terça-feira, 7 de março de 2017

Eu, Daniel Blake (I, Daniel Blake)

O que me levou a esse filme foi ouvir o psicanalista Contardo Calligaris dizendo que é uma obra que explica o Brexit. Claro que não era essa a intenção do diretor Ken Loach, mas os problemas retratados oferecem uma justificativa bastante plausível para que a população mais velha do Reino Unido tenha tido peso fundamental na escolha pela saída da União Europeia.

Quem simboliza a frustração que deu origem à mudança é o protagonista Daniel Blake (Dave Johns). Passando por um período difícil de sua vida, tendo sofrido um ataque cardíaco pouco tempo depois de sua esposa falecer, Daniel é aconselhado pelo cardiologista a não voltar a trabalhar. Com isso ele passa a simplesmente buscar seus direitos.

Para melhor compreensão do que sente o personagem, vale a empatia de nos imaginarmos com uma idade avançada, sem filhos, com a perda recente da esposa, com a saúde fragilizada e agora incapaz de exercer a profissão de carpinteiro, que o sustentou ao longo da vida. O que sobra?

O ideal é que sobrasse ao menos a certeza de que as leis trabalhistas conquistadas com muita luta assegurassem uma previdência que garantisse uma vida digna, depois de tanto tempo de contribuição. Na prática o que Daniel encontra é um sistema burocrático e engessado, que trata todos os trabalhadores como peças de uma produção em série.

Com suas particularidades ignoradas, o protagonista deve seguir um rito padrão, que inclui responder imensos questionários de pouca serventia prática, feito por pessoas que mais parecem robôs programados para agir sempre da mesma maneira, ignorando imprevistos e incapazes de improvisar uma solução mais eficiente.

Em uma das peregrinações pelas instituições às quais tinha que relegar seu futuro – já que não podia trabalhar e não conseguia receber seus direitos previdenciários – Daniel acaba encontrando Katie (Hayley Squires), que enfrenta problemas com origens distintas, mas semelhantes pelo fato de convergirem para uma situação angustiante, da qual a personagem parece não conseguir escapar.

Mãe solteira de duas crianças, o fato de serem de dois pais distintos não gera nenhum problema direto, além da indicação sutil e intencional dos preconceitos que tudo isso pode suscitar. Katie acabou de chegar na cidade, justamente em busca de uma vida melhor, porém sem ter com quem deixar as crianças para poder trabalhar e sem nenhuma renda, sequer para as necessidades mais básicas.

Talvez pela afinidade criada pelas dificuldades burocráticas, a relação que se desenvolve entre os personagens é paternal, com Daniel cuidando das crianças como um avô dedicado, que fabrica presentes e consegue arrancar das crianças sorrisos que aparentemente só a idade nos ensina a obter.

Em pouco tempo a impressão que a vida dos personagens passa é a de que tudo poderia ser muito bom, não fosse a burocracia estatal impondo seus entraves a ponto de deixar Katie completamente sem alternativas. É como se a personagem fosse obrigada a se sujeitar a humilhações que não toleraria sem a pressão de uma vida digna aos filhos.

Por não ter mais nada a perder e levado à extrema exaustão psicológica diante de tantas dificuldades, Daniel se recusa a continuar tentando se encaixar em um sistema com o qual não se identifica e acaba tomando atitudes que a princípio seriam rechaçadas pela população, mas que pela percepção dos serviços estatais burocráticos generalizados, acabam apoiando simbolicamente o personagem.

Claro que a questão do Brexit é extremamente complexa para que seja resolvida em um filme que sequer tem essa pretensão, entretanto a saída do Reino Unido da União Europeia foi amplamente veiculada na mídia brasileira como uma tragédia, que a maioria da população aceitou sem saber ao certo do que se tratava.

O filme de Ken Loach mostra um lado pouco retratado, embora muito vivenciado – não só no Reino Unido. A empatia com as dificuldades dos personagens também deve ser olhada com o devido cuidado. Um estado desnecessariamente burocrático deixa qualquer um indignado, o que não significa que devemos aderir ao primeiro discurso populista que ofereça uma solução aparentemente fácil.

Boa parte dos fatos históricos que moldaram a sociedade contemporânea tiveram início na Inglaterra de Daniel Blake, inclusive a revolução industrial, as primeiras leis trabalhistas e boa parte da seguridade social. Todos são processos históricos que levaram muitos anos para serem concretizados. Acreditar que os problemas atuais – que existem e devem ser combatidos – serão resolvidos com um discurso nacionalista e radical é inocência por parte dos eleitores e má fé por parte daqueles que visam o poder.


Um comentário:

Anônimo disse...

Boa reflexão, bastante útil para quem quer uma indicação de um filme ou ler alguma ressonância sobre o mesmo. É um filme emocionante, que traz uma mensagem humanizadora e humanizante, talvez a que mais estejamos necessitando em tempos em que o coração tem sido deixado de lado em nome de uma razão que é incapaz de enxergar a história que cada alma carrega consigo. Valeu.

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...