terça-feira, 25 de setembro de 2012

Elles


O tema da prostituição costuma estar presente em vários filmes, desde as tramas secundárias até o mote principal, porém o trabalho da diretora polonesa Malgorzata Szumowska traz uma abordagem mais perturbadora, ao tentar excluir o moralismo e apresentar certas relações veladas que permeiam o tema.

O contraponto da prostituição se dá com a personagem Anne (Juliette Binoche), ou seja, uma jornalista, madura, mãe de dois filhos, casada com um empresário e que pretende escrever um artigo para a revista Elle, sobre jovens que se prostituem em Paris, para conseguir sobreviver.

O enredo é universal, pois as características citadas em relação ao mundo da prostituição, como alto custo de vida, necessidade de manter um nível social, homens que buscam a fuga da rotina do relacionamento, entre outros detalhes, estão presentes em qualquer grande cidade e, salvo algumas particularidades, justificam a estrutura que sustenta o comércio do sexo.

As entrevistadas de Anne para obter material para sua matéria também representam dois estereótipos. A francesa Lola, o codinome de Charlotte (Anaïs Demoustier), esconde da família e do namorado sua profissão, alegando que não coseguiria outro serviço que a sustente com conforto. A polonesa Alicja (Joanna Kulig) chega a Paris e não vê alternativa para se manter no exterior.

É interessante notar a mudança de postura de Anne ao longo do filme. A jornalista, que a princípio expõe seus preconceitos e tem dificuldade em compreender a naturalidade com que as jovens aceitam a vida que levam, passa a questionar seu próprio estilo de vida.

De um lado vemos as meninas que, bem ou mal, batalham para uma vida independente e desvinculada dos homens, cujos papéis coadjuvantes baseados no machismo histórico sustentam as jovens, em troca da construção irreal de sonhos malucos do universo masculino, baseados na falsa superioridade diante da mulher.

Por outro lado Anne tem a família que aparentemente é o símbolo de sucesso, mas excluído o fetichismo da família feliz, a jornalista percebe que o filho mais velho, da idade das jovens que batalham pelo próprio sustento, é um garoto mimado, que por sempre ter tido tudo, não dá valor a nada. O marido executivo vive preocupado com a aparência de seu casamento e a qualidade do jantar preparado pela esposa para um encontro de trabalho, constituindo, de forma subjetiva, o típico cliente das duas jovens entrevistadas. Seguindo os passos do pai e do irmão mais velho, a tendência é que em breve o filho mais novo aumente o time de homens machistas.

O filme explora pouco os diálogos, dando mais valor às atuações em cenas mudas, talvez por abordar um tema que fica muito mais implícito quando permeia as relações sociais do que abordado de forma escancarada. Porém é possível acompanhar algumas conclusões de Anne, mesmo sem que elas sejam expressas verbalmente. É clara sua insatisfação com a jornada de trabalho associada aos afazeres domésticos, tendo ainda que cuidar dos homens que mal sabem encontrar um objeto dentro de casa e ouvir o pedido do marido, para que maneire nos discursos feministas.

Dentro do sistema milenar de machismo que rege a sociedade, o pedido do marido é plausível. Os homens retratados no filme são patéticos, vergonhosos. Desde o falso estereótipo de marido ideal de Anne, até os clientes das meninas, que variam do impotente, que chora feito uma criança diante da adolescente, ao boçal, que agride a moça para impor uma superioridade inexistente.

Diante de homens tão frágeis, também vítimas do poder capilar do machismo, a única forma de manter as aparências frente às mulheres fortes e batalhadoras do filme, é a censura e a força. O silêncio imposto pelo marido, que não quer que o discurso feminista atrapalhe seus negócios, o silêncio imposto pela sociedade, que fornece mercado para as jovens prostitutas ao mesmo tempo em que as condena pelo serviço, fazendo com que tenham que mentir sobre suas fontes de renda. Afinal, a prostituição pode existir, com a condição de não atrapalhar a aparência da família perfeita, sendo a culpa pelas traições dos maridos sempre atribuída à prostituta, não ao homem que a procura.

Sob a égide da moral e dos bons costumes vemos a hipocrisia de homens impondo a superioridade na base da força e de uma tradição sem sentido. Diante da pesquisa recente que indicou que mulheres são mais escolarizadas do que os homens no Brasil – lembrando que a história parisiense do filme é bastante universal – apenas uma tradição insana, baseada muitas vezes na agressão, pode explicar a hierarquia de gênero na sociedade.

Elles está longe de ser uma obra prima do cinema, mas a crueza com que mostra certas relações geralmente implícitas perturba. Impossível, como homem, não sair envergonhado do cinema.


terça-feira, 18 de setembro de 2012

Intocáveis (Intouchables)


O filme dos diretores Eric Toledano e Olivier Nakache também chegou ao Brasil com o título de “Amigos improváveis”, talvez para diferenciar do homônimo policial, da década de 80. As semelhanças se atem ao título, pois o filme francês aborda a inusitada relação entre o milionário Philippe (François Cluzet), que por ter ficado tetraplégico precisa de um enfermeiro que o ajude em tempo integral, e o desempregado Driss (Omar Sy), imigrante senegalês que vive no subúrbio de Paris.

O tom de comédia e as situações inusitadas na qual vemos Philippe ajudam a explicar o fenômeno de bilheteria do filme, também tendem a nos empurrar para uma análise rasa, de um filme que mostra as possibilidades de diversão e felicidade, mesmo a uma pessoa com sérias limitações físicas. Mais interessante seria pensarmos um pouco além das evidências do filme e explorarmos as entrelinhas dos discursos utilizados.

A princípio os motivos que levaram à escolha de Driss são incertos. O rapaz não possuía nenhuma experiência para lidar com deficientes e geralmente sequer identificava as necessidades de Philippe, cometendo erros dos mais grosseiros aos mais sutis, compreensíveis dado que certas necessidades evidentes para que as sente são quase imperceptíveis para os que nunca se imaginaram atados a uma cadeira de rodas.

Vemos que o interesse de Philippe, que no início chega a parecer um desafio ou mesmo uma birra infantil de provar ao subordinado que este não é capaz de suportá-lo, está exatamente na normalidade com que é tratado por Driss. O desconhecido não o tratava como uma delicada taça de cristal, mas como uma pessoa que apesar de ter perdido os movimentos do corpo, não teve danos à personalidade ou ao intelecto. O filme chega até a flertar com o tema da vida sexual dos deficientes, explorado mais a fundo no filme belga “Hasta la vista”.

O desenrolar do contato desajeitado dos dois não gerou uma relação mais profissional, mas uma amizade surpreendente não somente pela condição física ou pelo despreparo para o emprego, mas pela situação histórica que esta relação evidencia. Não há muitos elementos sobre a vida dos personagens, mas a riqueza de Philippe, como a de tantos milionários franceses, pode ter vindo da exploração de colônias africanas como o Senegal, país de origem de Driss. Este chega à França com poucos recursos e enfrentando uma série de dificuldades, sobretudo o preconceito, para conseguir estabelecer uma condição de vida aceitável.

Certas atitudes do imigrante são tão questionáveis quanto a estrutura social que permite a Philippe enriquecer explorando – direta ou indiretamente ao longo da história – as colônias, para depois utilizar o trabalho pouco qualificado de um imigrante, tentando questionar seus méritos e sua capacidade. A relação entre as sociedades da França e Senegal é repetida incansáveis vezes há séculos. Um país explorado até os ossos, tendo sua população privada de direitos básicos, freando ou mesmo bloqueando o desenvolvimento e a emancipação de seus indivíduos, enquanto na ponta da pirâmide a colônia enriquece material e culturalmente para posteriormente insistir que a diferença entre os dois países está no nível do mérito, esforço ou capacidade.

Aos poucos vemos que o contato dos dois personagens não é bom apenas para Philippe, que para de ser tratado como uma bolha de sabão a ser preservada e passa a ser visto como um ser humano. Também não é bom apenas para Driss, que além do salário que lhe dá um pouco de conforto ainda passa a adquirir maior capital cultural e uma forte referência para a nova profissão.

Os benefícios deste tipo de contato são gerais, por reduzirem certos abismos sociais, não apenas na França ou na relação entre colônia e metrópole – termos que só deixaram de existir na teoria. O contato entre classes tem a capacidade de desfazer preconceitos, esclarecer dúvidas inconscientes e agregar elementos distintos em ambos os lados. Não é apenas Driss que aprende no novo mundo milionário que passa a frequentar, mas Philippe também passa a ter que engolir em seco certos equívocos que sempre encarou como naturais e foram desfeitos pelo novo amigo.

Com uma sociedade extremamente verticalizada, que teme a ascensão das classes economicamente mais baixas e cuja principal meta individual não é a redução do abismo social, mas o êxito pessoal baseado na melhoria da condição econômica, vemos que Intocáveis não diz respeito apenas à vida prazerosa que é possível para um tetraplégico (milionário), mas indica também os benefícios mútuos do contato em lugar da segregação, que rompe com a existência de verdadeiros bunkers, formados por condomínios de luxo, em meio ao mar de caos social gerado pela miséria necessária para a existência dos tais bunkers.

Ps. Tema parecido é abordado no curta nacional “O Xadrez das cores”, de Marco Schiavon, que pode ser conferido na íntegra em www.youtube.com/watch?v=NavkKM7w-cc


quarta-feira, 5 de setembro de 2012

Meninas


Neste documentário a diretora Sandra Werneck acompanhou por quase um ano a vida de três adolescentes cariocas. Recém-saídas da infância, já encaram a responsabilidade de uma gravidez, com poucos recursos financeiros e todas as dificuldades que a pouca experiência de vida tende deixar ainda piores.

Apesar das três meninas morarem em favelas cariocas, essa é uma situação recorrente no país, representando assim um problema social grave, que o filme tenta expor sem preconceito e com um cuidado talvez excessivo.

Até meados do século passado, com a população rural maior que a urbana, a estrutura familiar era bem diferente. Com menos anos de estudo e a exigência de menos qualificação profissional, era muito mais comum a gravidez ainda na adolescência, que seria seguida de várias outras ao longo da vida. O problema é que atualmente essa característica não condiz com a vida em uma cidade.

Com a necessidade de estudo, qualificação e estabilidade, uma gravidez não impede, mas dificulta enormemente, como pode ser conferido no documentário, a formação da mulher, que em geral ainda deve enfrentar o peso do machismo que isenta o homem de praticamente todas as responsabilidades que deveriam ser partilhadas.

É interessante notar nas entrevistas com os familiares das três meninas forte moralismo, mesmo ao assumir certa responsabilidade pela gravidez. Ninguém fala em prevenção ou esclarecimento das consequências de ter que criar um filho, mas somente de uma suposta promiscuidade, que deveria ter sido evitada por parte da família.

Esse detalhe escancara o embate existente na nossa sociedade entre o moralismo, sobretudo em relação ao comportamento feminino, e a exacerbação da vida sexual, cada vez mais mercantilizada de forma irresponsável, pois seu estímulo (não necessariamente censurável) deveria vir fortemente acompanhado de esclarecimento, tristemente barrado pelo moralismo ignorante.

Vemos no trabalho de Sandra Werneck meninas que mal deixaram a infância, que se envolveram com homens mais velhos, porém inconsequentes e irresponsáveis – comportamento fortemente amparado pela característica machista da sociedade, que relega ao pai, quando muito, o pagamento de uma pensão –, sofrendo as consequências que irão perdurar ao longo de suas vidas.

Diante deste cenário é comum esbarrarmos na ignorância popular que relega às meninas uma suposta culpa por ignorar a evidência dos problemas e dificuldades resultantes de uma gravidez precoce. Entretanto o planejamento familiar e a prevenção da gravidez e de doenças sexualmente transmissíveis não têm nada de natural. É fácil para quem sempre recebeu orientação neste sentido alegar que os desdobramentos da gravidez são óbvios e a prevenção bastante simples, mas no filme vemos Luana, com quinze anos, afirmando que o bebê foi planejado, já que sempre cuidou do irmão mais novo e agora queria um somente dela.

A mãe de Luana passa o dia trabalhando, tanto que deve deixar a filha mais velha cuidando dos irmãos mais novos, passa pouco tempo em casa, tem pouco contato com os filhos e esbarra no moralismo, já citado, em relação à educação sexual. Do outro lado Luana vê o irmão mais novo como uma espécie de “boneca viva” e resolve ter um filho. O que pode beirar o surrealismo para quem sempre foi instruído a primeiro dar valor para uma formação escolar e estabilidade profissional antes de pensar em filhos é extremamente plausível para uma adolescente no contexto social em que Luana vive.

Antes de julgarmos as atitudes das três meninas retratadas, ou qualquer outra em situação semelhante, devemos lembrar que um olhar adulto é construído ao longo da vida. Não dá para esperar que crianças ou adolescentes tenham a noção de responsabilidade que muitas vezes até os adultos só têm de forma idealizada. Certas atitudes inconsequentes da adolescência, como fugir de casa, brigar com os pais, sair escondido, etc., são reversíveis, outras são permanentes.

Cabe ainda lembrar que, do título ao enredo, Sandra Werneck deu foco às meninas, tangenciando o papel masculino, que também é fundamental. Já mais velhos que as meninas retratadas, era de se esperar que os namorados tivessem mais responsabilidade, porém, ainda que o filme não tenha a intenção de mostrar a vida dos pais, fica claro que a mesma falta de informação faz parte também de suas vidas, com o agravante de que o machismo da sociedade estimula fortemente o comportamento irresponsável retratado.

Alguns anos depois a diretora lançou o longa “Sonhos roubados”, que acaba sendo quase um complemento deste documentário, por mostrar a vida de meninas em condições socioeconômicas semelhantes, porém sem focar a gravidez, mas abrangendo as dificuldades e problemas das jovens. Duas obras que devem ser conferidas.


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