terça-feira, 30 de janeiro de 2018

Libertador

Com a ascensão de Hugo Chávez na Venezuela em 2002 tornou-se recorrente o termo ‘bolivarianismo’, uma referência a Simón Bolívar. Mais de dez anos depois Chávez já se foi e referências ao bolivarianismo são usadas indiscriminadamente para adjetivar situações sem nenhuma relação com Bolívar, por pessoas que provavelmente não fazem ideia de quem foi historicamente conhecido como Libertador.

Daí uma das funções do cinema, que vai além de entreter. Longe de ser uma aula completa de história e sem a pretensão de esgotar as abordagens sobre o personagem, o diretor Alberto Arvelo apresenta um recorte da vida do venezuelano Simón Bolívar (Edgar Ramírez), com um resumo sobre sua ascensão e suas lutas.

Tendo atuado politicamente no início do séc. XIX, Bolívar foi peça chave para a independência da América espanhola, que não por acaso tem um desdobramento bem semelhante à história brasileira.

Depois de passar séculos enviando riquezas naturais para a metrópole, as colônias passaram a buscar a liberdade. Com o apoio da Inglaterra, que visava muito mais o mercado consumidor em potencial do que a benevolência de ajudar a libertação das nações, começaram a surgir insurreições pela América, das quais se destacaram personagens históricos como Bolívar, que liderou diversas batalhas e chegou à presidência da Venezuela, Bolívia e Peru.

As figuras históricas são construídas ao longo do tempo conforme a necessidade. Se personalidades contemporâneas, com vida e obra fartamente documentadas, geram extrema divergência entre apoiadores e críticos, que dizer de pessoas que viveram há mais de cem anos, com feitos documentados apenas com base em relatos e registros históricos nem sempre confiáveis.

Desta forma Chávez tentou resgatar o espírito libertador de Bolívar para uma espécie de nova independência, na qual a Venezuela se libertasse das amarras do capital e passasse a gerir suas riquezas, transformando-as em benefícios para a população – concordem ou não, esse era seu discurso.

No lado oposto a direita associa – quando não iguala – o bolivarianismo ao comunismo e à ditadura. Como curiosidade histórica, vale lembrar que quando Bolívar morreu, em 1830, Marx tinha 12 anos. Como fato histórico é imprescindível lembrar que Bolívar morreu lutando exatamente pela liberdade e contra um regime autoritário, que seria anacrônico chamarmos de ditadura.

Na guerra entre versões e apropriações, a principal arma deve ser o conhecimento. A história não é uma religião regida por dogmas indiscutíveis, mas uma ciência regida por paradigmas sujeitos a provas e questionamentos. A construção de heróis como a figura histórica de Simón Bolívar pode e deve ser debatida, porém aceitar passivamente que o bolivarianismo se resume a um golpe político para tomar o poder e implementar uma ditadura sanguinária chega a ser um desrespeito com a memória de nações que lutaram duramente pelo oposto.

Em uma América (espanhola ou portuguesa) que passou por séculos de exploração, escravidão institucionalizada e matança de seus habitantes nativos, reivindicar hoje uma autonomia real e que possa reverter riquezas naturais em um pouco de conforto para a população deveria ser um grito uníssono, mas infelizmente segue sendo sedutor unir-se ao opressor na esperança de ascender socialmente.

Um dos episódios marcantes na trajetória de Hugo Chávez foi a entrega de um exemplar do livro “As veias abertas da América Latina”, do uruguaio Eduardo Galeano, para o presidente dos EUA, Barack Obama. Entre o uso divergente do bolivarianismo Chávez ao menos tem argumentos mais sólidos. O livro resume a história de exploração do continente, da qual ainda não nos livramos.

Assim como a exploração é histórica, a tática dos exploradores também é contínua, oscilando muito pouco ao longo do tempo. A principal sedução é através da ilusão do oprimido de se tornar opressor. É assim que conflitos internos são criados e a sociedade fica fragmentada, frágil e muito mais fácil de ser dominada.

O filme mostra como muitos se aproximam de Bolívar oferecendo ajuda, porém visando mais a tomada do poder para exercer domínio sobre o povo no lugar da metrópole, ao invés de almejar uma sociedade livre e soberana. A situação política de hoje é diferente, contamos com os logros daqueles que lutaram por direitos básicos, pelos fim da escravidão e desvinculação da metrópole, mas infelizmente vemos muitos problemas com alicerces em explorações históricas, que já eram combatidas por Bolívar.

O Libertador é uma referência histórica importante, personifica a ideia de soberania e não deveria ter seus ideais distorcidos pelos que são contrários à autonomia dos povos. Ao invés de criar associações malucas e significados vazios para o termo bolivarianismo, deveríamos nos ater à luta por países latino-americanos verdadeiramente livres.


Um comentário:

Brisa Peregrino disse...

excelentes ponderações e reflexões! mais do que nunca, necessários.

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