terça-feira, 3 de maio de 2016

Hermano - Uma fábula sobre futebol

Este longa do diretor Marcel Rasquin é venezuelano. Um ótimo representante do desconhecido cinema de nossos vizinhos, sobre os quais sabemos muito pouco mesmo fora das telas. O interessante é que sua história ilustra a periferia de qualquer país latino-americano, mostrando que temos muito mais em comum do que certas divergências políticas tendem a nos fazer acreditar.

Com uma trama central Rasquin utiliza diversas ramificações para ao menos indicar problemas graves e onipresentes em comunidades carentes, tão frequentes que fazem com que um roteiro realista esteja sempre estruturado com a mesma base.

Daniel (Fernando Moreno) e Júlio (Eliú Armas) são irmãos. Não de sangue, mas de criação e no filme essa característica é relevante, pois Daniel foi encontrado ainda bebê abandonado em meio a sacos de lixo. Grandes companheiros, os irmãos formam uma dupla de sucesso no La Ceniza, time de futebol da favela, e sonham com a chance de jogar em um grande time.

Um diferencial da Venezuela em relação aos demais sul-americanos é que o esporte nacional não é o futebol, mas o basebol. Seria como se no Brasil os meninos aspirassem sucesso no vôlei ou basquete, ou seja, um sonho ainda mais difícil que a carreira no esporte mais popular e consequentemente valorizado.

A primeira reação ao vermos o velho sonho de ser jogador de futebol é a de pensar que as chances de sucesso são muito remotas. De fato, porém não demora para notarmos que o contexto social dos personagens faz com que qualquer sonho que vislumbre ascensão social é tristemente remoto.

Um pouco de reflexão nos mostra como as histórias dos personagens, mesmo que ocultas, são diferenciadas por nuances. O acaso colocou Graciela (Marcela Girón), mãe biológica de Júlio, em contato com Daniel, mas o menino passou perto da morte por inanição, ou de uma criação descuidada que poderia leva-lo a ser mais um menino viciado em cheirar cola, praticando pequenos roubos com consequências trágicas.

Outro laço de personagens com destinos correlacionados é o que se forma entre Daniel e a jovem Sol (Leany Leal), que ilustra um problema assustadoramente comum, o da gravidez na adolescência. Jovem, sem formação nem renda e com um vínculo muito tênue com o pai da criança, o desenrolar da gravidez precoce é uma denúncia sutil de como o machismo capilarizado acaba punido as mulheres. A história de Sol, repetida ao longo das gerações, é uma das hipóteses mais prováveis para a origem de Daniel, neste ciclo de vidas quase pré-determinadas, em que indivíduos dificilmente conseguem assumir o protagonismo da própria história.

No contexto dos personagens do filme, aspirar um futuro melhor implica em superar problemas inimagináveis para boa parte da população. Exatamente por não ter contato direto com essa realidade, as classes economicamente mais elevadas não levam em conta, ao pensar em jovens como Daniel e Júlio, como algumas situações influenciam no desenvolvimento do indivíduo.

É evidente que uma condição econômica confortável não livra ninguém de problemas, que são distintos mas não estão ausentes da vida de ninguém, porém o filme retrata jovens são bombardeados com problemas cujos impactos podem levar vários anos para serem superados até mesmo por pessoas muito mais experientes.

Imaginar que decisões plenas e sensatas sejam tomadas ou que tragédias sejam superadas do dia para a noite, sem nenhum tipo de auxílio externo ou mesmo uma formação básica que prepare esses personagens tão reais para a vida chega a ser inocente.

Cabe ressaltar como a justiça local é posta em prática. A favela é quase um Estado à parte, com as próprias regras e juízes. Estes são tão impiedosos quanto boa parte da população acredita que o Estado formal deveria ser, isso inclui tortura, julgamentos sumários e pena capital. Seria ótimo se a exposição dessa suposta forma de justiça, assim como todos os problemas que ela desencadeia, fosse suficiente para esclarecer aqueles que acreditam ser esta a melhor forma de conduzir a sociedade.

Não são apenas as implicações negativas de indivíduos condicionados pelo medo, mas também a insegurança de viver em um ambiente com julgamentos arbitrários, passíveis de erros sem volta e marcados pela barbárie. O que se chama de justiça, tanto a do filme quanto a formal, que se aplica fora das telas, acaba sendo uma forma de manter poucos indivíduos no poder, que no filme se caracteriza pelo traficante, reprimindo os demais até o limite da lei. Em uma sociedade com leis arbitrárias, o limite também é assustadoramente arbitrário.


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