Blog criado para divulgar artigos que visam analisar filmes dentro de um contexto social. A ênfase é para o cinema nacional e para que os textos não fiquem muito longos algumas ideias são sintetizadas. Deixe seu comentário!
Depois de quase dez anos, é hora de parar de atualizar esse blog. Talvez eu volte um dia, mas por enquanto é melhor investir em novos projetos.
Esse espaço nasceu por acaso, cheio de erros e tropeços (da escolha do Blogspot ao invés do Wordpress até o nome do blog, que assumo ser bem bobinho). Ainda assim cresceu de forma inesperada e acabou fazendo parte da minha vida.
São textos sobre 308 filmes de diversos países, ultimamente com foco na América Latina, que me ajudaram a escrever melhor, a ter contato com outras culturas e a conhecer pessoas que chegaram até o blog de alguma forma.
Acredito ter extraído tudo o que esse projeto poderia me oferecer. Claro que existe uma infinidade de filmes interessantes para assistir e comentar, mas estou em uma nova fase. Investir em outros tipos de textos parece ser um desafio maior e que pode me trazer mais benefícios.
Termino agradecendo aos comentários, aos contatos e às visitas! Meus contatos seguem ativos, quem quiser bater um papo sobre cinema ou jogar conversa fora, mande mensagem! =)
Com a ascensão de Hugo Chávez na Venezuela em 2002 tornou-se recorrente o termo ‘bolivarianismo’, uma referência a Simón Bolívar. Mais de dez anos depois Chávez já se foi e referências ao bolivarianismo são usadas indiscriminadamente para adjetivar situações sem nenhuma relação com Bolívar, por pessoas que provavelmente não fazem ideia de quem foi historicamente conhecido como Libertador.
Daí uma das funções do cinema, que vai além de entreter. Longe de ser uma aula completa de história e sem a pretensão de esgotar as abordagens sobre o personagem, o diretor Alberto Arvelo apresenta um recorte da vida do venezuelano Simón Bolívar (Edgar Ramírez), com um resumo sobre sua ascensão e suas lutas.
Tendo atuado politicamente no início do séc. XIX, Bolívar foi peça chave para a independência da América espanhola, que não por acaso tem um desdobramento bem semelhante à história brasileira.
Depois de passar séculos enviando riquezas naturais para a metrópole, as colônias passaram a buscar a liberdade. Com o apoio da Inglaterra, que visava muito mais o mercado consumidor em potencial do que a benevolência de ajudar a libertação das nações, começaram a surgir insurreições pela América, das quais se destacaram personagens históricos como Bolívar, que liderou diversas batalhas e chegou à presidência da Venezuela, Bolívia e Peru.
As figuras históricas são construídas ao longo do tempo conforme a necessidade. Se personalidades contemporâneas, com vida e obra fartamente documentadas, geram extrema divergência entre apoiadores e críticos, que dizer de pessoas que viveram há mais de cem anos, com feitos documentados apenas com base em relatos e registros históricos nem sempre confiáveis.
Desta forma Chávez tentou resgatar o espírito libertador de Bolívar para uma espécie de nova independência, na qual a Venezuela se libertasse das amarras do capital e passasse a gerir suas riquezas, transformando-as em benefícios para a população – concordem ou não, esse era seu discurso.
No lado oposto a direita associa – quando não iguala – o bolivarianismo ao comunismo e à ditadura. Como curiosidade histórica, vale lembrar que quando Bolívar morreu, em 1830, Marx tinha 12 anos. Como fato histórico é imprescindível lembrar que Bolívar morreu lutando exatamente pela liberdade e contra um regime autoritário, que seria anacrônico chamarmos de ditadura.
Na guerra entre versões e apropriações, a principal arma deve ser o conhecimento. A história não é uma religião regida por dogmas indiscutíveis, mas uma ciência regida por paradigmas sujeitos a provas e questionamentos. A construção de heróis como a figura histórica de Simón Bolívar pode e deve ser debatida, porém aceitar passivamente que o bolivarianismo se resume a um golpe político para tomar o poder e implementar uma ditadura sanguinária chega a ser um desrespeito com a memória de nações que lutaram duramente pelo oposto.
Em uma América (espanhola ou portuguesa) que passou por séculos de exploração, escravidão institucionalizada e matança de seus habitantes nativos, reivindicar hoje uma autonomia real e que possa reverter riquezas naturais em um pouco de conforto para a população deveria ser um grito uníssono, mas infelizmente segue sendo sedutor unir-se ao opressor na esperança de ascender socialmente.
Um dos episódios marcantes na trajetória de Hugo Chávez foi a entrega de um exemplar do livro “As veias abertas da América Latina”, do uruguaio Eduardo Galeano, para o presidente dos EUA, Barack Obama. Entre o uso divergente do bolivarianismo Chávez ao menos tem argumentos mais sólidos. O livro resume a história de exploração do continente, da qual ainda não nos livramos.
Assim como a exploração é histórica, a tática dos exploradores também é contínua, oscilando muito pouco ao longo do tempo. A principal sedução é através da ilusão do oprimido de se tornar opressor. É assim que conflitos internos são criados e a sociedade fica fragmentada, frágil e muito mais fácil de ser dominada.
O filme mostra como muitos se aproximam de Bolívar oferecendo ajuda, porém visando mais a tomada do poder para exercer domínio sobre o povo no lugar da metrópole, ao invés de almejar uma sociedade livre e soberana. A situação política de hoje é diferente, contamos com os logros daqueles que lutaram por direitos básicos, pelos fim da escravidão e desvinculação da metrópole, mas infelizmente vemos muitos problemas com alicerces em explorações históricas, que já eram combatidas por Bolívar.
O Libertador é uma referência histórica importante, personifica a ideia de soberania e não deveria ter seus ideais distorcidos pelos que são contrários à autonomia dos povos. Ao invés de criar associações malucas e significados vazios para o termo bolivarianismo, deveríamos nos ater à luta por países latino-americanos verdadeiramente livres.
Periferia da Guatemala. O trabalho é pesado, a remuneração é baixa e os casebres mal construídos são permeados pela violência do tráfico – de drogas e de pessoas. Nessa realidade, replicada por toda a América Latina, não é difícil sonhar com um Éden em que a vida seja, se não fácil, ao menos justa.
É esse sonho que motiva os jovens guatemaltecos do filme a atravessar o país, cruzar o México e chegar aos Estados Unidos. As caronas clandestinas nos trens repletos de conterrâneos dispostos a realizar o mesmo sonho são a parte mais fácil dessa odisseia latina.
Os jovens têm consciência dos perigos que enfrentarão. O pouco dinheiro vai costurado em bolsos secretos. Sara (Karen Martínez) sabe que no mundo machista nenhuma situação é tão difícil que não possa ser ainda pior para as mulheres. É necessário cortar o cabelo e amarrar os seios para se passar por homem.
O diretor Diego Quemada-Diez dá ênfase nas ações e opta por poucas falas. Os amigos conversam pouco. Não há o que falar, para quem falar ou para quê falar. Seguem todos calados em uma mistura de ansiedade, insegurança e medo. Uma série de sentimentos que fazem com que a viagem só seja viável graças à realidade deplorável que fica para trás.
No caminho os amigos encontram o personagem mais emblemático do filme. Chauk (Rodolfo Domínguez) é um índio que não fala espanhol e se junta ao grupo rumo a uma vida melhor, independente do que isso signifique. É o elemento que não se compreende pelas palavras.
Entre os amigos a fala é desnecessária. Todos têm os mesmos sentimentos e objetivos, qualquer palavra seria uma redundância. Em relação a Chauk, não é preciso a compreensão do idioma para que Sara expresse solidariedade e companheirismo. Também não precisam palavras para que Juan (Brandon López) deixe claro sua antipatia pelo índio.
Com o comportamento agravado pelo ciúme de Sara, Juan reproduz em outra escala a visão de xenofobia de muitos norte-americanos em relação aos latinos. Para um supremacista branco, pouco importa se o imigrante vem da periferia da Guatemala falando espanhol ou de uma tribo indígena falando uma língua igualmente incompreensível. A xenofobia que ambos enfrentarão é a mesma.
Já para um guarda de fronteira, a conhecida ‘la migra’, também pouco importam as nuances que diferenciam os indivíduos que abarrotam os trens rumo ao norte. O dever é barrar os imigrantes. Contrariados ou condescendentes, os guardas também formam uma massa homogênea, da mesma etnia da maioria dos imigrantes, e não poupam esforços para impedir a viagem. Do lixão de onde alguns imigrantes tiravam o sustento, disputando restos com os urubus, a diferença mais marcante é que os urubus ao menos podem sobrevoar a fiscalização e têm livre acesso aos territórios.
Aos humanos que conseguirem cruzar o México, resta entregar a vida aos coiotes, aos quais pouco importa qualquer individualidade por trás da massa de seres humanos que visam cruzar a fronteira. Imersos em um sistema cruel de baixa remuneração e poucas vagas de emprego, os coiotes encontram a forma ilegal e extremamente rentável de trabalho, cobrando por uma travessia sem qualquer garantia de sucesso.
O filme ilustra bem a presença de um funil entre a América Central e os Estados Unidos. Uma grande quantidade de imigrantes latinos seguem por um caminho repleto de filtros e provações rumo ao norte. Com barreiras - físicas e emocionais - cada vez mais complexas, uma quantidade ínfima comparada ao todo consegue ingressar no éden idealizado.
Toda a provação se converte em carne barata no mercado norte americano. O sistema excludente do capital garante que o bem estar social dos Estados Unidos, alcançado e sustentado pela exploração do trabalho estrangeiro, seja restrito aos habitantes do país.
Enquanto milhares de imigrantes visam uma ou outra exceção de latino bem sucedido no norte do continente, o roteiro mais comum segue sendo o da massa de pessoas indistintas, filtrada por guardas, por traficantes, por coiotes, todos como parte de um complexo sistema que perpetua a exploração em diversos níveis.
Olhando para toda a violência que envolve a migração notamos que além do estilo de vida americano, que serve de norte àqueles que se aventuram pelo continente, o papel de opressor seduz os que buscam uma vida melhor. Ainda que nivelados por baixo, qualquer mínima diferenciação por meio da violência costuma ser aceita em um universo voraz e agressivo.
Uma grossa camada de maquiagem, a roupa espalhafatosa e uma peruca engomada. Essa é a parte fácil para criar um palhaço, o problema é em quem colocar todos esses adereços.
Nos anos 1980 o desafio era ainda maior. Não bastava ser um palhaço, mas era necessário corresponder às expectativas da marca Bozo, que devido aos direitos autorais foi retratado no filme do diretor Daniel Rezende como Bingo.
Entre tantos atores que exerceram o papel, o filme retrata seu precursor e principal responsável pela consolidação do personagem, o ator Augusto Mendes, interpretado por Vladimir Brichta. Não é um documentário, mas mostra a ascensão do programa que chegou a liderar a audiência da TV durante as manhãs.
Diante da hegemônica Rede Globo, com a tradicional obsessão monárquica que criou a ‘rainha dos baixinhos’, a meta do maior investimento do SBT era bem mais modesta que a liderança.
Contrariando as expectativas, o fenômeno do palhaço norte-americano, adaptado à realidade brasileira, competiu pela liderança de igual para igual em uma época que a hegemonia da Globo era ainda maior do que hoje. A concorrência mais justa seria muito benéfica para a televisão brasileira, porém nem tudo foi positivo nessa atração infantil.
Com muito menos rigor em relação ao controle de conteúdo apresentado às crianças, as emissoras não poupavam esforços para garantir a audiência, apelando sem escrúpulos à sensualidade ou a qualquer outro recurso que garantisse alguns pontos a mais na disputa com outros canais.
Em pouco tempo ficou evidente que o palhaço era apenas uma peça do capital. Levado a acreditar que estava no controle, Augusto Mendes fez a parte mais difícil do trabalho, emplacando uma atração nova e desconhecida, cativando pequenos telespectadores e sendo responsável pela venda de incontáveis produtos que levavam a estampa do personagem que ele representou com maestria.
Dentro da lógica do lucro, Augusto foi substituído quando já não trazia apenas benefícios. Na guerra por audiência, o palhaço foi reduzido à maquiagem e roupa. Já não importava quem dava suporte aos adereços. Era mais lucrativo substituir uma engrenagem do sistema, que resultaria em números mais elevados aos patrocinadores, aos fabricantes de produtos com estampas do palhaço, ao caixa da emissora.
Levar um palhaço ao palco da televisão pode ter sido um sucesso televisivo e, consequentemente, econômico, mas a arte milenar de atuar como palhaço acaba desviada e até desvirtuada nas telas.
Enquanto nos circos o palhaço é um falso coadjuvante, que atua à margem das atrações e acaba roubando o brilho para si, o programa de televisão o colocava como protagonista, com todas as implicações de ser apresentado em rede nacional.
No picadeiro do circo o palhaço atrai as crianças para um evento lúdico, que já teve seu auge como principal entretenimento das cidades por onde a trupe passava. Na televisão a ideia é quase oposta.
Não há mais o programa familiar de sair de casa e acompanhar um espetáculo. O palhaço passa a cumprir seu papel evitando que as crianças saiam de casa e mantendo todas em frente ao televisor, com toda a comodidade e exposição ao marketing televisivo.
Com o tempo o próprio personagem passou a ser descartável. Não bastava substituir o ator por trás da máscara, mas o palhaço, explorado ao limite, estava desgastado. Seu custo era muito alto e não era viável manter o programa no ar.
Restrito ao ator Augusto Mendes e as ambiguidades trazidas pelo sucesso de seu principal personagem, o filme retrata as dificuldades pessoais somadas aos obstáculos existentes na carreira de um ator. Salvo exceções que conseguem consolidar uma carreira, a grande maioria precisa batalhar cotidianamente em busca de um papel com destaque suficiente para render um salário digno.
O que o tempo mostrou ao ator é que a realização de um sonho não corresponde ao que idealizamos. Entre toda a megalomania que cercava o palhaço, o aparente conforto acumulava problemas em uma bolha prestes a explodir.
Sendo ator, parece que o real desejo de Augusto Mendes, despido do fetichismo do sucesso, era o palco. Um local onde pudesse expressar sua arte de forma livre, real e intensa, sem a necessidade de um ponto no ouvido transmitindo ordens e sem a obrigação de interromper sua apresentação para fazer propaganda dos produtos que financiam o programa de televisão.
Engolir dezenas de cápsulas de cocaína para trafica-las pode ser o passaporte de muita gente para mudar de vida. Os obstáculos para isso são diversos e a desejada mudança nem sempre acaba sendo para melhor. A vida é posta em risco de tantas formas que a decisão de trabalhar como mula para o tráfico está sempre envolvida por medos e dúvidas.
O filme do diretor Joshua Marston mostra os bastidores de uma arriscada viagem para tráfico, desde o contexto de vida da protagonista Maria (Catalina Sandino Moreno) na periferia de Bogotá até as dificuldades constantes ao longo de todo o trabalho.
Com apenas dezessete anos, Maria já tem sua vida reduzida ao trabalho. Sem o pai, a adolescente é a principal responsável pelo sustento da irmã mais velha, que precisa cuidar do filho recém-nascido, e da mãe, que ajuda no orçamento mas de forma modesta.
Após passar o dia todo retirando espinhos de rosas em uma floricultura, sob ordens arrogantes de um superior que se utiliza do cargo para inflar o próprio ego, Maria ainda tenta simplesmente viver a própria vida de forma descontraída, com o namorado ou com amigas, em festas improvisadas nas ruas do subúrbio.
A maioria dos moradores locais aceita a vida desinteressante e quase predestinada. Um trabalho massificado, no qual todos exercem a mesma função, cumprem o mesmo horário, comem a mesma comida. Não há espaço para particularidades.
Maria usa a determinação, às vezes inconsequente, da adolescência para recusar as alternativas mais comuns. Entre permanecer explorada indefinidamente em um subemprego e entrar em um casamento fadado ao fracasso, ela opta pela terceira via. Uma única viagem a Nova York poderia render o equivalente a alguns anos de trabalho.
Não bastasse a vantagem econômica, o traficante local tem a sensatez que falta ao empregador formal da floricultura. Até que consiga recrutar mais uma mula, o que impera no trato com Maria é o respeito e a consideração. Regras básicas de educação, geralmente ausentes na relação de exploração do trabalho. O assédio moral faz parte da redução dos indivíduos a uma peça substituível na escala de produção.
A cortesia do traficante não se sustenta, pois o que difere o tráfico do mercado de trabalho formal é apenas a ilegalidade da mercadoria. A estrutura de exploração do trabalho está presente, com o agravante de não haver leis trabalhistas nem organização sindical que lute pelos direitos dos trabalhadores.
O que parece ser uma ótima remuneração, principalmente se comparada ao salário baixo da floricultura, envolve o risco de morte e a constante hipótese de prisão. Aceitar a proposta do tráfico só se torna viável quando a vida arriscada já não era sedutora o suficiente. Para Maria, recusar a viagem significaria aceitar o destino de exploração, que garante condições mínimas para sobreviver, mas nada além disso.
Tendo início na Colômbia, o outro extremo está nos Estados Unidos. Com a obsessão de construir muros para barrar a entrada de imigrantes e coibir o tráfico, os norte-americanos se recusam a admitir que os alicerces de qualquer muro é a desigualdade, mantida em boa parte pela exploração dos Estados Unidos aos países da América Latina.
Os imigrantes tidos como fonte de perigo visam trabalho, seja como mão-de-obra barata, mas remunerada em dólares que podem auxiliar a família no país de origem, seja como fornecedor para o imenso mercado consumidor de drogas.
A hipocrisia em relação ao consumo de cocaína não se restringe ao governo que dissemina o preconceito contra imigrantes. Muitos usuários da droga adotam o discurso de xenofobia enquanto aspiram carreiras de cocaína trazidas pelos imigrantes em pequenas cápsulas, ingeridas no exterior e defecadas em território americano.
Maria e todas as outras jovens e bonitas mulas, escolhidas justamente para que a beleza ajude a driblar a fiscalização, formam o resíduo do difundido American way of life. A sociedade aparentemente hedonista, que atinge a plena satisfação através do consumo, varre para baixo do tapete uma legião de imigrantes que se recusam a aceitar a exploração como destino de vida.
O grande mérito de Joshua Marston é abordar todo o caminho do tráfico, que não é romantizado, mas não chega a ser criminalizado sem uma base social que exponha suas raízes. A conta do tráfico não fecha com argumentos rasos e preconceituosos, por trás de quem arrisca a própria vida para transportar drogas existe uma grande estrutura, de produção, circulação, distribuição e consumo.
É impossível compreender a América Latina sem dar a devida atenção à religiosidade e à violência. Dois temas aparentemente contraditórios, mas que fundaram o alicerce do continente e seguem em uma alimentação mútua.
O diretor Barbet Schroeder não restringe essa síntese ao título de seu filme. Os assassinatos cometidos por fiéis, que buscam a benção por meio de terços, amuletos, orações e até mesmo ritos religiosos para abençoar o sucesso de um futuro assassinato são frequentes, expondo contradições sociais muitas vezes tão naturalizadas que sequer percebemos em nosso cotidiano.
A Medellín que sobreviveu às guerrilhas dos cartéis do narcotráfico pode estar, em média, mais segura que o caos da década de 1990, porém a desigualdade social segue gritante. Isso faz com que o problema da violência não seja sanado, mas restrito às periferias, de onde transborda e volta a atingir o centro. Uma triste realidade que se reproduz nas grandes cidades latinas.
As duas realidades isoladas pela diferença de classes se aproximam no filme pelo comportamento peculiar de Fernando (Germán Jaramillo). Um gramático que volta à Colômbia após viver na Espanha por trinta anos.
Tendo herdado uma fortuna suficiente para ter vida boa sem precisar trabalhar, Fernando representa o que pode ser a violência mais cruel e velada dos países latino americanos. A concentração de renda é hereditária e crescente. Ainda que sem trabalhar e vivendo de renda, Fernando tem um discurso elitista, que atribui a culpa dos problemas sociais aos pobres.
Não é um personagem tão simples, pois apesar do discurso reacionário, que chega a falar em extermínio dos pobres, Fernando se aproxima de Alexis (Anderson Ballesteros), que representa seu oposto. Mais jovem e muito mais pobre, é provável que além do relacionamento que surge do sexo descompromissado, o único sentimento compartilhado por ambos é a homofobia explícita nas ruas.
Após alguns chavões presentes em relacionamentos com grande diferença de idade, o que começa a ganhar evidência é a forma distinta como os dois personagens enxergam o mundo devido à classe social de origem.
O gramático, a princípio preso aos valores tradicionais e defensor da palavra, ainda que utilizada de forma ofensiva, versus o jovem matador de aluguel, crescido em meio ao salve-se quem puder da mais violenta periferia, onde os constantes cadáveres que amanhecem ao relento banalizam a vida, que pode ser encerrada graças a uma discussão pelo volume do rádio.
Esses universos aparentemente distintos e inconciliáveis vêm sendo fomentados ao longo dos cinco séculos da América Latina. O individualismo crônico costuma impedir que se reconheça no outro um igual. Existe uma falsa superioridade, pelo status ou pela força, que faz com que muitos acreditem no direito de excluir seu semelhante, ao invés de pequenas adaptações pelo bem comum.
A noção de bem ou espaço público nunca foi desenvolvida pelos colonizadores espanhóis e portugueses. Em seu lugar foi estimulado o individualismo extremo, que degrada o espaço público e reduz as relações sociais à competitividade de quem precisa excluir o próximo para não ser excluído.
Nessa estrutura distorcida de sociedade a violência se desenvolve em suas mais diversas formas, desde os assassinatos em plena luz do dia até as formas mais simbólicas, mas igualmente prejudiciais, como a corrupção, a concentração de renda ou os discursos higienistas de Fernando.
Ilustrada com os exemplos do filme, vemos que a violência é uma epidemia e as pessoas não se dão conta de que foram contaminadas. A princípio Fernando fica chocado com a banalidade com que Alexis comete um assassinato, mas em pouco tempo a sensação de poder sobre a vida e a ideia egoísta de que é preciso matar para não ser morto, atenua a reação de perplexidade do personagem.
Esse sentimento anestesiado diante de atitudes inaceitáveis de violência – física ou simbólica – ultrapassa os limites do cinema. Estamos tão habituados que sequer nos damos conta do quanto apoiamos um regime insanamente autoritário ao clamar por mais armas e tratamento desumano àqueles que, a exemplo de Alexis, aderem ao cotidiano criminal no qual cresceram.
Ao mesmo tempo somos complacentes com violências expressas de formas indiretas. Herdeiros como Fernando são admirados, mesmo sem que exista um real motivo de admiração.
Uma crítica pertinente, que fica por conta da conclusão que cada um tira da história do filme, está na consequência de armas distribuídas livremente, ainda que ilegalmente, pela sociedade. Acreditar que mais gente armada reduziria os assassinatos de Medellín, ou de qualquer outra cidade, é no mínimo inocente.
É um fato quase predestinado. Despertamos dos sonhos da adolescência, embalados pela rebeldia característica, e entramos na fase adulta nos aproximando cada vez mais dos valores e hábitos herdados dos pais.
As mudanças sociais ocorrem lentamente e ficam mais evidentes quando observadas sob a luz da história. Assim como a protagonista Rosa (Maria Ribeiro), quando temos o protagonismo dos fatos, dificilmente notamos a repetição de comportamentos que criticamos.
Dessa forma, aos poucos a diretora Laís Bodanzky nos guia pelas contradições entre a ideologia e o pragmatismo dos personagens, que vislumbram um futuro melhor, mas na prática ainda são os mesmos, a reproduzirem padrões sociais injustos, desde que se beneficiem disso.
Entre todas as nuances de comportamento reproduzido, o que mais se destaca é o machismo, presente inclusive entre as mulheres da história. A relação de Rosa com a mãe, Clarice (Clarisse Abujamra), tem fatores bem agravantes que influenciam na tensão entre as duas, mas o machismo de Clarice fica evidente não somente quando ela privilegia o filho, que poderia ser encarado como uma predileção materna por um dos filhos, mas quando dá mais atenção ao genro que a Rosa.
A filha é preterida em relação a Dado, interpretado por Paulo Vilhena. O ator, cuja carreira é marcada por atitudes boçais que vão desde confusões com elenco até cuspir em um jornalista, parece dar a própria vida ao personagem, já que Dado também cultiva uma boa imagem para ocultar atitudes reprováveis. Ambos, ator e personagem, contam com a proteção de um status que não se sustenta com um olhar mais atento.
Um personagem que a princípio parece estar acima dos comportamentos reprováveis é o pai de Rosa. Homero (Jorge Mautner) tem um lado divertido, remetendo a um hippie descompromissado que passou a vida negando valores enraizados na sociedade em que vive. Entretanto, por trás de suas filosofias de boteco, a forma encontrada para se manter em uma sociedade capitalista sem vender sua força de trabalho, é se fazer de vítima para conseguir viver às custas das mulheres que caírem em sua lábia.
Rosa parece ser o ponto de apoio para os comportamentos abusivos e injustos dos demais personagens. Não é por acaso que ela lida com uma culpa imensa, da qual tenta se libertar de várias formas ao longo do filme e só consegue por um curto período, quando está distante de todos, sozinha em um quarto de hotel.
A culpa é ferramenta essencial da exploração. As relações de dominação do filme não ocorrem por meio da força ou superioridade hierárquica, elas se afirmam com sutileza, envolvendo a personagem e criando uma aparente dependência. Para quem assiste é mais fácil de perceber, mas para Rosa as situações vividas parecem inevitáveis e ela não enxerga uma saída.
O marido ganha destaque nas culpas incutidas na personagem. Em casa ele fica com a parte mais fácil da criação das duas filhas, enquanto deixa a aplicação de deveres por conta da mãe. É ela quem acaba abrindo mão da carreira para cuidar das filhas, da casa, do próprio marido, podendo reivindicar livremente seus direitos, pois as reivindicações sequer serão consideradas.
É evidente que um casal nessas condições entrará em crise. Rosa não tolera as injustiças que vive, mas acaba suprimindo as reações, absorvendo as culpas que Dado joga em seu colo e se transformando em uma panela de pressão prestes a explodir.
Em determinado momento a protagonista afirma ser “pura fachada”, sem se dar conta de que os demais personagens merecem esse rótulo de forma muito mais contundente. Eles têm consciência de qual seria o comportamento ideal, mas se recusam a abrir mão de facilidades trazidas pela exploração.
Dessa forma, mesmo que alguns comportamentos não combinem com aquilo que os personagens defendem através da ideologia, eles não demonstram disposição para a mudança de atitudes. Não há uma reação radical diante de situações de tensão, existem reações suaves, quase imperceptíveis, de quem quer mudança sem alterar a estrutura do problema.
As pequenas explorações cotidianas, que vão crescendo e acumulando ao longo do tempo, conforme o filme nos mostra, podem ser solucionadas com o equilíbrio. Rosa oferece facilidades para as pessoas próximas, mas não recebe nada em troca. É um desequilíbrio claramente injusto, que pode ser corrigido com algumas mudanças de comportamento.
Uma vida inteira dedicada a fazer algo prazeroso. Esse poderia ser o resumo do que pensamos sobre uma vida útil. O problema é que nem sempre uma vida plena e satisfatória se encaixa com uma atividade útil do ponto de vista econômico.
O diretor Federico Veiroj constrói este longa quase como uma metalinguagem, mostrando que a qualidade pode estar completamente separada da viabilidade econômica.
A estética em preto e branco ajuda a dar um tom anacrônico para a vida do protagonista Jorge (Jorge Jellinek) que na contramão da tendência de grandes salas de cinema dentro dos shoppings, visando o entretenimento a custos exorbitantes, trabalha integralmente na cinemateca de Montevidéu.
Um grande complexo de salas de cinema opta por exibir os chamados blockbusters de Hollywood, cobrando ingressos caros e gerando renda com tudo o que é vendido nas lanchonetes do cinema – que não é pouco. Já uma cinemateca é oposta em todos os sentidos.
O entretenimento é apenas uma das funções do cinema, que tem grande relevância, mas restringir todo o potencial dos filmes a um entretenimento vinculado ao consumismo dos shoppings é desperdiçar talento e qualidade, que os filmes alternativos costumam esbanjar em produções pequenas e pouco divulgadas.
Já no início do filme Jorge fala, no programa de rádio, que “você precisa da cinemateca e a cinemateca precisa de você”. É evidente que uma cinemateca precisa de público, tanto por não fazer sentido uma exibição de filme sem pessoas para assistir quanto pela necessidade da renda.
O caminho inverso não é tão explícito. Qual a necessidade de uma cinemateca? Se considerarmos a fábula do livre mercado podemos imaginar que as antigas salas de cinema de rua, com filmes alternativos e preços mais baixos, morreram naturalmente por não serem capazes de concorrer em qualidade e preço com as grandes redes de cinema.
Porém o público de cinema exige uma formação. É neste ponto que uma cinemateca é fundamental, pois essa formação sempre existe, mas em geral é feita pela televisão, voltada aos filmes de Hollywood, que têm valor, mas não são os únicos a expressarem o potencial do cinema.
A exibição de filmes temáticos, em ciclos que reúnem obras com pontos de vista distintos, tem o potencial de atrair o público que visa o conteúdo histórico e didático, dificilmente explorado fora do ambiente de uma cinemateca.
Essas exibições dependem de outra função importante, a preservação de obras com valor histórico incomparável ao valor econômico. Os filmes ditos ‘de arte’, ainda que todo filme seja uma expressão artística, não tem a intenção de encerrar a vida útil após o fim das exibições em salas comerciais.
Um blockbuster pode gerar quantias imensas de dinheiro em poucos dias, com lançamento em milhares de salas que logo permitirão a cobertura de todo dinheiro investido, muitas vezes gerando lucros exorbitantes aos estúdios que o produziram. Já os filmes alternativos costumam ter dificuldades até mesmo para cobrir o reduzido orçamento de produção.
Não há saída para as dificuldades econômicas das produções alternativas além do fomento que é contrário às leis de mercado. O interesse cultural contido em uma cinemateca ultrapassa o lucro econômico e a ausência de verba destinada a uma instituição que preserva a cultura indica um descaso com a formação cultural da população.
A vida do protagonista Jorge se encaixa perfeitamente na realidade da cinemateca onde trabalha. Dedicado e sem grandes pretensões econômicas, Jorge sobrevive e faz o local sobreviver.
Mesmo o programa de rádio que ele coordena acaba seguindo os preceitos do circuito de cinema alternativo. O conteúdo apresentado é bom, com grande valor intelectual, mas não é dinâmico e tem pouca atratividade para aqueles que não estejam profundamente interessados no tema apresentado.
Jorge e a cinemateca parecem ter suas existências vinculadas. Excluindo a visão romântica de alguém que dedica toda a vida para uma causa, essa relação de dependência é ruim para ambos.
A cinemateca é uma instituição que deve ser perene, ultrapassando a existência daqueles que se dedicam para mantê-la. Já no caso de Jorge, o fim da cinemateca significa a rendição de sua própria vida às normas de mercado, com uma produção em massa que chegue à circulação e encerre o ciclo após o consumo. Qualquer particularidade que fuja dessa lógica parece não ter espaço e tende a ser sufocada.
Um solo rico em pedras ou metais preciosos tem uma incrível capacidade de empobrecer a população local. Útil pela beleza que adorna os corpos da elite econômica, as pedras costumam deixar um rastro de sangue por onde são extraídas.
Essa é a base o filme do diretor Marcelo Galvão. Em uma pequena cidade pernambucana, na primeira metade do século 20, é a deslumbrante Turmalina Paraíba que move o ciclo de riqueza e desgraça.
O protagonista Cabeleira (Diogo Morgado) foi criado longe da sociedade, cresceu sozinho e difere muito pouco de um animal selvagem. Por um lado, como qualquer animal, não entende que valor pode ter uma pedra que não mata a fome nem a sede. Por outro, em pouco tempo aprendeu que as pessoas fazem qualquer coisa pela tal pedra.
As pedras lapidadas e com preços exorbitantes não aparecem no filme, mas é simbólico que o matador local, que criou Cabeleira, seja conhecido como Sete Orelhas (Deto Montenegro), uma referência ao mórbido colar feito com as orelhas de sete de suas vítimas. Ao que parece, o valor simbólico do ornamento está ligado às tradições locais. As orelhas do matador podem representar uma crueldade tão grande quanto as pedras garimpadas.
Com poucas adaptações o enredo do filme pode ilustrar diversas épocas da história do Brasil. Com ciclos de extração de ouro e território rico em pedras preciosas, nenhum território explorado reflete a riqueza que o solo abrigava. O material bruto sempre foi extraído com o suor de pequenos exércitos de trabalhadores, enriquecendo uma pequena quantidade de europeus.
No filme, o personagem que enriquece é o francês Monsieur Blanchard (Etienne Chicot). Mais um europeu que fugiu do velho mundo e aproveitou dois fatores que seguem assombrando o desenvolvimento nacional.
Um deles é a reverência à hegemonia cultural. Tudo o que vem da Europa, posteriormente dos Estados Unidos, é visto por muitos como sendo naturalmente superior e melhor. Assim os cangaceiros do filme, temidos e respeitados pela população local, baixam a cabeça resignados diante do francês, que não tem nada além de prestígio.
Outro fator é a herança escravagista. Hoje, um século após a história do filme, as diferenças geradas pela escravidão ainda parecem marcadas à ferro quente na história do país. No desenrolar do filme a escravidão já havia sido legalmente abolida, mas na prática o Estado não tomava nenhuma medida contra aqueles que, a exemplo de Blanchard, mantinham trabalhadores em regime de escravidão.
É muito cômodo olharmos para as questões retratadas no filme e imaginarmos uma subserviência consciente dos personagens, que poderiam tomar alguma atitude contra o francês e mudar o destino de exploração e maus tratos. Porém a ideia de continuidade é desenvolvida ao longo do filme.
Ter consciência sobre a cadeia produtiva de uma pedra preciosa, desde sua extração até o comércio de uma joia, nos dá grande vantagem em relação aos explorados que só sabem que as pedras são importantes, por algum motivo que eles desconhecem.
Cabeleira tem um comportamento extremo de quem não possui nenhum freio moral para obter o que deseja. Para ele isso se resume em matar pessoas a mando de Monsieur Blanchard em troca de pedras, que serão trocadas por sexo. Exigir que ele tenha uma noção mais ampla do mundo que o cerca é de uma utopia infantil.
A falta de socialização, que é gritante em toda a vida do protagonista, se expressa em níveis distintos nos outros personagens. Considerar uma pedra de Turmalina Paraíba mais valiosa que a vida de uma pessoa é uma barbárie, porém só possuímos essa noção graças a valores distintos da realidade do filme que recebemos ao longo da vida.
Para a população local, um assassinato em plena luz do dia é fato corriqueiro, sobretudo a mando do francês ou por parte de algum matador renomado. Foi passado através de várias gerações que as ordens eram dadas pelos europeus e obedecidas pelos cidadãos locais.
Essas leis informais foram vigentes no sertão da Turmalina Paraíba, nas Minas Gerais do ciclo do ouro, na Serra Pelada recente e selvagem. Estendendo o raciocínio para outras cadeias produtivas informais e predatórias, veremos que a exploração de recursos naturais raramente é feita de forma responsável. O ganho de poucos é marcado pela exploração humana e devastação ambiental.
O deserto do Atacama, no Chile, é um dos lugares mais inóspitos da Terra. O clima extremamente seco, quente e o ar rarefeito pela altitude de três mil metros faz com que a presença humana seja restrita. Mas faz com que os traços deixados pelos poucos visitantes sejam preservados.
Essa é a base para o filme do diretor Patricio Guzmán. Nada linear e repleto de metáforas, a nostalgia da luz é uma referência à busca pelo passado, que pode ocorrer de várias formas no deserto.
Distante das luzes da cidade, o Atacama é um local propício para astrônomos observarem as estrelas e estudarem a formação do universo. Ao falar do passado esses cientistas pensam em bilhões de anos. Buscam indícios de vida em planetas cuja distância foge de nossa percepção.
No mesmo deserto, arqueólogos e antropólogos também buscam indícios do passado. Pinturas rupestres de mais de mil anos indicam a presença humana, bem antes de o império Inca dominar a região. Analisando detalhes dos vestígios eles conseguem tirar conclusões diversas sobre a vida daqueles que descobriram a América bem antes dos europeus.
Em meio à tecnologia e aos estudiosos, algumas senhoras percorrem o deserto. Vasculham a imensidão de areia sem equipamentos específicos ou indícios concretos de onde está o que procuram. Um trabalho de formiguinhas percorrendo a areia que parece não ter fim.
Essas senhoras também buscam reconstruir o passado através de resquícios conservados pelo deserto. Um passado bem mais recente. Apenas quatro décadas, comparadas ao milênio das pinturas rupestres ou dos bilhões de anos dos astrônomos. Porém um passado que nunca deveria ter existido.
Todas elas buscam por restos mortais de pessoas próximas. Irmãos, pais, amigos, companheiros, perseguidos e mortos pela ditadura militar de Augusto Pinochet.
O isolamento do deserto, que já contava com instalações construídas para a mineração, foi ideal para o regime que segregava uma parcela da população. Aqueles que eram contrários ao regime eram transferidos para verdadeiros campos de concentração.
O Atacama, com seu solo rico em minérios, também esconde um passado pobre em orgulho. Um passado que as únicas que parecem ter real interesse em resgatar são essas mulheres. As que se recusam a aceitar um atestado de óbito presumido ou um fragmento de osso do ente querido.
No país em que múmias milenares, conservadas pela aridez, são guardadas em museus e exibidas com orgulho para visitantes, que buscam origens remotas de nossa civilização, cadáveres recentes seguem ocultos, para que não fique evidente nossa barbárie.
Há quem considere um interesse muito particular, restrito aos familiares das vítimas, portanto um esforço estatal para recuperar essa memória não se justifica. Porém é dever do Estado zelar pelos cidadãos, sobretudo quando é preciso remediar uma situação causada pelo próprio Estado, ainda que em outra época, sob outro regime.
Olhar para esses fragmentos do passado e, a partir deles, reconstruir a história diz muito sobre nosso momento atual. Podemos pensar em reconstruir a origem da vida olhando para o cosmos, ou a origem da ocupação humana no continente através das pinturas rupestres, e ambos têm grande relevância histórica.
Entretanto muitos problemas que enfrentamos hoje têm raízes bem mais recentes. O que foi ocultado no Atacama é mais que cadáveres de militantes políticos, assim como a recusa de uma busca minuciosa e de uma investigação que encontre os responsáveis pelos corpos vai além do interesse dos familiares das vítimas.
A redemocratização dos países latino-americanos que sofreram com a ditadura não sepultou as causas do totalitarismo. Os conflitos de interesse entre setores da sociedade não foram superados, mas ocultados.
Jogadas para baixo do tapete, assim como os corpos das vítimas, as divergências sociais deixaram rastros que frequentemente são desenterrados. São fragmentos que nos assombram por guardar o terror de um passado muito recente.
É compreensível o constrangimento da sociedade diante de fatos tão aterrorizantes em um local tão rico em história, com potencial científico, econômico, turístico e tantas qualidades nobres. O que vale ressaltar é que sepultar os mortos e viver o luto é uma etapa fundamental para o difícil processo de uma perda.
Da mesma forma, assumir os erros, compreender as falhas e cumprir com as devidas obrigações em relação aos familiares das vítimas é um passo fundamental para que as barbáries não sejam repetidas.
Segundo o dito popular, ‘quem conta um conto, aumenta um ponto’. Na verdade quem conta uma história, dá sua própria versão aos fatos. Uma versão inevitavelmente parcial, restrita e sujeita à memória, que pode incluir ou excluir detalhes – os tais ‘pontos’ referidos no ditado.
É assim que acompanhamos a história narrada pelo protagonista Tony Terranova (Johnny Massaro), desde a infância até a juventude. Tony relembra a própria vida na tentativa de entender um pouco de sua relação com o pai.
O francês Nicolas (Vincent Cassel) fora o herói de Tony, o pai exemplar, aquele que marcou a infância do personagem, ensinou a andar de bicicleta, transmitiu o gosto por motocicletas e ensinou a língua francesa, que posteriormente garantiria o emprego do protagonista como professor. Tudo perfeito, até que Nicolas voltou subitamente para a França e nunca mais deu notícias.
Se por um lado abandonar a família sem dar satisfações é uma atitude covarde e reprovável, as obsessões que vinculam uma pessoa à vida de outra também são questionáveis. Não que Tony deveria seguir sua vida como se nada tivesse acontecido, o problema é que condicionar a própria felicidade à presença de outra pessoa exige ignorar uma série de relações complexas – por isso a versão que Tony dá à própria história é parcial e restrita.
Selton Mello tem influência dupla na história. Além de diretor, que opta por como a história será exibida, também vive o personagem Paco. Amigo de Nicolas e sempre próximo a sua família, Paco aconselha Tony a seguir em frente e não contar com o retorno do pai, pois se houvesse alguma preocupação por parte do francês, ele mandaria ao menos uma carta.
Até então a não há dúvidas quando ao conselho de Paco. O único indício de parcialidade viria pelo interesse do personagem na mãe de Tony, porém nada mais racional do que estimular o envolvimento do protagonista com Luna (Bruna Linzmeyer) para que a vida seguisse o curso esperado. Formar a própria família provavelmente faria com que Tony superasse a ausência paterna.
O que Tony não tem como saber, por falta de indícios, e não tem como suspeitar, por falta de experiência, é que as respostas para suas dúvidas podem estar muito mais próximas. Não precisa cruzar o Atlântico até a França. Talvez seja suficiente pegar um ônibus até a fronteira.
É uma metáfora interessante. Talvez a fronteira seja mais que o limite entre dois países. Tony pode ter que cruzar a fronteira do ‘eu’ para perceber que cada indivíduo tece diversas relações ao longo da vida. Por mais condenável que seja a atitude de Nicolas, é inegável que muitas vezes as atitudes individuais geram conflitos de interesses difíceis, por vezes impossíveis, de conciliar.
De fato, como o título indica, trata-se do filme da vida do protagonista, entretanto a questão principal seria abordada de forma distinta se fosse narrada por qualquer outro personagem, envolvido na trama e influenciando diretamente na vida de Tony.
É curioso que o protagonista do filme é antagonista de uma história complexa, por envolver uma série de personagens, cada um com seus próprios interesses, com seus conflitos interiores e exteriores, com sua vida que esbarra em outras pessoas de forma inusitada e geralmente desagradável.
Ainda que o filme seja da vida de Tony, muito do que é apresentado se estende para muitas outras vidas, daqueles que assistem ao filme. Um exemplo é a maturidade que seria esperada de Nicolas. O personagem está em uma fase da vida em que não é tolerável escolher um caminho desconsiderando os impactos que serão causados por essa escolha.
Mesmo que atitudes irresponsáveis sejam tomadas, afinal todos tomam atitudes irresponsáveis ao longo da vida, as consequências devem ser tratadas de forma responsável. Fugir ou distorcer os fatos, que por si já são bastante complexos, não traz resultados muito promissores.
Por fim, o que fica claro no filme é que por mais que o caráter individual da vida pese em nossas decisões, o mundo não gira ao redor de indivíduos. É difícil ver uma pessoa em quem depositávamos tantas esperanças nos decepcionar, mas invertendo as peças, é frustrante saber que eventualmente alguém deposite em nós esperanças que não temos a menor pretensão de corresponder. A equação de interesses nem sempre é equilibrável.
O protagonista Tomás (Luis Carlos Guevara) é um jovem negro, que vive em uma favela de Bogotá. Poderia ser do Rio, de São Paulo ou de qualquer outra grande cidade da América Latina. É um ícone que relega o discurso da meritocracia à teoria. Na prática as condições de vida são bem mais restritivas do que o esforço individual tem capacidade de mudar.
A opção, geralmente considerada como de uma vida digna, é trabalhada pelo diretor Juan Andrés Arango Garcia. O jovem protagonista prefere recusar o trabalho de vigia. Não se trata de uma rebeldia ou atitude deliberada de fugir do mercado de trabalho formal. Tomás simplesmente se recusa a ser mais um puxa-saco, igual ao padrasto.
Com uma relação familiar sempre tensa, Tomás é testemunha constante das agressões sofridas por sua mãe, o que faz com que a repulsa pelo padrasto cresça a cada dia. Se um emprego formal que garanta um salário baixo, insuficiente para as necessidades mais básicas, já não é muito atraente, tendo como exemplo uma pessoa que o adolescente repudia torna tudo ainda mais difícil.
Um problema inevitável ao retratar a vida nas favelas de grandes cidades é o envolvimento com drogas. Tomás não se envolve diretamente com o consumo ou tráfico, mas seu irmão mais novo, Jairo (Andrés Murillo), precisa fugir dos traficantes. O menino pegou drogas para vender em consignação e consumiu tudo sem pagar. No tráfico não há negociação. Essa atitude é punida com a morte.
Com menos de vinte anos Tomás já parece carregar o mundo nos ombros. Saiu de casa devido às divergências com o padrasto, procura pelo irmão desaparecido para tentar ajuda-lo e precisa encontrar alguma forma de se sustentar. Se o esforço pessoal fosse de alguma serventia, o jovem teria que ser generosamente recompensado.
O caminho que acabou seguindo, menos por opção e mais pela conjuntura, foi apresentado por Chaco (Jamés Solís), um amigo que pensava em sair do país. Na situação em que estava, parecia que nada poderia piorar. A Colômbia – ou como já mencionado, outros países vizinhos – não oferece nenhum atrativo para jovens negros da periferia.
Na tentativa de conseguir dinheiro, Tomás começa a trabalhar cortando cabelo, também por indicação de Chaco. Não é um grande emprego e provavelmente rende menos do que o trabalho recusado como vigia, porém a diferença fundamental é que agora o protagonista se sente muito mais integrado ao trabalho que realiza.
Não é um salão de beleza onde ele mal conhece o proprietário, mas um local especializado nos cortes artísticos, presentes nas cabeças dos jovens, que ostentam cortes desenhados com esmero como uma identidade social. Ali, mesmo que a remuneração seja baixa, existe a identificação com o local e com os clientes.
Os cortes de cabelo que fogem do padrão acabam marginalizados, entretanto é uma afirmação pessoal. Assim como a recusa de Tomás de trabalhar como vigia, os jovens também se recusam em adotar um visual padronizado e imposto pela sociedade, que seguirá marginalizando os moradores das periferias.
A segregação fica evidente em uma tentativa de visita a um shopping. De errado os personagens não fizeram nada além de tentar visitar um local que não é destinado a eles. Tiveram que acatar ao pedido feito por um jovem negro, igual a eles, que não recusou o trabalho de vigia, a exemplo de Tomás.
Cercando as alternativas do personagem, o diretor mostra como a vida de Tomás é intrinsecamente limitada. Não basta o esforço de ficar livre das drogas ou de arrumar um emprego no qual se sinta confortável. A realidade que cerca os personagens obriga que todos tenham uma força muito grande por uma recompensa quase restrita à sobrevivência.
Tomás, seu irmão, seus amigos, todos nasceram e cresceram em um local onde a violência é internalizada desde a infância. Os meninos brincam de atirar com armas de brinquedo ou mesmo imaginárias, até conseguirem uma arma real. A polícia está presente para matar, os traficantes são os exemplos práticos de conduta violenta. As mulheres, mães, irmãs, namoradas, rezam pelos mortos em uma realidade quase paralela, onde existe céu, paraíso, deus.
Dessa forma os moradores da favela de Bogotá seguem seu destino quase predefinido. As escolhas se restringem ao subemprego, ao tráfico, à exploração. A crítica da classe média insiste em falar na meritocracia, rasa e insuficiente para um problema social tão profundo.
Uma mulher jovem e bonita, casada há dez anos e que tem como principal atividade cuidar da casa e do marido. Durante séculos a sociedade martela esse mantra como meta de vida feminina. É o caso da protagonista Karen (Angela Carrizosa), que tem como efeito colateral desta vida limitada se sentir feia e velha, tendo aparentemente passado pouco dos trinta anos.
O diretor Gabriel Rojas Vera não dá muitos detalhes sobre a vida de casada de Karen. Não precisa. O roteiro está ao alcance de qualquer um, recheado de exemplos reais de mulheres que se casaram jovens e abriram mão de uma vida profissional, não fizeram muitas amigas, amigos nem pensar, e se dedicaram para o matrimônio.
Um belo dia todo o acúmulo de mágoas vem à tona. Não é que Karen não está mais feliz depois de uma década de casada. Na verdade a felicidade não passou de um breve conto de fadas, substituído por um marido que, mesmo não conhecendo o termo, pratica o chamado “gaslighting”, um abuso psicológico.
Uma característica bastante comum nos relacionamentos como o de Karen é que os esforços para agradar o marido não são reconhecidos, mas retribuídos com críticas e humilhações. Com uma vida reclusa e sem referências que auxiliem a personagem a perceber os abusos, ela acaba se convencendo de que não sabe fazer nada direito, é feia, inútil e passa a se sentir grata ao homem que ainda a quer.
Quando ela finalmente decide pedir o divórcio passa a sentir os efeitos de uma vida dedicada a outra pessoa. Com pouco dinheiro e sem experiência profissional, Karen precisa entrar em um mercado de trabalho predatório, repleto de contradições, como exigir experiência e juventude em níveis incompatíveis com a maioria das pessoas.
É incômodo ver a personagem alugar um cortiço e batalhar para reerguer a vida, enquanto o ex-marido veste o terno e vai para o escritório. Seria compreensível que em uma situação tão adversa Karen voltasse para casa. Seria cômodo, se isso acontecesse, julgar sua atitude e insinuar que ela voltou para a exploração do marido por que quis.
No cortiço a protagonista faz amizade com Patricia (María Angélica Sánchez), um tipo de antítese da vida que Karen sempre teve. Ainda que com o estilo de vida bastante distinto, Patricia também expõe a exploração feminina por parte dos homens.
Com um discurso forte de quem já foi enganada por vários homens e não quer repetir os mesmos erros, Patricia não demora a demonstrar fragilidades e carências presentes em qualquer pessoa.
Consciente dos problemas latentes em relacionamentos com homens casados, agressivos ou parceiros eventuais, o problema de Patricia não está em sofrer uma desilusão. Isso está no caminho de qualquer pessoa. Porém o machismo faz com que seus parceiros possam voltar para a esposa, ameaçá-la e fazer com que sua situação sempre seja mais dolorida.
Karen estranha a vida tão diferente da nova amiga, mas não demora para que a sororidade, a compreensão feminina diante da exploração, tome o lugar do estranhamento e passe a haver uma troca entre as personagens. Uma possível censura dá lugar à união entre mulheres que sabem da importância de uma mão amiga nas horas difíceis, por vezes perigosas.
Karen chora no ônibus. Não é somente no título. A personagem de fato inicia o filme em lágrimas e é bastante simbólico que isso aconteça em um coletivo. Ela já não tem como segurar o choro reprimido ao longo de dez anos. Não importa se está cercada por desconhecidos, até porque já nem tem um quarto particular. No filme colombiano cabe o verso da canção brasileira ‘lágrimas por ninguém, só porque é triste o fim’.
O ônibus simboliza uma viagem. Não se trata de subir em um ponto e descer no outro, mas uma viagem sem volta, que abandona uma vida de submissão e falta de reconhecimento para desembarcar em um futuro tão incerto quanto promissor.
Como qualquer viagem a um lugar desconhecido, esse ônibus metafórico passa por caminhos difíceis, em que a opção pelo embarque é questionada, mas a sensação de chegar a um lugar muito melhor do que aquele que ficou para trás é valorosa. Uma pena que nem todo mundo consegue fazer esse tipo de viagem.
A paisagem inóspita de neve permanente da Patagônia parece ser o retrato das relações familiares dos irmãos Marcos (Leonardo Sbaraglia) e Salvador (Ricardo Darín). Dois desconhecidos, cujo laço de sangue só proporciona uma aproximação forçada e indesejada.
Marcos só quer convencer o irmão a vender as terras da família. Com uma proposta irresistível de uma mineradora e a necessidade de dinheiro para cuidar da saúde da irmã, a venda parece o melhor caminho. Ao menos até conhecermos a história que marca a vida da família.
O diretor Martin Hodara trabalha o suspense da história e joga com as informações para guiar os espectadores a favor ou contra determinado personagem. O conceito de mocinho e bandido está longe de ser suficiente para compreender a trama que ronda aquelas terras distantes.
O ponto central é Juan, uma espécie de protagonista inexistente, pois é o irmão morto ainda criança por um tiro, consensualmente acidental, oculto pela versão oficial de ter sido soterrado por uma avalanche.
Apesar da vida naquelas terras cobertas de neve ser dura, depender da caça e não oferecer conforto é ali que Salvador se sente em casa. Existe o vínculo afetivo, a proximidade com as origens e o hábito de se manter longe da sociedade, alimentando teorias sobre a tragédia familiar acerca de Juan.
É bem comum propriedades familiares gerarem divergências quanto à partilha da herança. Nesse caso ainda tem o forte laço com o passado que pesa na decisão dos envolvidos. Para complicar ainda mais a trama, não é possível dividir as terras e vender somente a parte de Marcos. Para a mineradora, só o terreno completo é negociável.
Com exceção das particularidades trágicas da família do filme, a história é um plano de fundo interessante para pensar os conflitos familiares por conta da partilha de bens. Não há uma fórmula exata para lidar com os conflitos de interesse e é natural que cada uma das partes envolvidas defenda seu ponto de vista.
Os membros da família seguem vidas distintas e o futuro da propriedade pode causar conflitos, como a recusa de Salvador em vender as terras, independente do valor oferecido, e o desejo de Marcos de utilizar o dinheiro para facilitar sua vida na Espanha. Não dá para dizer que um está certo e o outro errado, ao menos do ponto de vista material.
O apego sentimental à propriedade deixada pelos pais pode variar entre os irmãos e o interesse em vender um bem material para que o dinheiro seja utilizado de forma mais prática não indica algo ruim. Não é o apego de Salvador à terra que nos permite afirmar sua maior ligação afetiva com os valores familiares. De uma maneira própria Salvador pode ser mais egoísta que Marcos em sua decisão.
Um ponto que não chega a ser central na trama, mas mesmo com leve indicativo merece destaque é uma mineradora estrangeira reduzindo todas as tensões e questões familiares enraizadas no local à cifra milionária oferecida aos proprietários.
A pretensa lei do livre mercado inclui um fator extra nos conflitos familiares, que acaba reduzindo tudo a uma cifra. A propriedade familiar, que muitas vezes chega a ser defendida como o fator que une a família em torno de um bem comum, acaba se tornando o retrato da divergência.
Não que as empresas que façam a oferta de compra tenham alguma responsabilidade direta pelas divergências familiares, mas a impessoalidade com que a transação comercial é dirigida acaba acirrando conflitos de forma desnecessária e reduzindo os fatores envolvidos no problema a uma quantia em dinheiro.
Para usar o exemplo do filme, caso não houvesse a proposta pelas terras da família, Marcos e Salvador não fariam as pazes para poder seguir a vida independente dos problemas que marcam o passado de cada um. Entretanto também não forçariam um encontro que inevitavelmente resulta em provocações e mágoas afloradas.
O rancor acumulado ao longo dos anos, se confrontado, deve ser de forma consciente e bem estruturada. Bater de frente com as mágoas e resolver tudo da forma mais rápida e prática – colocando os lucros que cada um terá com a venda de uma propriedade, por exemplo – só faz com que as chances de uma reconciliação sejam ainda mais reduzidas, geralmente até impossíveis.
Gatos velhos têm o estigma de serem teimosos, cheios de manias e ranzinzas. Não chega a ser mentira, mas por outro lado também são fiéis ao que viveram, apegados a casa e aos donos, ainda que o apego às pessoas não seja incondicional, mas expresso de forma peculiar.
Neste longa dos diretores Pedro Peirano e Sebastián Silva os dois gatos não chegam a ser protagonistas. Ilustram uma metáfora para o casal de idosos do apartamento.
Isadora (Bélgica Castro) sente pesados sinais da idade, tem dificuldade para se locomover e a memória já não é nada confiável. Além dos problemas ainda tem que lidar com Rosario (Claudia Celedón), a filha com quem parece não ter nenhuma afinidade.
O filme nos induz a ficar contra Rosario. A reprovação de Isadora ao relacionamento homossexual da filha é um juízo de valor anacrônico, mas o uso de drogas, as constantes falências e, sobretudo a tentativa de vender o apartamento para utilizar o dinheiro em mais um empreendimento pouco promissor não cria nenhuma empatia com a personagem.
Rosario é alérgica aos gatos. Talvez pela semelhança de comportamento inflexível e pela concorrência desleal pela atenção de Isadora. A mãe não faz muita questão de esconder a simpatia pelos felinos e a relação de tolerância com a filha.
É Enrique (Alejandro Sieveking), o padrasto de Rosario, quem protege Isadora. Tenta trazer um pouco de lucidez para as propostas da moça e impedir que a velha senhora assine os papeis da venda do apartamento. A tensão entre ela e o padrasto, claro, é gritante.
Vale lembrar que o filme trata de um período muito curto e específico da vida dos personagens, nos guiando para ter empatia em relação a uns e repulsa a outros. Vemos que Enrique é um pouco mais novo e mais lúcido que Isadora, mas não sabemos mais nada sobre ele. Nada garante que a aparente preocupação com a companheira não seja sustentada pelo interesse em bens materiais, como o apartamento que ele tanto defende.
Já a relação entre mãe e filha, que é sempre cercada de simbologias e tensões, ganha mais destaque no filme. O desgaste que chega até o conflito atual das duas é antigo e seria irresponsável jogar toda a responsabilidade nos comportamentos condenáveis de Rosario.
A falta de lembranças em comum por parte das duas indica uma distância de longa data, que inevitavelmente influenciou tanto na personalidade quanto nos comportamentos da filha. O fato de hoje Isadora estar debilitada e frágil não significa que no passado ela foi uma mãe atenciosa e responsável. Por outro lado, nenhuma negligência passada justificaria um comportamento hostil por parte da filha, justamente quando a mãe mais precisa de cuidados.
Em meio aos conflitos de interesse, pode se que surja uma centelha de reconciliação. As teimosias que cultivamos com tanto cuidado ao longo da vida geralmente passam a ter vida própria e a nos controlar muito mais do que gostaríamos. Mágoas e ressentimentos chegam a se desvincular de sua origem real e a existir de forma autônoma. Ninguém nem lembra os motivos que levaram ao afastamento, mas a distância é mantida quase que por hábito.
Isadora tem todo o direito de defender seu apartamento com unhas e dentes, se recusando a assinar qualquer papel que a faça abrir mão de seu patrimônio. Mas também pode começar a pensar em como poderia resgatar um pouco de afeto em relação à filha. Com a consciência dando sinais de fragilidade é possível que o tempo para tomar alguma atitude seja escasso.
Por parte de Rosario, seus traumas e histórico de vida em que foi privada da atenção materna devem ser considerados. Além dos conflitos familiares ela ainda deve lidar com a homofobia cotidiana, que não é restrita à recusa da mãe em aceitar comportamentos diferentes da heteronormatividade.
Mesmo assim, os traumas vividos não dão a Rosario a liberdade de fazer o que quiser, desconsiderando que sua mãe tem o direito de dispor dos próprios bens. O histórico de empreendimentos mal sucedidos, somado aos conflitos cultivados ao longo da vida de ambas, faz com que Isadora fique naturalmente desconfiada.
Diante de uma situação complexa, que aparenta ser o ápice de uma longa série de conflitos, parece que o melhor caminho é o esforço para que gatos velhos ainda consigam ser maleáveis e dóceis. Truques novos são bem-vindos em qualquer tempo.