terça-feira, 21 de novembro de 2017

O Matador

Um solo rico em pedras ou metais preciosos tem uma incrível capacidade de empobrecer a população local. Útil pela beleza que adorna os corpos da elite econômica, as pedras costumam deixar um rastro de sangue por onde são extraídas.

Essa é a base o filme do diretor Marcelo Galvão. Em uma pequena cidade pernambucana, na primeira metade do século 20, é a deslumbrante Turmalina Paraíba que move o ciclo de riqueza e desgraça.

O protagonista Cabeleira (Diogo Morgado) foi criado longe da sociedade, cresceu sozinho e difere muito pouco de um animal selvagem. Por um lado, como qualquer animal, não entende que valor pode ter uma pedra que não mata a fome nem a sede. Por outro, em pouco tempo aprendeu que as pessoas fazem qualquer coisa pela tal pedra.

As pedras lapidadas e com preços exorbitantes não aparecem no filme, mas é simbólico que o matador local, que criou Cabeleira, seja conhecido como Sete Orelhas (Deto Montenegro), uma referência ao mórbido colar feito com as orelhas de sete de suas vítimas. Ao que parece, o valor simbólico do ornamento está ligado às tradições locais. As orelhas do matador podem representar uma crueldade tão grande quanto as pedras garimpadas.

Com poucas adaptações o enredo do filme pode ilustrar diversas épocas da história do Brasil. Com ciclos de extração de ouro e território rico em pedras preciosas, nenhum território explorado reflete a riqueza que o solo abrigava. O material bruto sempre foi extraído com o suor de pequenos exércitos de trabalhadores, enriquecendo uma pequena quantidade de europeus.

No filme, o personagem que enriquece é o francês Monsieur Blanchard (Etienne Chicot). Mais um europeu que fugiu do velho mundo e aproveitou dois fatores que seguem assombrando o desenvolvimento nacional.

Um deles é a reverência à hegemonia cultural. Tudo o que vem da Europa, posteriormente dos Estados Unidos, é visto por muitos como sendo naturalmente superior e melhor. Assim os cangaceiros do filme, temidos e respeitados pela população local, baixam a cabeça resignados diante do francês, que não tem nada além de prestígio.

Outro fator é a herança escravagista. Hoje, um século após a história do filme, as diferenças geradas pela escravidão ainda parecem marcadas à ferro quente na história do país. No desenrolar do filme a escravidão já havia sido legalmente abolida, mas na prática o Estado não tomava nenhuma medida contra aqueles que, a exemplo de Blanchard, mantinham trabalhadores em regime de escravidão.

É muito cômodo olharmos para as questões retratadas no filme e imaginarmos uma subserviência consciente dos personagens, que poderiam tomar alguma atitude contra o francês e mudar o destino de exploração e maus tratos. Porém a ideia de continuidade é desenvolvida ao longo do filme.

Ter consciência sobre a cadeia produtiva de uma pedra preciosa, desde sua extração até o comércio de uma joia, nos dá grande vantagem em relação aos explorados que só sabem que as pedras são importantes, por algum motivo que eles desconhecem.

Cabeleira tem um comportamento extremo de quem não possui nenhum freio moral para obter o que deseja. Para ele isso se resume em matar pessoas a mando de Monsieur Blanchard em troca de pedras, que serão trocadas por sexo. Exigir que ele tenha uma noção mais ampla do mundo que o cerca é de uma utopia infantil.

A falta de socialização, que é gritante em toda a vida do protagonista, se expressa em níveis distintos nos outros personagens. Considerar uma pedra de Turmalina Paraíba mais valiosa que a vida de uma pessoa é uma barbárie, porém só possuímos essa noção graças a valores distintos da realidade do filme que recebemos ao longo da vida.

Para a população local, um assassinato em plena luz do dia é fato corriqueiro, sobretudo a mando do francês ou por parte de algum matador renomado. Foi passado através de várias gerações que as ordens eram dadas pelos europeus e obedecidas pelos cidadãos locais.

Essas leis informais foram vigentes no sertão da Turmalina Paraíba, nas Minas Gerais do ciclo do ouro, na Serra Pelada recente e selvagem. Estendendo o raciocínio para outras cadeias produtivas informais e predatórias, veremos que a exploração de recursos naturais raramente é feita de forma responsável. O ganho de poucos é marcado pela exploração humana e devastação ambiental.


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