Com seu longa o diretor Cary Joji Fukunaga parece não ter a intenção de entreter. Beasts of no nation é uma ficção baseada no livro homônimo de Uzodinma Iweala que mostra a dura realidade de um povo que precisa lutar pelas necessidades mais básicas, mesmo estando cercado de riquezas naturais.
É através da vida do pequeno Agu (Abraham Attah) que somos introduzidos em uma realidade extrema e cruel. Sua vida, sempre difícil, torna-se ainda pior após sua família ser assassinada por uma das milícias que tentam tomar o poder na região. Quase como um filhote de animal selvagem que perde a proteção dos pais, Agu não tem muitas alternativas se quiser continuar vivo.
Como acontece em qualquer território que tenha Estado omisso e desigualdade latente, as carências da população acabam virando moeda de troca, nesse caso servindo de base para a busca por apoio na guerra civil. É curioso notar que na guerra são incorporados elementos do mundo ocidental, como armas pesadas, para não dizer a própria ideia de aniquilamento do inimigo, porém muito dos costumes nativos são mantidos. Vemos uma soma de cultura com o pesar de contribuirmos com a pior parte.
Resta a Agu juntar-se ao exército composto por meninos não muito mais velhos que ele, recebendo o que seria um treinamento militar que não vai muito além de simular um rifle com um galho de árvore e talvez o mais importante: uma chance de sobreviver naquele ambiente hostil.
Não dá para dizer que no Brasil vivemos uma situação semelhante. A concretização de uma guerra civil, além das próprias características geográficas, nos afasta da condição do filme. Porém é inegável que a violência de nossa sociedade atinge níveis inaceitáveis, de forma que podemos ao menos imaginar uma analogia para que o contexto do filme fique mais próximo à nossa realidade.
Os planos abertos da área urbana do filme mostram um cenário semelhante a algumas favelas brasileiras. Moradias precárias, crescimento urbano sem planejamento e infraestrutura insuficiente para sanar as demandas da população, que acaba tendo a qualidade de vida extremamente comprometida.
O mesmo Estado que deveria ter o monopólio legítimo da violência deveria também fornecer condições de vida digna aos seus cidadãos. Ao abrir mão de políticas públicas de segurança, saúde, educação, etc. – seja no Brasil, na África ou em qualquer outro lugar – o Estado cria uma lacuna que quem conseguir preencher será aceito, ou pela simpatia proveniente da assistência ou pela intimidação da violência.
Nesse cenário a população acaba rendida, sem tem a quem recorrer. Em meio à violência os moradores locais acabam encontrando mais identificação com os grupos que lutam pelo poder, tanto por seus integrantes geralmente terem a mesma origem local quanto pela proximidade, infinitamente superior à de um Estado omisso e desinteressado nas necessidades mais urgentes dos moradores.
Quando o Estado atua somente combatendo a violência já institucionalizada não faz nada além de remediar de forma precária seus próprios erros, cometidos ao longo dos anos anteriores. Já os grupos que se digladiam pelo poder vivem quando muito uma ilusão de vitória, como, voltando ao filme, é o caso do personagem Commandant (Idris Elba), que lidera a milícia que aliciou Agu.
Uma diferença fundamental entre Estado e milícias de uma guerra civil é que estas não têm controle sobre as riquezas do país, nem negociam abertamente com empresas e órgãos internacionais. A partir do momento que existe um interesse externo em relação ao fim do conflito, existem mecanismos para que a guerra acabe e os líderes locais, que pareciam imbatíveis, tornam-se apenas mais uma peça descartada.
Nessa hierarquia social os líderes da guerra civil não estão muito acima dos demais indivíduos envolvidos direta ou indiretamente no conflito. O que vemos no filme é que Agu, algumas outras crianças e os jovens não perderam somente a infância – o que já não seria pouco –, muitos perderam sua civilidade, sua noção de indivíduo, sendo reduzidos a seres irracionais, que passam o dia em busca de alimento e fugindo da morte.
Conforme o próprio título indica, não são mais crianças, jovens ou adultos. Sequer são seres humanos. São bestas selvagens lutando pela sobrevivência, sem nenhuma identificação com a nação em que vivem, seja ela qual for. O paradoxo de bestializar esses indivíduos é que entre todas as espécies, a única que tem a capacidade de desvirtuar seus semelhantes a tal ponto é a nossa.