terça-feira, 26 de maio de 2015

De menor

Direito não é uma ciência exata. Por mais que, em tese, a lei seja igual para todos, a figura do juiz é indispensável na hora de analisar os fatos e aplicar a sanção cabível à situação, supostamente de forma imparcial e isenta de preconceitos. Assim, quanto mais uniforme a sociedade, mais fácil a ação penal, já que os juízes têm menos margem de interpretação.

Este longa da diretora Caru Alves de Souza mostra bem como uma sociedade heterogênea ao extremo como a nossa acaba proporcionando situações em que as leis ficam bem distantes da imparcialidade que deveriam ter.

A jovem advogada Helena (Rita Batata) defende menores infratores, se esforçando para que a lei seja cumprida. O papel do advogado não deveria ser esse. Em um sistema judiciário confiável, não seria necessário alguém atuando de forma enfática para que direitos constitucionais básicos sejam cumpridos, mas, trabalhando na ponta do iceberg, Helena acaba intervindo em uma área muito maior do que deveria, na tentativa de buscar um pouco de justiça no meio de aplicações tendenciosas da lei.

Um contraponto da situação social dos menores que ela defende é seu próprio irmão, Caio (Giovanni Gallo). Órfãos, ambos vivem uma cumplicidade muito grande, característica de quem, além dos laços familiares, vê no irmão um adolescente como os que são defendidos por ela.

Quando a forte ligação dos dois irmãos é abalada pela suspeita de um crime cometido por Caio, as atuações profissionais serão postas em xeque. Para o juiz Carlos (Caco Ciocler) não deve haver diferença entre Caio e os demais menores julgados, assim como para Paulo (Rui Ricardo Diaz), promotor que costuma analisar os casos de forma muito mais rigorosa que Helena.

Evidenciar as discrepâncias entre os menores infratores pobres, sem amparo familiar, estereotipados como criminosos e o jovem branco, que possui parentesco com a advogada é indispensável, sobretudo diante das constantes tentativas de redução da maioridade penal, que paira sobre nossa sociedade.

É um caso que extrapola os limites da maioridade penal, abrangendo uma discussão extremamente complexa sobre a imparcialidade da justiça e a influência socioeconômica sobre as sentenças, mas como o próprio título do filme indica, a intenção aqui é abrir a discussão em torno do tratamento dispensado aos menores infratores.

Pensando em um cenário ideal, quase onírico, não seria sequer necessária uma idade separando maiores e menores. Assim como não seria necessário um estatuto do idoso, a lei Maria da Penha, a criminalização do racismo ou a inexistente, porém necessária, criminalização da homofobia. Já que todos os crimes devem ser julgados de forma imparcial por um magistrado, este analisará todos os fatores que influenciaram no crime em questão e aplicará a melhor sentença.

Na prática a isonomia navega em um mar de preconceitos e interesses pessoais. Não bastasse o histórico de vida ser desconsiderado no julgamento de pobres que fugiram de casa antes mesmo de começar a frequentar uma escola e cresceram em um meio que naturaliza o crime, quando o infrator vem de classes mais altas ainda há complacência por parte de advogados como Paulo.

Camuflados com nomes que tentam atenuar a verdadeira função, os presídios para menores de idade não têm capacidade para recuperar ninguém, e disso poucos discordam – talvez somente políticos, quando precisam de votos. Uma pena que esta estrutura totalmente falida de ressocialização só seja questionada quando o infrator em questão vem da classe média.

Seja um jovem estudante do melhor colégio particular do país – sim, por vezes esses jovens também cometem crimes – seja um jovem morador do bairro mais pobre, a “internação na Fundação Casa”, ou seja, prisão, não recupera e ainda compromete o futuro de qualquer um. Seria hipocrisia dizer que um jovem rico tem um futuro mais promissor, portanto não deve ter a vida comprometida por um erro, já que o termo ‘crime’ só é utilizado quando aquele que o executa é pobre. Se por um lado seu futuro é supostamente mais promissor, por outro seu passado lhe garante mais estrutura para evitar práticas ilegais.

De fato é tarefa do juiz analisar possíveis desdobramentos dos fatos e pensar nas implicações de suas sentenças, ou seja, a privação da liberdade de alguém que tenha a tendência de cometer um assassinato não tem apenas o caráter punitivo, mas protege a sociedade de um possível crime. Não é no julgamento, a ponta de um longo processo, que as questões sociais serão solucionadas, nem é o juiz que resolverá a desigualdade latente de nosso país, mas a aplicação justa das leis de forma igualitária, doa a quem doer, ao menos forçaria condições mais justas da reclusão, para que os tais centros de reabilitação de fato sirvam para o que seus nomes indicam.


terça-feira, 12 de maio de 2015

Pelo malo

Pelo malo é o nosso ‘cabelo ruim’, ou seja, aquele cabelo cacheado que graças à miscigenação de nosso povo, é predominante, porém considerado ruim quando o padrão de beleza enaltece o cabelo liso dos europeus. Uma pena não terem traduzido o título, já que é o cartão de visitas de uma história que se encaixaria perfeitamente na realidade brasileira.

A diretora Mariana Rondón mescla dois dramas ao longo do filme, o do protagonista Junior (Samuel Lange Zambrano), que quer ter o cabelo liso, e de sua mãe Marta (Samantha Castillo), que se desdobra para criar sozinha os dois filhos, tendo que lidar com dificuldades econômicas e com a imposição de padrões absurdos, mas que ela interioriza de forma muito intensa.

Junior é órfão, sequer tem nome já que o pai não é mencionado. Para ele o mais importante ao longo do filme é conseguir dinheiro para tirar uma foto na escola, para isso ele também quer alisar o cabelo e vestir uma roupa de cantor. Quem compartilha esse desafio com ele é uma amiga que quer tirar foto vestida de princesa.

Para um adulto pode parecer um detalhe sem a mínima importância. Não passa de uma foto burocrática que irá ilustrar uma ficha de matrícula. Mas no universo infantil alguns valores podem ser bem distintos. O que deveria incomodar a quem assiste não é a importância que Junior dá à fotografia, mas sua amiga preocupada em voltar para casa, pois naquele lugar ocorrem estupros. Uma das formas de expressão do machismo que permeia todas as cenas do filme.

Já no mundo adulto Marta está desempregada e ainda deve lidar com a angústia e a insegurança de criar dois filhos sem a presença do pai. Não devemos aceitar o engodo de que o machismo é exclusividade dos homens. Imersa nesta triste realidade, Marta dá espaço contínuo ao machismo.

É evidente que ela não está em uma situação das mais fáceis. É difícil encontrar alguém confiável para deixar os filhos e não pode ficar muito tempo sem trabalhar. À parte da situação financeira, se preocupa em dar bons exemplos e suprir a falta do pai. Infelizmente é neste ponto em que mais pesa os valores insanos da sociedade.

A constante preocupação do filho com a aparência e a obsessão com os cabelos lisos a fazem desconfiar da sexualidade do menino. Esse absurdo nos faz pensar nas incoerências cotidianas, que juntas formam armadilhas das quais ninguém poderia escapar sem uma leitura crítica dos valores que nos regem.

Não bastassem as imposições econômicas que se abatem sobre a família, obrigando Marta a se humilhar por um emprego e impedindo que Junior tire uma simples foto; não fossem suficientes os padrões opressores de beleza, que na América Latina ganham peso ainda maior por basearem-se em um estereótipo que pouco se vê na população; cria-se ainda um comportamento paranoico, que desde cedo impõe masculinidade através de atitudes certas ou erradas para meninos que sequer desenvolveram interesse pela sexualidade.

Psicologicamente seria possível fazer inúmeras análises sobre a importância da figura paterna no desenvolvimento de uma criança, porém Marta, por total falta de instrução, interpreta essa recomendação da pior forma possível, buscando qualquer referência que no máximo iria corroborar os preconceitos que já cercam sua família.

Por trás da ideia de que cabelo crespo é um cabelo ruim ou da obrigação de que meninos tenham cabelo curto, há uma série de preconceitos mesclados e naturalizados, que prendem a família do filme em um estado permanente de subdesenvolvimento.

Claro que o menino pode alisar o cabelo, raspar, tingir, sem que isso influencie diretamente na relação familiar, mas as dificuldades econômicas e sociais poderiam ser atenuadas com uma relação mais afetuosa entre mãe e filho, que não fosse sufocada pela obrigação de perpetuar valores machistas.

Em uma vida quase determinista, é possível imaginar sonhos desfeitos diante da hegemonia dos preconceitos vigentes. A tendência é que, cansados de remarem contra uma maré fortíssima, as raras exceções – sobretudo quando tão jovens e sem referências como Junior – acabem se rendendo à vergonhosa pressão social.

Um filme que desperta sentimentos tão intensos e diversos como 'Pelo malo' não apresenta somente as questões objetivas. Olhando com cuidado encontramos algumas nuances. Uma criança relata medo de ser estuprada, mas tudo bem, contra isso ninguém tomará uma atitude objetiva. O máximo que será feito neste sentido é alertar a menina com dicas para reduzir as chances de estupro. O que é combatido diretamente é o ‘cabelo ruim’ e a suposta homossexualidade. Com a violência e a pobreza logo se aprende a conviver. Infelizmente.


terça-feira, 5 de maio de 2015

Kamikaze

O termo Kamikaze nos remete à Segunda Guerra Mundial, quando o exército japonês, em frangalhos e sem recursos, via como única forma de ataque carregar um avião com explosivos para que o piloto se lançasse contra o alvo. Neste longa do diretor Álex Pina o Kamikaze é, na verdade, um homem-bomba.

Slatan (Álex García) é um cidadão do fictício Karadjistão e recebe como missão embarcar em um avião com um colete de explosivos a ser detonado em pleno voo, como represália pelas ações russas contra seu povo. O imprevisto é que uma nevasca adiou a viagem, obrigando Slatan a passar alguns dias hospedado junto com os demais passageiros.

Apesar de ser baseado neste argumento potencialmente tenso, o diretor tem o mérito de apresentar o filme como uma comédia permeada de questões muito pertinentes, que nos ajudam a pensar um pouco melhor a questão de pessoas que não somente estão dispostas a entregar a própria vida como também a destruir o maior número de vidas ao redor.

Situação distante de nossa realidade, claro que é revoltante pensar nas vítimas de um homem bomba. Se é desconfortável andar por uma grande cidade com medo da violência urbana, que dirá andar com o receio de passar ao lado de alguém na hora exata que o detonador for acionado.

A questão é muito complexa para ser reduzida à criminalização dos suicidas. É claro que um ataque deste tipo está errado e traz muitos problemas, por outro lado a ideia realmente não é trazer solução, mas estabelecer a insegurança. Para que uma pessoa se disponha a amarrar explosivos no próprio corpo e acionar os detonadores quando estiver rodeado por desconhecidos é preciso mais do que motivação. É necessário doutrinação. Lavagem cerebral, mesmo.

É neste ponto que entra a diferença entre Kamikaze e homem-bomba, sugerida acima. O Kamikaze não sai do escopo militar e ainda que uma guerra seja questionável, durante a batalha prevalece o instinto de matar para não morrer; no caso dos guerreiros japoneses ocorria um suicídio altruísta, morrer significava eliminar inimigos para proteger seu próprio povo.

Homens-bombas não atuam na esfera militar. Suas vítimas são civis, muitas vezes compartilham da mesma nacionalidade, crença religiosa e estilo de vida, por acaso frequentam o mesmo alvo simbólico em comum, enquanto os verdadeiros algozes de seu povo estão em segurança em algum local inacessível aos suicidas.

Uma vez que o objetivo de um ataque suicida não é acabar com a opressão sofrida pelo grupo ao qual o homem-bomba faz parte, e sim criar instabilidade política e insegurança, é bem provável que nos minutos que antecedem à explosão as futuras vítimas não sejam uma preocupação daquele que irá detonar a bomba, mas no filme esses minutos acabam virando vários dias, suficiente para que as particularidades individuais venham à tona.

Esse tempo extra dado ao homem-bomba do filme também é dado às suas vítimas, ainda que estas não saibam o que estava prestes a acontecer antes do voo ser adiado. O mais sedutor ao olharmos para alguém que comete um ato tão cruel é taxarmos logo de louco, maníaco ou qualquer adjetivo que deixe claro sua atitude abominável e o afaste das demais vítimas. Porém um olhar mais cuidadoso indica que todo mundo possui uma história.

Usando a tática narrativa de isolar um grupo de pessoas em determinado ambiente para mostrar as peculiaridades de cada um, o diretor nos mostra variadas personalidades. Muitos estavam eufóricos com a viagem, outros apreensivos dependendo do que motivara o voo, e entre eles Slatan era evidentemente o mais recluso e soturno.

É provável que tenha sido exatamente essa reclusão pessoal que tenha proporcionado ao personagem a empatia ausente nos demais. A maioria dos passageiros estava empolgada demais para prestar atenção no que estava a sua volta, sobretudo em um homem discreto, que parecia fazer questão de não existir para os demais.

Característica nem sempre valorizada, a empatia é uma habilidade rara em uma sociedade narcisista e egocêntrica. Definitivamente não é algo que se espera de alguém que está prestes a explodir todos que o rodeiam, por outro lado é valiosíssima na situação exposta, já que mesmo convivendo com as pessoas do voo, Slatan recusa contatos mais próximos. Observar os que estão próximos e se colocar no lugar do outro pode se tornar decisivo.

O fato de o filme ser uma comédia dá leveza às tramas dos personagens, por maior que seja a tensão de algumas situações. Por outro lado torna o final quase um jogo de cartas marcadas, o que não chega a comprometer a qualidade da obra.


(Não encontrei o trailer legendado, mas tudo bem, o trailer é ruim mesmo...)
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