terça-feira, 26 de dezembro de 2017

Maria cheia de graça (María, llena eres de gracia)

Engolir dezenas de cápsulas de cocaína para trafica-las pode ser o passaporte de muita gente para mudar de vida. Os obstáculos para isso são diversos e a desejada mudança nem sempre acaba sendo para melhor. A vida é posta em risco de tantas formas que a decisão de trabalhar como mula para o tráfico está sempre envolvida por medos e dúvidas.

O filme do diretor Joshua Marston mostra os bastidores de uma arriscada viagem para tráfico, desde o contexto de vida da protagonista Maria (Catalina Sandino Moreno) na periferia de Bogotá até as dificuldades constantes ao longo de todo o trabalho.

Com apenas dezessete anos, Maria já tem sua vida reduzida ao trabalho. Sem o pai, a adolescente é a principal responsável pelo sustento da irmã mais velha, que precisa cuidar do filho recém-nascido, e da mãe, que ajuda no orçamento mas de forma modesta.

Após passar o dia todo retirando espinhos de rosas em uma floricultura, sob ordens arrogantes de um superior que se utiliza do cargo para inflar o próprio ego, Maria ainda tenta simplesmente viver a própria vida de forma descontraída, com o namorado ou com amigas, em festas improvisadas nas ruas do subúrbio.

A maioria dos moradores locais aceita a vida desinteressante e quase predestinada. Um trabalho massificado, no qual todos exercem a mesma função, cumprem o mesmo horário, comem a mesma comida. Não há espaço para particularidades.

Maria usa a determinação, às vezes inconsequente, da adolescência para recusar as alternativas mais comuns. Entre permanecer explorada indefinidamente em um subemprego e entrar em um casamento fadado ao fracasso, ela opta pela terceira via. Uma única viagem a Nova York poderia render o equivalente a alguns anos de trabalho.

Não bastasse a vantagem econômica, o traficante local tem a sensatez que falta ao empregador formal da floricultura. Até que consiga recrutar mais uma mula, o que impera no trato com Maria é o respeito e a consideração. Regras básicas de educação, geralmente ausentes na relação de exploração do trabalho. O assédio moral faz parte da redução dos indivíduos a uma peça substituível na escala de produção.

A cortesia do traficante não se sustenta, pois o que difere o tráfico do mercado de trabalho formal é apenas a ilegalidade da mercadoria. A estrutura de exploração do trabalho está presente, com o agravante de não haver leis trabalhistas nem organização sindical que lute pelos direitos dos trabalhadores.

O que parece ser uma ótima remuneração, principalmente se comparada ao salário baixo da floricultura, envolve o risco de morte e a constante hipótese de prisão. Aceitar a proposta do tráfico só se torna viável quando a vida arriscada já não era sedutora o suficiente. Para Maria, recusar a viagem significaria aceitar o destino de exploração, que garante condições mínimas para sobreviver, mas nada além disso.

Tendo início na Colômbia, o outro extremo está nos Estados Unidos. Com a obsessão de construir muros para barrar a entrada de imigrantes e coibir o tráfico, os norte-americanos se recusam a admitir que os alicerces de qualquer muro é a desigualdade, mantida em boa parte pela exploração dos Estados Unidos aos países da América Latina.

Os imigrantes tidos como fonte de perigo visam trabalho, seja como mão-de-obra barata, mas remunerada em dólares que podem auxiliar a família no país de origem, seja como fornecedor para o imenso mercado consumidor de drogas.

A hipocrisia em relação ao consumo de cocaína não se restringe ao governo que dissemina o preconceito contra imigrantes. Muitos usuários da droga adotam o discurso de xenofobia enquanto aspiram carreiras de cocaína trazidas pelos imigrantes em pequenas cápsulas, ingeridas no exterior e defecadas em território americano.

Maria e todas as outras jovens e bonitas mulas, escolhidas justamente para que a beleza ajude a driblar a fiscalização, formam o resíduo do difundido American way of life. A sociedade aparentemente hedonista, que atinge a plena satisfação através do consumo, varre para baixo do tapete uma legião de imigrantes que se recusam a aceitar a exploração como destino de vida.

O grande mérito de Joshua Marston é abordar todo o caminho do tráfico, que não é romantizado, mas não chega a ser criminalizado sem uma base social que exponha suas raízes. A conta do tráfico não fecha com argumentos rasos e preconceituosos, por trás de quem arrisca a própria vida para transportar drogas existe uma grande estrutura, de produção, circulação, distribuição e consumo.


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