quarta-feira, 19 de julho de 2017

O cidadão ilustre (El ciudadano ilustre)

A literatura não cria apenas uma realidade, cria uma realidade para cada leitor. Indo além das páginas do livro, cada um cria uma imagem do escritor, de suas inspirações e do que tem de real na história narrada, independente de quanto o livro seja fantasioso.

Isso ajuda a entender a situação do personagem Daniel Mantovani (Oscar Martínez). O escritor fictício ganhou o prêmio Nobel e agora pode se dar ao luxo de selecionar de forma muito criteriosa os eventos que aceita participar. A ligação afetiva faz com que ele aceite o convite para voltar a Salas, sua pequena cidade natal, no interior da Argentina, onde receberá o título de Cidadão Ilustre.

Não é fácil corresponder às nossas próprias expectativas. Idealizamos um cenário perfeito e a realidade sempre fica distante da perfeição, se não soubermos dosar a frustração e aproveitar os fatos concretos, as lamentações do que poderia ter sido serão sempre maiores.

A tarefa de Mantovani é ainda mais difícil, pois além de suas próprias expectativas geradas pelos quarenta anos de distância da cidade, ele ainda encontrará toda a população local, cada um com sua esperança individual de ascensão através da visita do ilustre desconhecido, já que poucos haviam conhecido pessoalmente o escritor.

Os diretores Gastón Duprat e Mariano Cohn filmaram um roteiro original, mas a obra acaba ajudando a entender porque a frase ‘o livro é melhor que o filme’ é tão popular quando diretores optam por uma adaptação.

Assim como os moradores de Salas criaram uma realidade imaginária com a visita de Mantovani, alguns com a possibilidade de demonstrar seus afetos, muitos contando com uma carona na fama do compatriota, cada leitor de um livro cria sua própria realidade a partir das descrições literárias.

É impossível a qualquer diretor de cinema corresponder à expectativa dos leitores, pois até mesmo sua própria leitura será distorcida ao ser filmada, com atores e cenários que não são idênticos ao que foi imaginado.

Com essa analogia podemos entender as frustrações que a visita de Mantovani proporcionou. Diferente do que muitos esperavam, o escritor é avesso ao assédio e à notoriedade. Ele até abre exceções por um pouco de simpatia, mas o público é intransigente em relação ao que espera.

Uma desproporção notável fica por conta dos valores de cada um. É evidente que passando tanto tempo em grandes cidades, em contato com a cultura erudita e imerso em um universo cosmopolita, Mantovani tem pouco em comum com os cidadãos provincianos, que não são inferiores por conta dessa diferença, somente têm um estilo de vida condizente com a realidade que os cercam.

A estrutura mercadológica também tem seu peso no abismo cultural formado entre o escritor e seus conterrâneos. À população de pequenas cidades do interior só chega o que pode ser consumido, gerando lucro para a cadeia produtiva. Desta forma os cidadãos mais ricos possuem grandes carros, casas suntuosas e ostentam bens materiais.

Em contrapartida, Salas, ou qualquer outra pequena cidade longe de grandes centros, não possui cinema, teatro, livrarias, muito menos exposições periódicas de artes. As pinturas de gosto duvidoso feitas por moradores não poderiam ser diferentes, já que nem mesmo os grandes nomes da pintura desenvolveram suas técnicas sem referências clássicas.

O orgulho ferido de alguns moradores diante da frustração com algumas atitudes de Mantovani não vem somente pelas críticas do escritor, mas pela condição inusitada de quebra de tradições.

Cidades que são pouco maiores que povoados possuem hierarquia política bastante clara. Os donos do poder não estão habituados, portanto não aceitam em nenhuma hipótese, ouvirem algo contrário ao que esperam, vindo de alguém sobre quem a elite não tem controle.

Colocando a literatura, ainda que de forma inusitada, como ponto central do filme, os diretores instigam de forma leve e bem humorada algumas reflexões sobre o comportamento social, confrontando a distância entre um escritor consagrado, que integra o seleto grupo de vencedores do prêmio Nobel, e uma boa parte da população, já que os estereótipos explorados estariam presentes em vários outros locais.

Um escritor engajado costuma pensar em temas profundos, que retratem problemas sociais e questionamentos internos, mas romper a barreira elitista e fazer com que as obras cheguem ao público alvo imaginado pelo autor, não pelas livrarias, é um desafio a mais para quem busca seguir o árduo caminho da escrita.


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