terça-feira, 13 de dezembro de 2011

Cinema Aspirinas e Urubus

O longa de Marcelo Gomes é um filme de época. A história se desenvolve em 1942, quando o alemão Johann (Peter Ketnath) vem para o Brasil para fugir da guerra que devastava seu continente. Aqui já temos um dos tantos pontos interessantes do filme. Demora um pouco para notarmos que tudo ocorreu há quase setenta anos e durante todo o tempo temos a incômoda impressão de que é um relato atual. A gente surrada pelo tempo, cujas marcas de expressão impedem de estimar a idade, condiz com o cenário rústico, que dá ao filme de época a cara de contemporâneo, uma espécie de desdobramento de Vidas Secas, de Graciliano Ramos, que ganhou tons desbotados no lugar do original em branco e preto.

O sertanejo aqui segue os estereótipos quase inquebráveis com Ranulpho (João Miguel), que por acaso aproxima-se de Johann e ambos desenvolvem uma grande amizade, mesmo com tanta diferença cultural entre os dois. O trabalho do alemão é vagar pelo sertão, improvisando um pequeno cinema para exibir um filme sobre os benefícios da aspirina para os moradores da cidade grande. Se hoje, diante do bombardeio de informações e vídeos, as propagandas têm o poder de convencer as pessoas de que elas devem comprar uma coisa da qual nunca sentiram falta – por vezes sem sequer saber qual a utilidade – o que dizer de pequenos vilarejos isolados na década de 40.

Nosso primeiro impacto pode ser o de crítica às pessoas que compram aspirinas sem motivo e acabam gastando o dinheiro que fará falta para comprar bens essenciais. Mas a lógica de exibir uma mercadoria consumida em um local mais desenvolvido, para convencer consumidores de outros locais a comprá-la é reproduzida em várias esferas. Com o mundo globalizado e a facilidade de disseminação da informação, que não precisa mais viajar pelo sertão em um caminhão, improvisando um cinema, uma das principais técnicas de marketing continua sendo a exibição de estereótipos consumindo um produto que posteriormente será oferecido para quem, muitas vezes, nunca chegará perto de atingir o estereótipo da propaganda. Parece que mesmo muitas décadas depois da história narrada no filme, os urubus permanecem por toda parte.

A expropriação do dinheiro dos cidadãos é mostrada mais diretamente através da vendas das aspirinas, entretanto uma outra forma de enriquecimento do privado a despeito do público é citada no filme através do ciclo da borracha, já decadente na época, mas que movimentou muito dinheiro e muita gente ao longo da guerra, quando os nordestinos viram na necessidade de mão-de-obra para a extração do látex na Amazônia o vislumbre de uma vida melhor. O resultado é bem conhecido do povo brasileiro, quer dizer, alguns poucos enriqueceram o suficiente para manter infindáveis gerações de sua prole como poderosos donos de terra, não necessariamente brasileiros, basta lembrar que uma cidade da região amazônica se chama Fordilândia, uma ‘homenagem’ a Henry Ford, que investiu na extração de matéria-prima na região.

O que o filme deixa implícito, e a história nos revela, é que o ciclo da borracha foi um gérmen das parcerias público-privadas atuais, onde o estado entra com o investimento – neste caso custeando o transporte dos trabalhadores do nordeste para a região norte, além de toda assistência necessária para a população amazônica, que cresceu subitamente – e as empresas ficam com o lucro de tudo que é extraído, pagando taxas irrisórias perto do valor arrecadado com matéria-prima.

Entre tantos pontos do filme que poderiam ser ressaltados aqui, vale lembrar que em meio a tantas insanidades que rondaram a Segunda Guerra, cujos preceitos nazistas continuam a nos assombrar através de ignorantes que insistem, algumas décadas depois, em pregar intolerância e a tão ridícula quanto inexistente superioridade racial, destaca-se a bonita amizade entre um alemão, contrário à guerra, e um nordestino, que pouco sabe sobre o teor do conflito. Provavelmente essa relação não foi intencional, mas usar uma nacionalidade que em tempos de guerra remete ao nazismo, e um estereótipo tão atacado pelo nazismo velado em nosso país obteve um ótimo resultado ao mostrar que a convivência pacífica no plano individual pode acontecer livremente. Sem intolerância, sem preconceito, sem ignorância.

É mais uma ótima produção nacional, que obteve pouco destaque. Faz pensar na tela itinerante que Johann levava sertão adentro pode ser uma alternativa interessante, ao menos em curto prazo, para a escassez de cinemas pelo interior do país. Se serviu para a divulgação das aspirinas, sem dúvida serviria para a divulgação da cultura, essa sim presente massivamente em centros urbanos e pólos desenvolvidos e tão necessária para áreas distantes e carentes.


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