O diretor Milos Forman apresentou sua versão para a conturbada vida de Wolfgang Amadeus Mozart através do cinema. Em meio à tantas qualidades do filme chamam a atenção as cenas brilhantes em que os pensamentos dos músicos são exibidos como música de fundo, narrando cada passo da música. A obra ficcional, longe do rigor científico que podemos encontrar no livro “Mozart – Sociologia de um gênio”, de Norbert Elias, possui um lado lúdico mesclado a diversos fatos reais da vida do músico, o que nos permite fazer um interessante paralelo entre as duas obras em questão.
Vemos que o filme inicia deixando claro quem é o narrador, no caso o músico Antonio Salieri, já velho e martirizando-se por ter matado Mozart. Portanto todo o filme é narrado do ponto de vista de Salieri, tratando-se de um relato pessoal e parcial. O diretor indica ser um personagem carente e solitário através do criado, que diante da recusa do músico em abrir a porta do aposento ameaça não visitá-lo nunca mais. As breves cenas no hospício para onde levam Salieri nos dão ideia de como eram tratados os loucos naquela época, extremamente coerente com as descrições de Michel Foucault em seus estudos sobre a loucura.
A figura de Salieri no filme é praticamente uma personificação da sociedade de corte descrita por Elias, velha, já enfraquecida e o principal obstáculo para o fracasso pessoal de Mozart. Sob a ótica sociológica o filme indica diversas nuances condizentes com as teorias de Pierre Bourdieu. Em seu relato pessoal o personagem Salieri indica que o pai de Mozart ensinou o filho a ser músico, diferente de seu pai, comerciante membro da nova burguesia, para qual provavelmente a música tinha como principal função entreter a corte. Este fato refuta, como toda a obra de Bourdieu, a ideia de que Mozart tinha “dom” para a música, pois ainda que suas primeiras obras tenham sido escritas de forma extremamente prematura, algumas com apenas quatro anos, este talento foi desenvolvido, possivelmente como supõe Elias, para chamar a atenção do pai enquanto este ensinava música à irmã mais velha. Assim vemos que o talento do compositor não era inerente à sua personalidade, mas construído socialmente.
Para a sociedade de corte tão marcante quanto o talento musical de Mozart era seu comportamento excêntrico de quem, apesar de sempre ter frequentado os palácios, nunca teve comportamento de nobres. Tom Hulce trabalha este lado do músico com atuação impecável no filme, mostrando os gestos espalhafatosos e o riso marcante – ainda que Mozart estivesse longe da aparência de um galã de cinema. Algumas piadas escatológicas do músico também foram indicadas no filme e esse comportamento também desagradava à corte. Neste ponto é bastante útil a obra “O processo civilizador” de Norbert Elias, na qual o autor mostra detalhadamente como é lento a apropriação de determinados hábitos pelas classes sociais. Ao retratar a família do músico o roteiro do filme não dá tanto destaque ao pai de Mozart, por restringir-se a um período em que o filho se distancia, e dá mais ênfase para a esposa, sendo que a cena em que sua sogra assiste um de seus espetáculos mostra bem como há um abismo entre os hábitos da corte e o comportamento dos que estão socialmente distantes da nobreza.
A grande diferença do habitus da sociedade de corte e da burguesia é notável e marcante durante toda a vida de Mozart e muitos pontos ficam latentes no filme não apenas no comportamento, mas também na obra do músico. Salieri reconhece a qualidade de suas obras, lembrando que aqui este personagem é encarado como a personificação da corte, porém isso não é suficiente para que Mozart deixe de ser um mero serviçal. Sua socialização teve o intuito de formar um músico de acordo com os padrões tradicionais, daí a dificuldade de seu pai aceitar a decisão de deixar a corte de Strasburgo, e em relação à sua obra, a complexidade das músicas de Mozart formava um estilo que não agradavam seu público-alvo. Muitas vezes isso é apresentado no filme quando Mozart é criticado por um suposto excesso de notas em sua música. No livro o sociólogo enfatiza que o sucesso só faria sentido para o músico se vindo da nobreza de Viena, talvez por isso o personagem do filme critique tanto a Itália e seus músicos, mas o paradoxo é que para atingir seu alvo Mozart teria que alterar seu estilo musical, simplificando obras que considerava perfeitas.
A ópera “Figaro” adaptada por Mozart e considerada por ele – no filme – a melhor já escrita mostra o conflito entre uma nobreza já fraca, porém ainda poderosa, e uma burguesia ainda fraca, que aos poucos ganhava espaço, mas ainda não tinha poder para impor seus padrões. A obra foi considerada um fracasso por não ter agradado a corte, novamente por alegação de complexidade, mas na verdade o campo musical que agradaria a nobreza é que diferia do campo que agradava a burguesia. Conforme a indicação do amigo de Mozart, se a obra “Don Giovanni” fosse apresentada para as classes populares faria sucesso, porém não o sucesso que seu autor considerava consagrador. O ponto mais claro da diferença entre o gosto musical da nobreza e da burguesia é notado quando o diretor do filme mostra a família Mozart assistindo a um vaudeville. O filho do músico gosta, já que sendo ainda criança não tem seu habitus consolidado e é socializado em meio àquele tipo de música, mas posteriormente ao falar sobre uma obra do mesmo estilo a Salieri (sociedade de corte) Mozart se refere pejorativamente, dizendo que não era tão bom por ser apenas um vaudeville.
Ao compor “A flauta mágica” Mozart sabia que nunca agradaria a nobreza, mas sim as classes mais populares. O empenho na composição que foi retratado no filme, em parte pelo dinheiro que proporcionaria, e a satisfação do compositor em executar a obra refletem bem a frase citada por Elias: “Você sabe muito bem que os melhores e mais verdadeiros amigos são os pobres. A riqueza não sabe o que significa amizade.” Em “A flauta mágica” o músico utiliza a linguagem popular – sem se preocupar com a dúvida da corte em fazer uma ópera em italiano ou alemão – e fala do amor, ou seja, do tema que tanto insistiu diante da nobreza, que sempre o viu com desdém, chegando a falar sobre viver como um príncipe sem pensar e definindo a sabedoria com a frase “uma mulher é muito melhor que vinho”, bebida muito associada aos nobres, aos quais seriam impensáveis tais referências em uma ópera.
Educado desde pequeno exclusivamente pelo pai e com o intuito de servir à nobreza, Mozart não poderia encontrar a consagração de outra forma, a não ser através do reconhecimento da classe a quem ele pretendia agradar. A loucura, que no filme Salieri desenvolveu em Mozart através do fantasma do pai, não é outra se não a que a sociedade de corte impôs ao músico, recusando-se a reconhecer sua obra e impondo-lhe indiretamente a composição de seu próprio réquiem.
Apesar das pesquisas de Bourdieu terem sido feitas ao longo do século XX podemos notar como algumas semelhanças podem ser traçadas com a época de Mozart, principalmente em relação ao habitus e a socialização. Mesmo a ascensão social, que hoje é mais comum em nossa sociedade, tem suas raízes naquela época, por isso notamos o peso do capital social, muitas vezes decisivo na manutenção ou alteração do status social do indivíduo, semelhante à vida de Mozart.