terça-feira, 18 de março de 2014

Rush - no limite da emoção (Rush)

Rush apresenta uma das mais marcantes temporadas de Formula 1 de todos os tempos. Além da tradicional disputa psicológica fora das pistas e das manobras arriscadas na briga por posições, culminando em um campeonato decidido por detalhes, ainda teve um dos mais sérios acidentes não fatais da categoria.

Niki Lauda (Daniel Brühl) e James Hunt (Chris Hemsworth) foram protagonistas históricos na Formula 1, retratados com maestria tanto pelos atores quanto pelo diretor Ron Howard, explorando as características marcantes de cada um. Lauda extremamente técnico e preciso em cada detalhe, Hunt muito mais visceral e instintivo.

Independente de ser ou não fã de automobilismo, essas características dos pilotos abriram espaço para uma análise da construção dos personagens ao longo do filme. Acredito que a maioria dos que acompanharam o campeonato de 1976 acabaram torcendo pelo título de Niki Lauda, sobretudo nas últimas corridas. Voltar a correr apenas três provas depois de um acidente pelo qual chegou a receber a extrema unção costuma ser encarado como, além de loucura, um exemplo de superação.

Porém no filme, desde o começo as pessoas são empurradas para o lado do piloto austríaco, em detrimento de James Hunt. É inegável que o britânico era um playboy descompromissado e fazia questão de ficar longe da fama de bom moço, o curioso é como temos a tendência de penalizar esse comportamento e valorizar quem abre mão de uma vida de prazeres em prol do trabalho duro.

O consenso é que Lauda foi muito mais piloto que Hunt. Este último foi campeão por uma série de acasos, ou seja, chegou a Formula 1 graças à saída de Emerson Fitipaldi para a fracassada tentativa de criar uma equipe brasileira, foi beneficiado pelo acidente de Niki Lauda que comprometeu seu desempenho posterior e, muito provavelmente, não teria conseguido superar o rival não fossem as condições adversas da última corrida.

Se por um lado podemos pensar no título de Hunt como uma injustiça, por outro a aparente falta de compromisso com a seriedade, o desleixo com o preparo físico e o descaso com os treinos podem também ressaltar sua qualidade como piloto, afinal, podemos imaginar a que nível chegaria com mais dedicação ao esporte.

Entre as principais rivalidades do automobilismo, a criação de “mocinhos e bandidos” costuma ser acima de tudo lucrativa para a categoria. Uma disputa exclusivamente técnica costuma não ser tão empolgante quanto aquelas que envolvem disputas mais acirradas também fora das pistas.

Neste caso é a partir dos boxes que a torcida começa a se identificar, geralmente com aquele que apresenta mais comprometimento com o trabalho do que com a diversão. Talvez a exceção fosse um piloto intermediário, que juntasse a precisão cirúrgica de Lauda com a emotividade de Hunt, mas esse piloto só brilhou no final dos anos 90, desbancando Alain Prost sempre que os cartolas da Formula 1 permitiam.

Em uma época que o automobilismo ainda não estava plenamente dominado pelo interesse de patrocinadores, quando os pilotos, mesmo que sob influência do patrocínio, ainda podiam demonstrar um pouco de atitude além das reações mecânicas que predominam atualmente, é bastante natural que o filme seja visto com certo saudosismo.

A opinião geral é que a categoria já foi melhor e mais competitiva. Há controvérsias racionais em relação a essa ideia, afinal na temporada de 2014 a Formula 1 completará vinte anos sem uma morte de piloto na pista, o que inegavelmente torna as corridas mais agradáveis.

De fato o aumento da segurança está ligado, entre outros fatores, ao desenvolvimento da aerodinâmica, que trouxe grande aderência e dificultou a ultrapassagem nas pistas, o que não quer dizer que pilotar ficou mais fácil. Mais seguro, sem dúvida, porém o desenvolvimento da tecnologia permite que pilotos deixem para frear cada vez mais próximo das curvas, contornadas cada vez mais rápido.

O que não muda, e fica claro no filme, é a paixão pela adrenalina que as corridas proporcionam. O som dos motores, a tecnologia de ponta, a habilidade máxima levada ao extremo. Há quem encare o automobilismo como voltas monótonas em um circuito, há quem consiga identificar a magia que ronda as competições, fazendo com que toda uma equipe deixe aflorar os sentimentos mais profundos buscando a superação, pessoal e coletiva.


terça-feira, 11 de março de 2014

Flores Raras

Fazer um filme sobre duas personalidades de destaque em suas áreas tem seus prós e contras. Por um lado há um rico material produzido pelas artistas, a ser trabalhado nas telas, por outro sempre existe o risco deste material ser mal trabalhado. O diretor Bruno Barreto tem o mérito de utilizar bem as obras originais, para criar um filme biográfico com enredo fluente.

É interessante que os versos de Elizabeth Bishop (Miranda Otto) ou os traços de Lota de Macedo Soares (Glória Pires) separadamente já renderiam bons filmes, porém a união de ambas, com a inspiração mútua de cada trabalho, é o tempero que torna a história ainda mais chamativa.

A poeta norte americana chega ao Brasil em busca de inspiração e o primeiro contato não confirma as expectativas. Uma personalidade introvertida e habituada ao relacionamento mais distante de países anglo-saxônicos costuma se sentir bastante deslocada com o primeiro contato caloroso dos latinos.

Passada a primeira impressão, que nem sempre é a que fica, tanto o amor de Lota quanto a exuberância da flora fluminense fizeram com que desabrochasse em Elizabeth um dos grandes talentos literários do séc. XX. Antes de sua viagem um amigo americano alertou para o fato de uma viagem não permitir que escapemos de nós mesmos. O conselho é válido, mas falho.

De fato muitos tentam fazer uma viagem quando a vida parece não oferecer alternativas, porém depois de um período ausente, dure o tempo que durar, os velhos problemas costumam nos recepcionar com as mesmas flores murchas que deixamos para trás. A particularidade é que Elizabeth tem uma profissão muito singular, que muitas vezes precisa ser alimentada com novos ares para que possa condensar em poucas palavras uma vasta e confusa mistura de sentimentos.

Já Lota, uma arquiteta autodidata, se inspira na natureza ao seu redor, desenhando a própria casa em harmonia com a mata tropical que a cerca. As personalidades aparentemente conflitantes passaram a se completar da melhor forma possível, em um relacionamento que a despeito dos desentendimentos conseguia estimular e extrair o que cada uma tinha de mais profundo.

Como a vida é complexa e insuficiente, talento e amor não bastam. É claro que o filme é uma obra baseada na história de Elisabeth e Lota, nem tudo o que é mostrado aconteceu exatamente daquela maneira, porém o desdobramento de um relacionamento de mais de dez anos inevitavelmente traz desavenças, que nem sempre são bem trabalhadas pelo casal.

Voltando ao ponto de se tratar de duas pessoas que trabalham com criação artística, cada uma em sua área, não é difícil imaginar que a rotina de um relacionamento longo tenha efeitos colaterais. Antes de artistas, são pessoas que também agem por impulso, por interesse e muitas vezes cometem deslizes.

Quando estamos dispostos a compartilhar nossa vida, incluindo não só os bons momentos, mas por vezes nosso pior lado, que todos temos e por vezes se torna incontrolável, vivemos grandes momentos, que servem de inspiração e motivação. Evidentemente que também passamos por crises muitas vezes difíceis de serem solucionadas.

Como vemos no filme, os entraves de um relacionamento podem se tornar ainda mais sérios com a presença de egos insuflados pela fama, tanto da escritora quanto da arquiteta. Não se trata de fim do amor, na verdade o problema é até mais simples, porém mais difícil de ser contornado. Em geral, com o tempo, os caminhos que até então seguiam paralelos passam a se afastar, nenhum dos dois quer ceder e abrir mão ou de uma oportunidade ou do amor.

A maturidade de aceitar a necessidade de um afastamento temporário é mais difícil do que parece, ao menos quando se está vivendo a situação. Teoricamente é simples, basta que o casal aceite uma breve separação e trabalhe para que os caminhos voltem a estar em paralelo. Na prática, talvez até pela falta do amor que inspirava, mesmo após essa inspiração contínua ter se tornado banal com o tempo, essa simplicidade desaparece.

Diferente da maioria dos casais, Elizabeth e Lota deixaram marcas profundas por onde passaram. Tanto como casal quanto como artistas, podem ser admiradas pela determinação e atitudes inovadoras. É uma pena que cinquenta anos mais tarde algumas pessoas ainda deem mais valor para a orientação sexual do que para as obras excepcionais que ambas deixaram, principalmente o livro ‘North & South’, que rendeu à Elizabeth o prêmio Pulitzer, e o Parque do Flamengo, projetado por Lota e admirado até hoje no Rio de Janeiro.



terça-feira, 4 de março de 2014

Ela (Her)

Já não são poucos os filmes que narram a humanização de computadores como consequência da inteligência artificial. Desta vez é o amor romântico entre homem e máquina que chama a atenção, em um drama com comédia sutil, dirigido por Spike Jonze.

Computadores com tecnologia suficiente para imitar humanos são recentes em nossa história. Humanos forçados a se aproximarem de máquinas é a condição mais comum, tanto que isso nem chega a chamar muito a atenção.

Sobretudo com o surgimento de indústrias, homem e máquina passaram a trabalhar em conjunto e a grande maioria dos humanos devem doutrinar seus corpos para acordarem no mesmo horário, cumprir a mesma rotina e executar a mesma tarefa. Padronizar o consumo, a demanda, a estética. Viver de forma quase mecânica.

No filme o trabalhador humano é Theodore (Joaquin Phoenix). Sua função é escrever cartas. Em um futuro próximo casais pagam para que um desconhecido escreva cartas de amor a serem trocadas. Para organizar suas tarefas ele resolve testar um novo software. É como um computador onde se podem agendar compromissos, fazer anotações, realizar uma série de consultas, etc., com a particularidade da inteligência artificial.

Theodore escolhe que o software tenha voz feminina e esta escolhe o nome Samantha. A partir daí Theodore passa a ter a secretária que muitos executivos sonham. Disponível em tempo integral, não erra, não esquece, dá boas sugestões e faz as melhores escolhas. Muitas secretárias agem como mães subjugadas pelo poder econômico.

A consequência bastante provável de uma relação que envolva tanta cumplicidade é a paixão. Trata-se de um software, mas o que difere Samantha de uma relação à distância com alguém que tecla do outro lado do mundo? E Theodore não é uma exceção maluca. Várias pessoas do filme mantém um relacionamento com seus softwares.

Se por um lado cada relacionamento é único, por outro o roteiro costuma ser bem parecido. A fase que precede uma separação é marcada pelo casal envolvido em um tenso jogo de xadrez, no qual cada passo pode render um contra-ataque fatal. Na relação entre homem e máquina não é diferente.

Porém, como jogar com quem identifica até nuances da voz como medo, insegurança ou indiferença? Pode ser bom por não deixar dúvidas quanto a verdades ditas, mas às vezes não queremos passar nem para nós mesmos a insegurança de um sentimento confuso. Não estamos mentindo, mas perdidos em meio aos sentimentos conflitantes.

Os computadores e todos os seus recursos surgem com a função de sanar alguma necessidade humana. De simples operações matemáticas aos mais avançados programas, criamos ferramentas eletrônicas para nossas demandas. Mas em relação ao amor, o que queremos?

Samantha tem disponibilidade integral ao seu dono (ou namorado). Nunca está ocupada, indisposta ou cansada. Porém a capacidade de um computador é infinitamente superior a nossa, de forma que ela pode estar com Theodore e com mais milhares de pessoas e softwares ao mesmo tempo.

Nossa insegurança demanda controle; nosso egoísmo, exclusividade. Em casos extremos, queremos controle sobre o outro. O controle do computador é total graças à capacidade de analisar até nuances da voz, mas o nosso controle não. Isso é ruim? Em um relacionamento "de verdade" as inseguranças de ambos são confrontadas em uma dialética complexa, na qual ambos procuram as próprias verdades.

Caso Theodore pergunte a Samantha por quantas pessoas ela está apaixonada, ela é capaz de dizer um número exato, preciso. Não há dúvidas ou sentimentos confusos e ambíguos. Isso é bem pior do que pode parecer. No fundo, preferimos a doce ilusão de sermos únicos ao outro, mesmo em meio aos sete bilhões de pessoas do mundo.

Uma marca estética do filme é a distinção de cores na vida do protagonista. Quando Theodore está no trabalho ou em casa, mas sem contato com Samantha, o cenário tem cores vivas e gritantes. Feito o contato, com o qual ele esperava ser único, tudo fica mais discreto, acinzentado e apático, o que é curioso, pois o que se espera de um relacionamento é exatamente a vivacidade. Uma metáfora muito bonita é a de Theodore caminhando na neve, contra o vento, logo após uma conversa tensa e desagradável com a namorada.

É aflitiva a ideia de pessoas se relacionando com softwares, sobretudo pelo cenário factível apresentado. Talvez, espero, não chegaremos nunca a esse extremo, mas o fato é que independente de computadores, quando um encontro torna o mundo cinza e apático, é hora de rever certas prioridades.


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