terça-feira, 19 de dezembro de 2017

Nossa Senhora dos Assassinos (La virgen de los Sicarios)

É impossível compreender a América Latina sem dar a devida atenção à religiosidade e à violência. Dois temas aparentemente contraditórios, mas que fundaram o alicerce do continente e seguem em uma alimentação mútua.

O diretor Barbet Schroeder não restringe essa síntese ao título de seu filme. Os assassinatos cometidos por fiéis, que buscam a benção por meio de terços, amuletos, orações e até mesmo ritos religiosos para abençoar o sucesso de um futuro assassinato são frequentes, expondo contradições sociais muitas vezes tão naturalizadas que sequer percebemos em nosso cotidiano.

A Medellín que sobreviveu às guerrilhas dos cartéis do narcotráfico pode estar, em média, mais segura que o caos da década de 1990, porém a desigualdade social segue gritante. Isso faz com que o problema da violência não seja sanado, mas restrito às periferias, de onde transborda e volta a atingir o centro. Uma triste realidade que se reproduz nas grandes cidades latinas.

As duas realidades isoladas pela diferença de classes se aproximam no filme pelo comportamento peculiar de Fernando (Germán Jaramillo). Um gramático que volta à Colômbia após viver na Espanha por trinta anos.

Tendo herdado uma fortuna suficiente para ter vida boa sem precisar trabalhar, Fernando representa o que pode ser a violência mais cruel e velada dos países latino americanos. A concentração de renda é hereditária e crescente. Ainda que sem trabalhar e vivendo de renda, Fernando tem um discurso elitista, que atribui a culpa dos problemas sociais aos pobres.

Não é um personagem tão simples, pois apesar do discurso reacionário, que chega a falar em extermínio dos pobres, Fernando se aproxima de Alexis (Anderson Ballesteros), que representa seu oposto. Mais jovem e muito mais pobre, é provável que além do relacionamento que surge do sexo descompromissado, o único sentimento compartilhado por ambos é a homofobia explícita nas ruas.

Após alguns chavões presentes em relacionamentos com grande diferença de idade, o que começa a ganhar evidência é a forma distinta como os dois personagens enxergam o mundo devido à classe social de origem.

O gramático, a princípio preso aos valores tradicionais e defensor da palavra, ainda que utilizada de forma ofensiva, versus o jovem matador de aluguel, crescido em meio ao salve-se quem puder da mais violenta periferia, onde os constantes cadáveres que amanhecem ao relento banalizam a vida, que pode ser encerrada graças a uma discussão pelo volume do rádio.

Esses universos aparentemente distintos e inconciliáveis vêm sendo fomentados ao longo dos cinco séculos da América Latina. O individualismo crônico costuma impedir que se reconheça no outro um igual. Existe uma falsa superioridade, pelo status ou pela força, que faz com que muitos acreditem no direito de excluir seu semelhante, ao invés de pequenas adaptações pelo bem comum.

A noção de bem ou espaço público nunca foi desenvolvida pelos colonizadores espanhóis e portugueses. Em seu lugar foi estimulado o individualismo extremo, que degrada o espaço público e reduz as relações sociais à competitividade de quem precisa excluir o próximo para não ser excluído.

Nessa estrutura distorcida de sociedade a violência se desenvolve em suas mais diversas formas, desde os assassinatos em plena luz do dia até as formas mais simbólicas, mas igualmente prejudiciais, como a corrupção, a concentração de renda ou os discursos higienistas de Fernando.

Ilustrada com os exemplos do filme, vemos que a violência é uma epidemia e as pessoas não se dão conta de que foram contaminadas. A princípio Fernando fica chocado com a banalidade com que Alexis comete um assassinato, mas em pouco tempo a sensação de poder sobre a vida e a ideia egoísta de que é preciso matar para não ser morto, atenua a reação de perplexidade do personagem.

Esse sentimento anestesiado diante de atitudes inaceitáveis de violência – física ou simbólica – ultrapassa os limites do cinema. Estamos tão habituados que sequer nos damos conta do quanto apoiamos um regime insanamente autoritário ao clamar por mais armas e tratamento desumano àqueles que, a exemplo de Alexis, aderem ao cotidiano criminal no qual cresceram.

Ao mesmo tempo somos complacentes com violências expressas de formas indiretas. Herdeiros como Fernando são admirados, mesmo sem que exista um real motivo de admiração.

Uma crítica pertinente, que fica por conta da conclusão que cada um tira da história do filme, está na consequência de armas distribuídas livremente, ainda que ilegalmente, pela sociedade. Acreditar que mais gente armada reduziria os assassinatos de Medellín, ou de qualquer outra cidade, é no mínimo inocente.


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