terça-feira, 17 de janeiro de 2012

1984

Who controls the past
controls the future.
Who controls the present
controls the past.


O diretor Michael Radford fez essa ótima adaptação da obra homônima de George Orwell, tornando ambas indispensáveis. O filme é bastante fiel à essência do livro, tendo evidentemente cortado algumas partes, sobre tudo as detalhadas diretrizes do fictício partido ‘Ingsoc’, que comanda de forma totalitária a sociedade retratada.

Orwell concluiu sua obra no fim da década de 40, fortemente influenciado pela Segunda Guerra e o totalitarismo que culminou na destruição de boa parte da Europa. O conteúdo de 1984 é a imaginação de como seria o mundo caso certas ideologias triunfassem, com controle de mídia, adulteração de acontecimentos, imposição de valores e costumes, além do estado atuando com mãos de aço sobre a população, que nada pode fazer além de seguir as ordens de quem tem a pretensão de zelar pelo bem estar do povo, como se este fosse incapaz de opinar ou escolher seus próprios caminhos.

O filme foi rodado no mesmo ano do título, curiosamente filmado nos mesmos dias retratados no diário que o protagonista Winston Smith (John Hurt) escrevia escondido do ‘Grande Irmão’, uma câmera que vigiava a todos os indivíduos. O curioso é que o totalitarismo, ao menos da maneira como retratada por Orwell, foi derrotado e no ano do título a Inglaterra – plano de fundo da obra – vivia uma situação política bem distinta. Seria, portanto uma obra anacrônica?

Ao longo da década de 80 países da América Latina eram governados por ditaduras militares que por vezes beiravam a encenação da obra de Orwell. A tortura aos que lutavam contra o governo, o controle de informações (com as famosas receitas de bolo no lugar de matérias censuradas nos jornais), a imposição de comportamento, etc. faziam com que a população tendesse a uma massa uniforme e acrítica, com focos de resistência, que com maior ou menor intensidade eram reprimidos pelo governo de partido único. Ainda que a realidade de tais países não fosse tão dura e rígida quanto o cotidiano narrado por Orwell, as semelhanças existiam e eram bem nítidas. Felizmente a grande maioria dos países tem hoje um cenário político multipartidário, com eleições periódicas e alternância de poder. Terá a obra de Orwell, mais de sessenta anos após o lançamento, se tornado anacrônica?

O regime totalitário dificilmente se sustenta por muito tempo, sobretudo em sociedades mais articuladas e instruídas, onde os focos de resistência encontram formas de fazer pequenas manifestações e, a partir delas, conseguir grandes repercussões. Porém Foucault já falava sobre a capilaridade do poder, que não precisa se expressar de forma grandiloquente por ter a capacidade de estar presente nos pequenos detalhes e em nuances da sociedade.

No filme o partido, que passa o dia todo dando informes através das telas espalhadas por todos os lugares, exalta o fato do analfabetismo ter subido a 56%. É evidente que atualmente essa é uma propaganda negativa para qualquer governo, mas não é por acaso que a educação vem sendo sucateada aos poucos, juntamente com a habilidade dos governos de países subdesenvolvidos de maquiar dados, divulgando baixas taxas de analfabetismo e omitindo o analfabetismo funcional. Portanto não é que a população aceita determinados absurdos, mas ela sequer os reconhece, encarando muitos abusos como atitudes corretas e necessárias.

A forma de noticiar fatos do dia-a-dia vem para complementar as ações do governo. Por um lado não há mais a censura direta do período da ditadura – sendo específico sobre o Brasil –, mas a mídia comandada por uma oligarquia de famílias, mais que tradicionais no ramo da comunicação, faz com que os interesses privados de classe permaneçam bem acima dos interesses da sociedade, enviesando tanto o conteúdo coberto pela mídia quanto a forma com que isso é feito, formando opiniões e guiando a maior parte da população para o lado que for mais conveniente.

Após alguns anos de população quase adestrada podemos verificar que quando em pequenos grupos, a população tem liberdade de criticar o governo e expressar a própria opinião, sem que isso termine inevitavelmente em tortura institucionalizada como na obra de Orwell. Porém qualquer manifestação que comece a ganhar maiores proporções, sob a falácia de restauração da ordem ou algo do tipo, é duramente reprimida pela polícia – que continua militar, mesmo após o fim da ditadura – com o respaldo da mídia, e consequentemente da população, que acaba acreditando que o monopólio legítimo da violência (uma das premissas estatais) pode e deve ser usado sem limites e sem alternativas.

A falta de contestação por parte da população e a submissão diante de qualquer abuso contra a sociedade, ou mesmo contra um único indivíduo da sociedade, abre caminho para a perpetuação de um estado que favorece poucos em detrimento de muitos, que aos poucos aprendem a amar um sistema que oprime, castra e limita as possibilidades, antes infinitas, dos indivíduos. Sem sombra de dúvidas, livro e filme são mesmo obrigatórios.


5 comentários:

Babalu disse...

Lembro que quando assisti a este filme achei bem interessante o personagem principal de 1984 ser o chanceler Sutler, no filme V de Vingança que retrata uma Inglaterra com algumas semelhanças ao ambiente de 1984.

Alê, como sempre, uma ótima crítica.

Babalu disse...

faltaram umas vírgulas aí, mas finge que entendeu que fica tudo bem.

Alexandre disse...

aeee \o/

O legal do livro é que tem uma parte meio cansativa, são as diretrizes do partido. Diretriz de partido que se preze tem que se cansativa mesmo XD

Anônimo disse...

Acho injusto dizer que a leitura do livro tem a mesma importância do filme. Assisti o próprio após ler tal e confesso enfaticamente que me decepcionei com o filme porquê NÃO RETRATA NEM 40% de tudo que se passa na versão impressa do romance. O ápice do meu emputecimento com o filme foi o diálogo do O'Brien com Winston. Porra, cara, no livro o diálogo é muito mais extenso, é discorrido duma forma MUITO mais enérgica, e essas duas características são evidentes q inexistem no filme onde é exposto mais friamente e "cortado" por mais da metade, sem a mesma alucinação arrepiante do livro. Não sei como é a versão japonesa e nem me animei a procurar pra baixar, mas digo que é estúpido tu minimizar as diferenças do livro para o filme afirmando que cortaram "algumas partes". Porra, será q só eu sou louco ou de fato faltou MUUUUUITA COISA no filme?
Acho magnífico teu discernimento, não li mtos outros pra ter um senso justo sobre os mesmos, mas nesse, ao menos, pisou feio na bola ao diminuir a real diferença do filme para o livro. Filme, vc foi bem produzido, maquiado e tudo mais, mas JAMAIS chegará a ter o mesmo parâmetro do livro, por mais q isso seja comum, mas devido à diferença gigantesca. Me indignei, sifudê esse filme e o artigo tmb. Se eu fosse diretor dessa merda, ou não faria ou faria todo, nem q custasse ou sugasse minha alma semi-inteira

Alexandre disse...

Obrigado pelo comentário! Bom, eu não disse que ambos têm a mesma importância, apenas que são, na minha opinião, indispensáveis. Adaptações de uma linguagem para outra sempre geram divergências quanto a qualidade. Não me incomoda ser mais ou menos fiel ao romance (até porque não dá para se falar em fidelidade quando se adapta literatura para cinema), só acho que apesar de mudar a trama original(pouco ou muito, dependendo da tolerância de cada um), a essência está lá... e isso é o que conta, para mim, numa adaptação de literatura para cinema. Por isso neste e em tantos outros textos que escrevi sobre adaptações, me atenho ao que a obra suscitou em mim - no caso a atualidade de um estado truculento, que pretende controlar até o pensamento dos indivíduos e fazê-los amar essa truculência. O conteúdo de 1984 é referência para muitos de meus escritos, não apenas no blog, demorei para escrever especificamente sobre ele, mas com tantas ações truculentas da PM, achei que era o momento ideal.
(quanto a qualidade, ou falta dela, da adaptação, não é o foco do blog, mas acredito que não será difícil encontrar sites que colocam isso como cerne da discussão)

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