terça-feira, 26 de março de 2013

Menos que nada


Um filme rodado em hospício sempre causa certo desconforto, inerente ao ambiente. Não precisa ser um documentário, despido dos eufemismos da ficção feito “Titicut Follies”, de Frederick Wiseman, nem um protagonista lúcido internado por engano, como em “Bicho de sete cabeças”, de Laís Bodanzky.

Aqui o diretor Carlos Gerbase apresenta a história do protagonista Dante (Felipe Kannenberg), que de fato apresenta uma patologia que o encarcera em um hospício. As poucas visitas que recebia no início cessaram e agora ele passa os dias cavando e apresentando comportamento incompreensível para aqueles que não conhecem sua história.

Ainda que tenham comportamento agressivo e potencialmente perigoso, é sempre chocante a maneira hostil como certos pacientes são dominados, mesmo que para conter uma agressão. Porém essa questão não é o foco do filme.

Sua particularidade começa com a chegada da Dra. Paula (Branca Messina), que decide investir no tratamento de Dante, com o propósito claro de usar o paciente como estudo de caso. A partir disso ela busca elementos do passado do interno e estimula o depoimento de pessoas que fizeram parte da história de Dante, para tentar montar um quebra-cabeça de versões dos fatos e compreender seu comportamento.

Vemos que aquele personagem bestializado, incapaz de utilizar a linguagem falada para se comunicar, já foi um estudante universitário. Calado, distante, traumatizado por perdas ao longo da vida, mas bem diferente de sua atual fase no hospício. Mais do que os aspectos clínicos da esquizofrenia apresentada por Dante, restritos aos profissionais da área, o personagem do filme suscita uma reflexão sobre seu histórico, até a internação.

Em um mundo pasteurizado, em que os comportamentos devem ser padronizados e qualquer excentricidade é mal vista, as pessoas seguem suas vidas sem sequer perceber que pode haver algo de errado com quem está próximo, um filho, um amigo de infância, colega de sala, etc. Todos podiam notar que Dante era diferente, talvez estranho, mas isso nunca chegou a render a devida atenção, ou a curiosidade de ir a fundo e descobrir o porquê daquele comportamento.

Sobretudo no mundo acadêmico e profissional, as atenções são voltadas para a própria carreira, para os próprios projetos, cuja necessidade de números cada vez mais irreais supera a capacidade de olhar para os lados e notar qualquer diferença. É mais fácil ignorar e excluir.

Estendendo a superficialidade de comportamento para a clivagem proposta entre loucos e sãos, é pertinente olharmos com atenção para os demais personagens. Em um mundo no qual se pretende ser cada vez mais profissional e racional, a imaginação é vista como loucura, a particularidade é ignorada e certos comportamentos aceitos como normais.

O ciúme doentio do personagem Ciro (Alexandre Vargas) chega a ser visto como virtude em uma sociedade em que ciúme é encarado como prova de amor. A frieza da arqueóloga René (Rosanne Mulholland) encarada como profissionalismo. O comportamento patético de Gregório (Roberto Oliveira), pai de Dante, tolerado e explicado com a perda da esposa.

Dentre tantas insanidades socialmente aceitas, o estranho é aquele que desenvolve a esquizofrenia, que talvez seja o mínimo para alguém que tenha que lidar com tantas adversidades desde a infância.

Visto como mero entretenimento o filme pode ser apenas a história de um jovem esquizofrênico, porém associando com a realidade, guardadas as devidas proporções, vemos que para cada Dante, encarcerado em um manicômio e em sua própria loucura, nossa sociedade produz inúmeros indivíduos encarcerados no próprio silêncio, no próprio desconforto de quem não chega a demandar sedativos e enfermeiros fortes para amarrá-los, mas que permanecem distantes do que se concebe como saudável.

Talvez possa parecer exagero, afinal a história está repleta de doentes mentais, que sempre foram tratados (muitas vezes de forma absurda) e de uma forma ou de outra a sociedade segue em frente. De fato, mas dentro do contexto exposto no filme e aqui debatido, muitos casos talvez pudessem ser evitados, prevenidos ou encarados com mais respeito e atenção.

Entre os referidos inúmeros indivíduos que fogem da dita normalidade, mas não chegam aos manicômios e aqueles internos, a exemplo do filme, temos lidado com outros tipos, os que tomam uma atitude extrema. Podem atentar contra a própria vida, contra a vida de outros, contra a escola em que se formaram, como já aconteceu tantas vezes nos Estados Unidos, e aqui também.


terça-feira, 12 de março de 2013

O Mágico de Oz (The Wizard of Oz)


And remember, my sentimental friend, that a heart is not judged by how much you love, but how much you are loved by others.

A história do Mágico de Oz nos remete a três obras primas. Tendo origem em 1901, no livro de L. Frank Baum, repleto de metáforas sobre a sociedade norte-americana, suas divergências e transições econômicas, a história foi adaptada para as telas em 1939, com direção de Victor Fleming.

O filme chama a atenção pela qualidade da adaptação (sem cair na falácia de comparar com o livro para ver qual é o melhor) e pela produção extremamente detalhista. As cores gritantes da terra de Oz, os cenários mesclados com pinturas de paisagens, a maquiagem perfeita dos personagens. Tudo contribui para um filme que parece muito a frente de seu tempo.

Por fim, em 1973 a banda Pink Floyd grava o disco Dark Side of the Moon. Marco na história da música, o álbum ganha ainda mais brilhantismo por ser sincronizado com o filme. Inexplicavelmente a banda negou qualquer intenção de fazer isso, como se fosse possível tudo ser coincidência. A sincronia só começou a ser divulgada no fim dos anos 90, hoje há centenas de evidências apontadas. Muitas provavelmente são mesmo aleatórias, talvez até induzidas pelo clima do filme, porém as mudanças de ritmo, coincidências de falas e até sincronia de movimentos dos personagens com sons do disco dão corpo à palavra genialidade.

Em uma sinopse rápida o Mágico de Oz pode passar por uma fábula infantil. A pequena Dorothy (Judy Garland) vive na fazenda de seus tios, no Kansas. Uma vida apática, com a solidão entre os adultos quebrada apenas pela companhia de seu cão, Toto. Um tornado faz com que a casa voe pelos ares, cena que pode ficar ainda mais encantadora ao som de “The great gig in the sky”, aterrissando na maravilhosa terra de Oz. É neste ponto, quando Dorothy sai da casa, que o filme passa a ser colorido. Muitos dizem ser esse o significado da capa do disco, uma luz monocromática que passa por um prisma, revelando as cores do arco-íris. (confira no vídeo abaixo)

A partir deste ponto a história ganha personagens e metáforas que a afastam de um passatempo para crianças. Sem deixar de entreter, muitas mensagens podem ser identificadas no enredo. A estrada de tijolos amarelos, que simboliza o ouro e guia Dorothy, é pisada ao som de “Money”, no livro com sapatos prateados para indicar a necessidade de substituição da moeda do país, no filme foram usados sapatos de rubi, cujo vermelho brilha intensamente na tela, ressaltando as cores que ainda eram novidade nos filmes.

Em meio às bruxas boas e más, interpretadas como referência aos conflitos entre regiões americanas, é possível encontrar temas mais amplos e universais. A loucura, o medo, a ganância, o poder, a morte, são alguns pontos abordados claramente, que serviram de base para o tema das letras e a própria atmosfera da gravação do Pink Floyd. Muitas falas que permeiam as músicas foram gravadas em entrevistas com funcionários do estúdio, estimulados pelos músicos a falarem sobre os temas abordados.

As frases aparentemente perdidas nas músicas podem ganhar significado associando ao filme. Quando Dorothy segue para a Cidade das Esmeraldas, para que o todo poderoso Mágico de Oz (Frank Morgan) possa leva-la de volta ao Kansas, encontra no caminho o Espantalho (Ray Bolger, que em meio a tantos talentos consegue se destacar pela qualidade da interpretação de seu cômico Scarecrow), que segue com ela em busca de um cérebro, o Homem de Lata (Jack Haley), em busca de um coração, e o Leão Covarde (Bert Lahr) que busca coragem.

É impossível esgotar tudo o que há para dizer sobre a junção de três obras tão importantes para a literatura, cinema e música em um texto. Quem sabe em um livro. Mas é notável a relação entre essência e aparência trabalhada o tempo todo no enredo. O poder do Mágico, capilarizado em Oz, não passa de uma ilusão, assim como o medo que o sustenta, não é real, não vai além das fronteiras do indivíduo e só ganha força por uma ilusão coletiva.

A superação dos percalços que os personagens encontram não vem da magia. Ela pode até salvar, quando a bruxa boa faz nevar para anular o efeito soporífero das papoulas, mas essa é uma estratégia cinematográfica ausente na história original. A real solução para os problemas está dentro de cada indivíduo e muitas vezes só precisa de um olhar externo que lhe mostre o caminho com sabedoria. Percorrer o caminho é, portanto, indispensável para a aprendizagem.

Para cobrir todo o filme "Dark Side of the Moon" deve ser executado por duas vezes e meia, ou seja, algumas músicas são repetidas três vezes e apesar da maioria das referências estarem na primeira execução, em todas é possível encontrar alguma correlação. O filme acompanhado pelo disco ficou conhecido como "Dark Side of the Rainbow". Inacreditavelmente fantástico.


quarta-feira, 6 de março de 2013

A Papisa Joana (Die Päpstin)


Esta adaptação do diretor Sönke Wortmann conta a história de Johanna Wokalek, que driblou inúmeras dificuldades, tendo que se passar por homem para ter acesso ao ensino dos conventos do século IX ser escolhida para Papa. Muitos historiadores dizem não passar de uma lenda, de fato o enredo lembra muito as peripécias dos personagens de Giovanni Boccaccio em Decameron, satirizando o comportamento religioso.

Porém outros estudiosos afirmam que de fato houve uma Papisa. A igreja católica nega e afirma que a história é inverossímil, mas esse argumento partindo de uma instituição que afirma que houve a construção de uma arca para um casal de cada espécie de animais, do pinguim do polo sul ao urso polar do norte, do koala ao pernilongo, é bastante questionável.

Independente de lenda ou fato, o filme traz a tona relações de poder e intolerância que não estão superadas e ganham notoriedade em tempos de escolha do novo Papa. As mazelas da igreja são antigas e por mais que a instituição tente escondê-las, frequentemente escândalos explodem.

No filme Johanna Wokalek (Johanna von Ingelheim) nasce em uma pequena aldeia e é filha de um religioso extremista, que sonha em ver o filho mais velho como sacerdote e ignora o talento de Johanna em uma época que as mulheres não podiam estudar.

Esse filme exige a separação de religião e igreja, ainda que a primeira tenha originado a segunda. A religião surge como uma forma de conhecimento. É uma tentativa primitiva de explicar fenômenos que nos rodeiam. O desdobramento disso é que as primeiras escolas e universidades são administradas pela igreja, que com isso controla quem tem acesso ao conhecimento e o que é estudado, barrando os avanços científicos dos gregos durante toda a Idade Média.

Com o conhecimento fortemente ligado ao poder, a igreja católica manteve-se intocável por séculos, controlando e moldando a informação da forma mais conveniente para perpetuar-se junto aos poderosos. Desta forma a igreja sempre defendeu com unhas e dentes a estrutura social do ocidente, ou seja, a concentração de poder e de renda em uma sociedade extremamente machista e misógina.

Uma das explicações lógicas para a limitação da participação feminina no alto escalão da igreja, além do reflexo do machismo, é a questão dos descendentes, também abordada no filme. Não é de hoje que o celibato do clero é puramente teórico e não são poucos os casos de religiosos que tiveram filhos, ou seja, herdeiros, que para não terem direito às propriedades da igreja, costumam ser muito bem ocultados. Antes do exame de DNA era impossível provar a paternidade de forma irrefutável, mas o que fazer se uma religiosa engravidar (talvez em mais uma história digna de Boccaccio) e fornecer um herdeiro para dividir os bens da igreja? Haja espírito santo para justificar e ocultar tantos escândalos.

A postura de igreja, de defender de forma quase incondicional os dogmas postulados há milênios, é anacrônica e insustentável. Em decorrência disso a sociedade, que nunca foi tão estática quanto a igreja, muda seus padrões e cria novas categorias, como novas instituições, que mantêm as mesmas bases, mas fazem releituras convenientes, ou os tais “católicos não praticantes”.

Assim como o alto escalão da igreja, essas inovações moldam a palavra conforme a necessidade, o que não muda são os absurdos e terrores promovidos pelas instituições em nome da fé. A misoginia, que matou Johanna se a história for verídica ou que sem dúvida mataria, tornando a lenda verossímil, continua atuando. Segue também a tentativa desesperada da igreja de controlar a informação e encobrir as falhas em seus rígidos padrões teóricos, porém esta tentativa está cada vez mais frágil diante da facilidade com que a informação circula atualmente.

Esse filme é um bom exemplo de como o controle da igreja, que chegou a assassinar cientistas e artistas na inquisição, está enfraquecido, já que em outras épocas o simples lançamento seria impensável. Mesmo assim a instituição e fé seguem fortes, já que mesmo sendo um filme muito bem produzido, é bastante desconhecido e tem pouco espaço até mesmo nos meios especializados em cinema. Por mais que a história de Johanna seja encarada como lenda, o simples fato de ser plausível e das críticas permeadas nas entrelinhas serem incontestáveis, já é suficiente para tornar prudente o ostracismo da obra.

Se restar dúvida sobre o conservadorismo da igreja ou parecer uma teoria da conspiração, basta pensarmos na postura da instituição em relação ao uso de preservativos ou células tronco, ou ainda considerarmos que não há chance do próximo Papa ser mulher, e será visto como uma grande inovação se ele não for europeu!


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