quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

A Balada de Narayama (Narayama Bushi-Ko)

A Balada de Narayama é um filme baseado na história de Shichiro Fukazawa. Vencedor do Festival de Cannes de 1983, o longa do diretor Shohei Imamura nos mostra o cotidiano de uma pequena vila no norte do Japão, no final do século XIX. Isolados entre as montanhas seus habitantes têm um cotidiano restrito basicamente à produção de alimentos, que mesmo com todo o esforço dos habitantes, é bem limitada.

Deparamos-nos com um modelo de sociedade cujo modo de produção difere drasticamente do que estamos acostumados e isso implica em muitas curiosidades. Nossa sociedade capitalista é baseada no consumo e acumulação, assim cada trabalhador produz muito mais do que pode consumir para que o excedente possa ser comercializado. Na pequena vila japonesa cada um produz sua própria unidade de consumo, não há trabalho alienado ou exploração do mesmo por terceiros gerando mais-valia, mas as técnicas de plantio e caça são rudimentares e o inverno rigoroso, sendo que quando a produção é baixa não há excedentes para a parcela improdutiva da população, ou seja, crianças muito pequenas para o trabalho e idosos já incapazes de produzir. A solução para este problema não é exclusiva da sociedade em questão, mas para nossos padrões é verdadeiramente inimaginável.

Não existe a possibilidade de aumento da população, portanto novas crianças só são aceitas quando há alguma morte – uma espécie de reposição, deixando densidade populacional estável. Para resolver o problema de um nascimento quando não houve nenhum óbito as meninas são vendidas, sendo levadas para longe da vila, e os meninos são mortos, enterrados ou jogados no riacho.

Não menos chocante é o destino dos idosos. Quando começam a perder os dentes (por volta dos setenta anos) devem deixar a vila, ainda que estejam lúcidos e possam contribuir com trabalho. Os dentes perdidos são uma espécie de sinal de que já não podem contribuir para o próprio sustento, logo se tornarão um peso para seus descendentes. Os idosos são levados por um membro da família até Narayama, uma montanha que abriga os restos mortais de diversas gerações de idosos, para perecer e assim deixar espaço sociedade para um novo membro. Podemos notar no filme que certas vezes este ritual (bastante mórbido para nossos padrões) é encarado com relutância pelos idosos, porém a grande tradição faz com que outros aguardem ansiosamente pela data, por vezes contribuindo para adiantar o afastamento, acreditando que esta é uma oportunidade de rever os antepassados. Todo o conhecimento e experiência de vida de um sexagenário, ainda mais valioso em uma sociedade sem tradição escrita, deve ser refutado em prol dos mais novos.

Há uma forte influência naturalista em diversas tomadas cuja sequência mostra animais e insetos alimentando-se de outros ou procriando, indicando uma semelhança entre estes e os seres humanos, cuja vida limita-se basicamente a trabalhar, colhendo alimentos para o estoque que deve durar todo o rigoroso inverno, e procurar por sexo – fato enfatizado aos homens – ainda que a procriação só seja permitida após a morte de algum integrante da sociedade. Outra aproximação mais sutil com o mundo animal é notada diante de situações conflituosas, resolvidas geralmente com brigas e agressões.

Em relação à sociedade moderna, notamos entre os japoneses uma grande preocupação com a alimentação além da versatilidade e variedade dos pratos asiáticos. Geralmente essa característica é atribuída aos períodos de guerra, que muitas vezes castigaram a população local espalhando a fome pelo oriente. Neste filme notamos mais um fator, ou seja, os períodos cujas técnicas de produção eram rudimentares ao ponto de não haver alimentação suficiente para todos. No Brasil vivemos a outra face da moeda, e o lado ruim de nossa falta de experiência com a grande escassez de alimentos é notado no paradoxo de um país que exporta comida para o mundo todo, vendo sua própria população passar fome em muitas regiões, com cerca de 30% da produção de alimentos perdida durante o transporte ineficiente da mesma.


terça-feira, 22 de dezembro de 2009

Mutum

Transpor uma obra literária para a linguagem cinematográfica não é tarefa das mais fáceis, que dirá quando se trata de um trabalho de Guimarães Rosa. Pois o filme dirigido por Sandra Kogut é uma boa versão para a vida de Miguilim, narrada por Guimarães em Campo Geral.

Se por um lado os romances deste singular autor são permeados de reflexões interiores, com personagens imersos em pensamentos profundos mesmo quando fazem parte do universo infantil, por outro a diretora soube explorar a ideia de que uma imagem diz mais que mil palavras para dar sua versão visual à muitas partes do filme. É evidente que o livro sempre resulta em uma obra mais profunda e completa, porém este filme é um exemplo que conseguiu transpor de forma satisfatória a essência do romance.

Dois personagens centrais tiveram os nomes alterados, e o resultado não foi muito agradável. Miguilin virou Thiago (interpretado por Thiago da Silva Mariz) e seu irmão Ditinho virou Felipe (Wallison Felipe Leal Barroso) com a interpretação de ambos chamando a atenção pela qualidade, que frequentemente é sofrível entre atores infantis.

Kogut soube retratar o universo infantil mostrando que para as crianças o mundo é mágico. O sentimento de encanto diante de novidades, o temor de involuntariamente cometer algum pecado e o senso do que é certo e errado – evidente quando Thiago é requisitado pelo tio Terez (Rômulo Braga) para entregar um bilhete para sua mãe – ganha um aspecto visual e mesmo a característica pensativa do garoto, que observa atentamente o mundo para aprender com o que a vida tem a lhe oferecer, é notada no longa. Apesar de muitas reflexões presentes no livro não se adequarem ao filme, as características gerais do garoto foram bem encenadas.

Felipe é o irmão mais velho que no livro serve mais de espelho ao mais novo que vê o primogênito como um exemplo a ser seguido. Na versão filmada os dois garotos mantêm a forte amizade e descobrem juntos a vida, debatem sobre o que é pecado ou permitido, dividindo as responsabilidades e brincadeiras. Tal qual no livro é extremamente angustiante acompanhar a tensão da família depois que Felipe corta o pé e sofre com uma infecção. Este pode ser o elo principal do filme com uma das possíveis críticas sociais contida na obra. A cineasta faz questão de mostrar em dois planos sequência cédulas de dinheiro, e a moeda é o Real, ou seja, apesar de ser uma história escrita no início da década de 60, ainda hoje a região pode ser retratada da mesma forma. Sem escolas para as crianças, sem assistência médica e a dificuldade de locomoção que torna Mutum uma terra distante e isolada.

No filme, como não poderia deixar de ser, aparece o médico que chega a cavalo – nada mais que o próprio Guimarães que se transformou em personagem literário para relatar suas viagens como médico pelo sertão – e descobre que Thiago é míope. Essa é uma das muitas metáforas contidas na obra do escritor, dialogando com a dúvida se Mutum é ou não um lugar bonito. Thiago só sana essa dúvida quando coloca os óculos do médico, indicando que uma das interpretações possíveis é a que Mutum sempre foi bonito, para ser melhor aos olhos de seus próprios moradores faltam alguns detalhes de fora como os óculos, ou remédios para Felipe, ou uma escola para as crianças.

Sandra Kogut fez um belo filme que merece ser visto, depois do livro que é leitura obrigatória.



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