O diretor Claudio Assis trouxe a expressão popular “febre do rato” para o título de seu filme, traduzindo muito bem o protagonista Zizo (Irandhir Santos). Está com febre do rato aquele que está fora de controle, assim como o personagem, poeta do subúrbio de Recife, que com muita arte e cultura constitui um foco de resistência contra a desigualdade social e a condição de vida difícil à qual boa parte da população brasileira é relegada.
A periferia retratada no filme tem elementos da dificuldade cotidiana, porém o foco principal está em algo além dos problemas, em algo que move aqueles que não deixam de viver por conta de uma situação socioeconômica repleta de empecilhos. E em um ambiente que em geral é falsamente estereotipado com base na simplicidade extrema, Zizo ganha destaque pela sofisticação de seus versos, usados principalmente para o amor e para a contestação política de sua condição de vida.
A arte nem sempre é simples, nem óbvia, nem trivial. Mas há em sua essência uma motivação questionadora, que faz florescer naqueles que admiram suas formas multifacetadas a dúvida diante do que já está estabelecido. Assim são os poemas de Zizo para seus amigos. Em um meio carente de cultura vemos personagens como Pazinho (Matheus Nachtergaele) com dificuldade para compreender as palavras difíceis do poeta – o que rende cenas divertidas –, mas também é notável o valor que se dá ao elemento lúdico, que é fundamental para aliviar as tensões da vida. Os próprios filmes de Claudio Assis são exemplos claros disso. Assim como seus antecessores – Amarelo Manga e Baixio das Bestas – o atual trabalho não tem nada de óbvio, instigando a reflexão de quem assiste, como é característico do chamado cinema de autor.
Para tocar na que talvez seja a maior e mais incurável ferida do país, ou seja, a desigualdade social gritante, o longa trabalha pontos pouco atraentes para filmes de massa, explorando a nudez e a falta de pudor, que sem dúvida é chocante, mas somente para aqueles que veem a desigualdade social, que deveria gerar a real perplexidade, de forma impassível.
O uso dos corpos para a exploração de sua fonte de prazer, sem falsa moral ou pudor, já era conhecido na Grécia antiga, e sofre censura relativamente recente na sociedade, sobretudo depois da reforma protestante. Esse embate entre prazer e censura é bem simbolizado por Eneida (Nanda Costa), tentada pelos enigmáticos versos incompreendidos de Zizo ela resiste às suas seduções, porém não por moralismo, mas talvez esta seja sua forma de brincar com o cotidiano, quebrando com o esperado, de forma semelhante ao poeta, mas sem sua habilidade para a escrita.
Este é um ponto em que o cinema de arte é frequentemente atacado. Felizmente a crítica se desfaz por sua própria falta de conteúdo, pois enquanto filmes belíssimos como ‘Febre do Rato’ são produzidos, suas críticas negativas caem no engodo de classificá-los negativamente pelo excesso de nudez e a exibição das classes baixas, enquanto convenientemente fazem vista grossa à essência do roteiro, que é o embate entre classes sociais, tema indicado como esgotado por quem é beneficiado pelo abismo econômico da sociedade, mas triste e assustadoramente presente no dia-a-dia.
A síntese do sujeito com a febre do rato vem de uma espécie de dialética entre arte e realidade. A sociedade brasileira, que há quase meio século viu a intervenção militar castrando ideologias políticas, coibindo artistas e reprimindo a vida daqueles que querem de fato vivê-la, parece ter vergonhosamente se acostumado com a repressão militar, que hoje fica a cargo da polícia, mantenedora do histórico hostil e metodologia avessa ao diálogo.
Quantos Zizos há na periferia de Recife, São Paulo, Manaus, ou qualquer cidade brasileira, produzindo sua arte e contestando sua própria condição social, é difícil saber. Mas sem dúvida eles são tolerados enquanto mantém suas formas de expressão restrita aos guetos da pobreza. A partir do momento que tentam quebrar a ordem para conseguir, de fato, o progresso, o conservadorismo daqueles que estão no topo da pirâmide social não se contenta mais em apenas criticar a falta de pudor ou moral. É necessário usar isso como argumento para suprimir a voz que exige seus direitos.
Em tempos em que a violência policial é vista como necessária para suprimir a voz daqueles que já são suprimidos de tantas outras formas, Febre do Rato deixa implícito a alternativa de uma vida vivida em sua plenitude, repleta da arte que a ilustra e instiga, sem amarras, sem bloqueios, sem alienação e com o prazer ilimitado que ela pode conter.