domingo, 21 de fevereiro de 2010

O prisioneiro da grade de ferro (auto-retratos)

Paulo Sacramento nos apresenta um documentário gravado no presídio do Carandiru, meses antes da desativação do mesmo. É uma visão mais realista que o longa mais conhecido sobre o tema (Carandiru, 2003, de Hector Babenco), não só pelo estilo de documentário despido de fabulações, mas também por muitas filmagens terem sido feitas pelos próprios detentos.

Evidentemente as tomadas feitas pelos presos podem ser taxadas de parciais e podem mostrar apenas o pior lado do sistema prisional – assim como qualquer edição ou qualquer obra que vise o circuito comercial –, de qualquer forma é interessante acompanharmos os dias e noites que mostram a diversidade que existe entre a massa de detentos, tratados da mesma maneira, independente do delito que tenham cometido.

Os dias longos de cárcere demandam atividades que variam entre trabalhos simples, como confecção de pipas e bolas de futebol; atividades artísticas como desenhos e esculturas, algumas rudimentares, mas outras que impressionam pela qualidade; religiões diversas contam com adeptos do catolicismo, candomblé, evangélicos, etc. E atividades ilícitas como produção da chamada “maria louca”, a cachaça de restos de comida; separação de pedras de crack e papelotes com maconha. Há uma série de equívocos por trás da presença de drogas na cadeia, afinal alguém permite que estas substâncias cheguem até os presos, os carcereiros sem auxílio policiais – quase sempre mal preparados – não têm condições de arriscar a própria vida para coibir o tráfico interno e devemos considerar o fato de que drogas como o crack geram alta dependência do usuário. É extremamente difícil abandonar o vício quando em liberdade e com apoio de pessoas próximas, mais ainda quando o usuário está encarcerado, sem tratamento para desintoxicação e estimulado pelos presos a continuar.

Algumas críticas que um filme desse tipo recebe são previsíveis. Antes mesmo de assistir, apenas pela descrição da obra, logo diversos indignados se reúnem dispostos a acenderem suas tochas e partirem para a caça às bruxas, argumentando que os detentos não estão em hoteis cinco estrelas, que devem pagar pelos seus erros e contam com mais regalias do que deveriam. De fato alguns daqueles homens proporcionaram terrores inenarráveis às suas vítimas, e devem pagar pelos seus erros, porém tratá-los como animais selvagens não atestaria seus comportamentos desumanos? Além disso, nem todos os detentos cometeram crimes hediondos, sendo que muitos por delitos leves vivem em meio aos ratos, com atendimento médico que permite que uma úlcera ressalte na barriga de um detento tal qual um alien prestes a nascer, uma perna fique necrosada ou que uma tuberculose ganglionar deforme completamente o pescoço de um ser humano.

Há um consenso nas sociedades em geral de que as condições de vida em um presídio devem ser piores que as piores moradias dos que não estão presos. Isso explica um pouco dos motivos que levam a cidade mais rica do país manter jaulas de seres humanos tão precárias, pois não há outra forma de manter um presídio pior que palafitas e favelas, diante das quais o governo insiste em não tomar providências. Agrada a classe média que defende o sofrimento dos detentos – mesmo que esses maus tratos venham sendo aplicados sem resultados há décadas – e, como indica um detento, mantém os presos sem instrução e sem senso crítico que possa gerar protestos conscientes contra um estado corrupto, que desvia rios de dinheiros sem nenhum tipo de punição para classes que economicamente formam o topo da sociedade, mas em atitudes formam uma escória de ladrões impunes.

Diante das imagens que mostram detentos sendo tratados de forma semelhante aos escravos, ou até pior, fica a dúvida: se a sociedade os trata tão mal, como eles tratarão a sociedade quando forem libertados?

(O filme pode ser conferido integralmente no YouTube)

terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

Só dez por cento é mentira

Este é um documentário do diretor Pedro Cezar em homenagem ao poeta Manoel de Barros. O cineasta tem o mérito de ter conseguido filmar a entrevista com o poeta, que tem aversão a qualquer registro que não seja escrito, pois diferencia o próprio ser em biológico e poeta, sendo que o que importa no poeta é o que escreve. E o mérito do cineasta não para por aqui.

O filme não se restringe a expor a obra do poeta e as entrevistas, mas transpõe a essência de seu trabalho para a linguagem cinematográfica. Com uma fotografia impecável – fortemente influenciada pelas ideias de Barros – Pedro Cezar traduz em imagens, de forma muito competente, os versos que expressam a realidade inventada pelo poeta.

A obra foi chamada de “desbiografia”, um termo do chamado “manuelez”, a linguagem bastante peculiar do poeta, que por vezes cria termos que ampliam o mundo. Os versos simples, sem métrica ou rima – que deixariam a obra muito racional, ao contrário da intenção de seu autor –, condensam imenso conteúdo que não tem base na realidade, mas na imaginação. É citado o exemplo do Pantanal que Manoel de Barros conhece tão bem, mas que em seus poemas ganham uma perspectiva diferente do real, já que a intenção não é descrever, mas ampliar a realidade.

Vivendo no ócio conspícuo vemos um poeta em tempo integral, que diz não saber fazer mais nada além de compor em seu “cantinho de ser inútil”. A atividade rompe com a correria do mundo moderno, para escrever o material utilizado continua sendo os caderninhos feitos a mão e os lápis. Em sua obra não há razão, tão pouco ciência. A ideia é retratar o mundo com suas lembranças da infância através da poesia, que ironiza dizendo ser inútil e obra de vagabundo, mas sem o sentido pejorativo do termo. O poeta faz uma analogia com o personagem Carlitos, o vagabundo tão simpático que também em meio ao ócio traz diversão e sonhos para quem o assiste, mantendo-se atual como os livros de Barros, ainda entre os poetas mais lidos do país.

Outro ponto alto do longa é mostrar como a poesia do autor influenciou outras formas de arte. Além da influência no cinema, notada no próprio documentário, vemos o artista plástico criando esculturas que dão nova função e imagem aos objetos que iriam para o lixo; o inventor que constroi brinquedos para dar forma às ideias do poeta – como a máquina para esticar o horizonte –; a filha de Manuel de Barros que faz ilustrações sem o intuito de relacioná-las com os poemas, mas com os quais o próprio poeta faz a associação; e outras formas de expressar a essência do trabalho do homem que amplia a realidade. Sua influência faz com que esta ampliação seja feita não apenas em versos e leva suas características de imaginação, que transformam um rio em uma cobra de vidro, de sinestesia, que dão sabor às cores ou cheiro aos sons e de invenção, que é diferente da mentira, para outras áreas que podem contribuir para deixar o mundo ainda maior.

O documentário mostra o mundo de sonhos contido na obra de Manoel de Barros, cuja base talvez seja compreendida por poucos nos dias atuais, com o mundo preso à práxis do capitalismo, para o qual toda produção precisa ter um fim prático e lucrativo.


Noventa por cento do que escrevo é invenção.
Só dez por cento é mentira.
(Manoel de Barros)


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