terça-feira, 28 de junho de 2011

Poesia (Shi)

Poesia pode até ser interpretado como a forma da protagonista Mija (Yun Jeong-hie) encarar a vida, cheia de percalços. Pode indicar uma certa função da arte, de auxiliar a descrever as experiências que vivemos, para assim ordenar nossos pensamentos e facilitar resolução dos problemas, mas o que mais chama a atenção no longa do coreano Lee Chang-dong é o machismo, que atinge a protagonista pelas três gerações de homens com quem ela deve conviver.

A protagonista é uma senhora que cuida de um velho homem rico, com sequelas de um AVC, e vive com o neto adolescente, que junto com um grupo de amigos estupra uma jovem na escola, provocando o suicídio da mesma e fazendo com que os pais dos agressores tentem comprar o silêncio da família da vítima. A reação patética dos pais mostra outra trama interessante do filme, a conhecida tradição oriental sendo substituída pelas leis vorazes do mercado, onde o dinheiro supostamente poderia comprar qualquer coisa, até mesmo a família pobre da menina violentada.

Em meio as dificuldades da vida Mija começa a frequentar aulas de poesia, buscando nas belezas do mundo a inspiração para o poema, que teima em não vir. Contempla a natureza, tenta praticar esportes, busca nos cinco sentidos palavras que se encaixem para formar seus versos, mas não consegue fazer seu poema. Apesar do otimismo e esforço da personagem, o que vem ao seu encontro é bem menos poético.

Em casa o neto é mais um adolescente que vive na letargia entre a televisão e o videogame e, ainda que a idade do jovem seja conhecida pelo desinteresse e afastamento, nunca é demais lembrar que o comportamento é formado ao longo de toda a infância, de forma que mesmo com a intempestividade própria da idade, todo adolescente age dentro de um campo de possibilidades, composto pelas experiências e valores adquiridos. Assim, a forma com que a avó é tratada parece típica e inquestionável de alguém acostumado a tirar vantagens de uma estrutura social machista, que pode culminar no estupro de uma amiga da escola.

No emprego Mija deve lidar com as grosserias de um homem na mesma faixa etária que ela, obtendo assim o próprio sustento e também o do neto. Seria compreensível a irritação de alguém que no fim da vida sofre com a debilidade de movimentos e talvez por isso acabe perdendo a paciência diante de situações corriqueiras, que de repente tornam-se grandes obstáculos, como tomar banho ou alimentar-se. Mas as reações do velho homem extrapolam a condição de vítima de um AVC e passam a explorar tanto a condição econômica, de quem paga uma pessoa e acredita que por isso pode fazer o que quiser, quanto a relação entre gêneros, ao utilizar um estimulante sexual para ‘ser um homem’ sem se importar com o que sua empregada acha disso. A imposição de poder, sexual e econômico, não se extingue sequer diante dos problemas de saúde, ainda que a protagonista tente driblar essa situação.

Entre as duas gerações retratadas vemos os pais dos garotos que violentaram a jovem na escola. A vergonha nas culturas orientais é um sentimento muito forte, podendo levar até mesmo ao suicídio como indicado no próprio filme, através da menina que, como é comum na cultura machista, se sente culpada pela violência que sofre. Os pais em questão também sofrem vergonha pela atitude dos filhos, que sem dúvida pode prejudicar o futuro dos mesmos, mas o poder econômico se associa bem ao machismo para superar o irreparável e a proposta, já que a família da jovem é pobre, é comprar seu silêncio. É assim que Mija é pressionada para conseguir pagar sua parte da dívida, com a qual não concorda, mas não tem outra opção.

Através das três gerações vemos o machismo perpetuado, em contraposição à protagonista que busca a beleza da vida. Da mesma forma o conteúdo pesado do enredo é quebrado pela suavidade das imagens e pela figura terna da senhora sempre bem vestida e de paciência quase ilimitada. Mija parece ter aprendido na prática que o passado não deve ser esquecido para que os erros não voltem a acontecer, assim, mesmo com o mal de Alzheimer recém diagnosticado, ela é a única a tentar manter viva a memória da vítima de seu neto.

O que a velha senhora ainda pode aprender é que a beleza de um poema não depende da beleza de sua inspiração, de forma que lindas obras têm frequentemente origem em fatos terríveis, indo além de uma simples descrição do que é belo e atingindo o caráter de idealização diante das tristes atitudes humanas. Sem querer adiantar o final do filme, vale a pena chamar a atenção para a forte presença feminina nas últimas cenas, quem sabe com o ideal de encerrar tantas atitudes vergonhosas dos personagens masculinos, tristemente tão reais.

quinta-feira, 16 de junho de 2011

Estrada Real da Cachaça

Cachaça, peço o favor que não me aborreça.
Desça para a barriga, mas não suba para a cabeça.


O road-movie de Pedro Urano percorre o interior do Brasil, principalmente de Minas Gerais, para contar algumas histórias e mostrar como a cachaça se tornou a bebida típica do país, marcando presença ao longo de todos os ciclos econômicos desde o descobrimento, com produção rudimentar, até hoje, com algumas marcas valiosas.

Tendo sua origem e predileção entre os populares, a bebida sempre teve a fama de estar à margem da sociedade, com uma imagem até pejorativa, mas como podemos ver no documentário, seu consumo vai além de alcoólatras incorrigíveis e sua história pode ajudar a compreender até mesmo a estrutura de poder da sociedade brasileira, tanto pelas classes que mais a consomem, quando pelas que mais a marginalizam.

Muito barata e acessível, a bebida forte sempre serviu de combustível para trabalhadores explorados, sendo bastante eficiente nesse sentido. Os escravos utilizaram seus benefícios no ciclo da cana e na mineração, após a abolição da escravatura os trabalhadores semi-escravos continuaram a consumir a cachaça para espantar o frio das manhãs, as dores – do corpo e da alma –, o cansaço e, talvez principalmente, o desânimo da vida explorada que se resume na rotina de ir diariamente da casa para o trabalho e do trabalho para a casa. Serve também de companhia para os viajantes, que precisam passar longos períodos longe de casa e da família. Um trabalhador que bebe cotidianamente nunca foi bem visto pela sociedade, e de fato o consumo excessivo da bebida tem efeitos devastadores, mas a marginalização do consumo não tem base na preocupação com o indivíduo e sim com sua força de trabalho, que irá baixar quando estiver alcoolizado, reduzindo assim o lucro do empregador que o explora. Desta forma é mais barato denegrir a imagem daqueles que consomem a cachaça do que evitar os motivos que levam os trabalhadores ao alcoolismo.

Como qualquer produto que cria raízes na cultura de uma sociedade, a cachaça não tem apenas seu aspecto prático, tendo se espalhado pelos hábitos de seus consumidores, o que também gerou preconceito de muitos. A igreja católica, que desde seu surgimento não mede esforços para barrar qualquer outra crença religiosa, sempre se empenhou em suprimir o Candomblé trazido pelos escravos utilizando técnicas bem distantes de seus próprios dogmas. De agressões aos adeptos às associações mentirosas dos elementos sagrados do Candomblé com o demônio dos católicos, a igreja viu na cachaça – utilizada em alguns rituais da religião africana – uma forma de tentar desmoralizar o culto aos Orixás. O curioso é que a miscigenação que ocorre em praticamente todos os sentidos na sociedade brasileira se estendeu às religiões, sendo que ao invés de enfraquecer o Candomblé, o catolicismo agora tem que aceitar alguns de seus adeptos utilizando a temida bebida em alguns ritos. O filme não tem a intenção de entrar em qualquer polêmica religiosa, ou mesmo de criticar a igreja, mas evidentemente não é muito coerente criticar o uso da cachaça enquanto se associa o vinho ao sangue de um profeta – isso sim, só é tolerável depois de consumir muito álcool.

O humor está presente em várias partes do filme, o que é quase inevitável diante da forma com que a bebida é conhecida, associada à descontração e ao modo descomprometido de viver. As sequências que deixam mais evidente o lado cômico são as que trazem as pessoas mais simples apresentando versos antes de virarem suas doses, o que contribui também para compreender como essas pessoas veem o produto. É possível notar que existe plena consciência de que a bebida é prejudicial e que pode aprisionar quem abusa de seu consumo, porém diante das situações apresentadas, ou seja, o consumo em botecos de pequenas vilas ou propriedades rurais, podemos questionar qual a alternativa oferecida em troca do alcoolismo, já que aos que bebem moderadamente, mantendo o controle frente à bebida, são oferecidas condições de vida bem semelhantes aos alcoólatras, que sempre são discriminados, mas raramente tratados e muitas vezes preferem abrir mão da saúde para não ter que encarar “a seco” a dura realidade.

O diretor perde um pouco o ritmo ao dar muita ênfase à forma como os mineradores trabalham atualmente, extraindo e vendendo suas pedras, pois apesar do tema estar relacionado com o cerne do documentário, visto que o trabalho pesado dos mineradores é muito seduzível pelos prazeres da cachaça, a sequência acabou fora de contexto, no entanto isso não compromete a qualidade do longa, sendo que as imagens envelhecidas em preto e branco, para resgatas a origem antiga das tais estradas reais, surpreendem positivamente, chamando mais a atenção do que os pontos negativos.

O filme é uma viagem muito prazerosa pela história da bebida que, apesar de sempre à margem, acompanha a história do Brasil bem de perto. Uma ótima opção, tanto para divertimento quanto para informação.


quinta-feira, 2 de junho de 2011

Estamos Juntos

Neste longa o diretor Toni Venturi costura diversas faces de uma grande cidade como São Paulo, mostrando a diversidade, que pode convergir para o isolamento das pessoas, expresso sob diversas formas. O paradoxo de Estamos Juntos é que a tal união que o título sugere vem pela solidão dos personagens de diversas ramificações do enredo.

A trama principal é de Carmem (Leandra Leal), jovem com futuro promissor, que vem do interior para estudar medicina em São Paulo. Além de ser residente em um hospital público ela presta serviços de orientação em um prédio ocupado no centro de São Paulo. Quem vem à capital buscando livrar-se das amarras das pequenas cidades acredita chegar vacinado contra os problemas que encontrará, e de fato algumas adversidades não são difíceis de driblar, mas é a partir do diagnóstico de um tumor que a vida de Carmem se mostra mais frágil do que ela mesma esperava. Vale ressaltar que as reações da personagem foram muito bem dosadas por Venturi, passando toda a angústia necessária, mas sem transformar o fato em um dramalhão de novela.

Como se não bastasse todos os problemas repentinos, Carmem ainda tem que suportar o peso da responsabilidade alheia, tanto do músico argentino Juan (Nazareno Casero), cujos galanteios desajeitados e o sotaque castelhano proporcionam os momentos mais engraçados do filme, quanto do amigo Murilo (Cauã Reymond), homossexual que sonhava em conquistar Juan, antes de seu affair com Carmem. Os três mostram a fragilidade das relações de amor e amizade, formando um triângulo solitário graças ao comportamento extremamente egoísta de negar a personalidade do outro, adotando a postura egocêntrica de atribuir às pessoas próximas o próprio fracasso. Posto desta forma pode parecer, e de fato é, um comportamento absurdo, porém bastante comum fora das telas. Novo mérito a ser ressaltado é a força da personagem de Carmem, pois mesmo sendo a que mais tem motivos pessoais para explodir e disparar contra todos que estão a sua volta, ela é a única a manter a sensatez, suportando calada e compreensiva muitos absurdos. É ela quem mostra a força real diante da fraqueza que os homens insistem em tentar, sem sucesso, esconder. Talvez por isso Juan vai minguando aos poucos até sumir da trama.

Longe da família e sem o apoio dos amigos (com exceção do enigmático amigo sem nome vivido por Lee Taylor), Carmem tenta uma espécie de fuga da dura realidade pela qual passa se entregando ao trabalho no hospital, onde é possível notar em cada personagem um pouco da referida solidão, que, ao meu modo de ver, indica que estão mesmo todos juntos, no mesmo barco – quase um “barco dos loucos”, sem rumo, de Hieronymus Bosch. A princípio parece justo que a personagem mantenha uma ocupação que lhe distraia, porém não é mesmo sensato que alguém em situação tão delicada – tanto física quanto psicologicamente – exerça a medicina.

Resta a Carmem o trabalho no edifício ocupado, onde a jovem enfrenta um grande choque de realidades. A mesma imposição de valores percebida entre Juan e Murilo é vista aqui, apenas com enfoques diferentes. Talvez a trama do MSTC (Movimento Sem-Teto do Centro) pareça um pouco deslocada do desenrolar do filme, mas remete a outro longa de Toni Venturi, “Dia de Festa”, que aborda diretamente a questão da ocupação de edifícios vazios e sem função social. A princípio os militantes do edifício ocupado dão uma lição de vida ao driblar os problemas da classe média, retratada pelos médicos e músicos, resta saber até que ponto resistirão antes da tal solidão mostrar as garras.

Sem adiantar o desfecho da trama, é possível dizer que a diversidade dos personagens faz com que seja difícil a quem assiste não se identificar ao menos um pouco com a trama, ainda que as dificuldades de Carmem pareçam intermináveis. Ao menos a solidão que uma cidade tão grande tem a oferecer é bem real, uma das funções históricas do cinema é a de alertar, com suas metáforas, para que possamos aprender com os erros fictícios e evitar, ao menos um pouco, os problemas reais.


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