Um grupo de amigos se reúne na sala de espera de um hospital, a espera de notícias de uma paciente, membro do grupo. A particularidade é que a união desses amigos aconteceu algumas décadas atrás, quando todos combatiam a ditadura militar.
Quem está internada é Ana, personagem inspirada na guerrilheira Vera Sílvia Magalhães, que aparece no filme somente na memória dos personagens representada por Simone Spoladore, ou seja, ainda jovem.
A diretora Lucia Murat foi muito precisa na escolha do título do filme. Quando um grupo de pessoas se reúne e começa a lembrar algum fato vivido o resultado é uma versão formada dialeticamente por fragmentos fornecidos por cada um. Por mais que tenhamos certeza de fatos passados, nossa lembrança é inevitavelmente impregnada por sentimentos que moldam nuances dos acontecimentos.
Essas divergências criam vários conflitos entre os amigos, que ao discutirem acabam abordando questões da ditadura que não devem ser esquecidas, e a reação de boa parte da população ao recente relatório elaborado pela Comissão da Verdade – criada para investigar crimes cometidos durante a ditadura – mostra o quando é importante contar essas memórias a partir do ponto de vista de que foi oprimido.
Os personagens demonstram, cada um a sua maneira, que as consequências do período militar ainda estão presentes em suas vidas, o que é bastante plausível, pois mesmo que já tenha passado quase trinta anos do fim da ditadura, as cicatrizes psicológicas deixadas nos combatentes são profundas e reavivadas por uma visão preconceituosa contra aqueles que lutaram pela liberdade.
Difícil de acreditar, mas ainda hoje há quem aceite que vivemos o risco de um golpe que instale uma ditadura chamada de comunista e ainda hoje há quem defenda um golpe militar que instale uma ditadura contra essa ameaça. É esse argumento pífio que é utilizado até hoje para justificar os crimes cometidos pelos militares ao longo de 21 anos de nossa história.
Trinta anos depois da reabertura política, não podemos dizer que vivemos um período político tranquilo. Um detalhe extremamente relevante é que nunca houve uma tranquildade consistente em nossa política. Se pensarmos na política como um retrato da sociedade que ela representa, a disparidade social gritante que marca a história do Brasil impossibilita uma política minimamente satisfatória, já que a despeito da sociedade pluralizada, os políticos são formados quase exclusivamente pelas classes mais altas.
Com a mídia assumindo papel de principal formadora de opinião da sociedade, ela molda a história de acordo com seus interesses. Apoiou a ditadura quando considerou necessário, retirou o apoio quando já não era preciso e agora auxilia na criminalização de movimentos de esquerda, associando militantes a criminosos.
Essa visão enviesada é um dos alvos dos diálogos do filme. Com uma direita mais coesa e homogênea, unida para a defesa de seus próprios interesses, a esquerda juntava forças esparsas e difusas para lutar por liberdade e justiça social. Multifacetados, os militantes políticos lidavam com as divergências internas com longos debates e deliberações, diferente do autoritarismo do governo vigente.
A partir do momento em que o governo democrático brasileiro foi derrubado e o poder foi tomado de forma ilegítima, ações civis começaram a ser coordenadas como resistência, daí surgem assaltos a bancos para financiar a guerrilha, além do famoso sequestro do embaixador norte-americano, do qual participou Vera Sílvia Magalhães. Hoje é cômodo e conveniente aos militares alegarem que a ditadura apenas combatia esses militantes ditos ‘criminosos’, porém tais delitos só existiam em represália ao governo sem legitimidade política.
Beneficiados pela insana lei da anistia, militares alegam que os revolucionários também não foram punidos por seus atos, omitindo pertinentemente as sessões de tortura física e psicológica pelas quais os opositores do regime foram submetidos. O filme retrata as torturas de forma tímida. Podemos ver alguns personagens que apresentam sintomas, desde os mais leves até a loucura em nível mais crítico, porém uma barbárie tão cruel talvez merecesse mais destaque.
Escondendo-se por trás da censura e toda rigidez que protegia o governo da época, os militares de hoje exaltam o crescimento econômico da ditadura e indicam os escândalos de corrupção atuais para forjar uma defesa ética. A imprensa, que hoje conta com a liberdade impensável no auge da ditadura, poderia ao menos esclarecer para a população como a dívida externa do país disparou para sustentar o aparente crescimento e como a corrupção era incalculável e omitida através de censura rígida.
A memória que o filme conta é bem distinta da estória que os militares contam. Independente de qualquer visão política é uma memória que deve ser revisitada com frequência, contada por pessoas que merecem antes de tudo muito respeito, não apenas pela obstinação com que lutaram, mas também pelos castigos físicos e psicológicos que tiveram que passar para que o país pudesse se livrar de um período tão sombrio.