própria pele – continua desenfreada. A simples repressão às classes mais baixas vem sendo aplicada há séculos sem sucesso, talvez a equidade social seja uma alternativa que vale a pena testar.