terça-feira, 22 de janeiro de 2013

Amor (Amour)


"O impulso da vida e o impulso da morte habitam lado a lado dentro de nós. A morte é a companheira do amor. Juntos eles regem o mundo."
Sigmund Freud

O diretor Michael Haneke vem ganhando notoriedade e se tornado cada vez mais indispensável a cada filme. Sua forma de retratar fatos cotidianos de forma simples, direta e sem apelações geram filmes que atraem e emocionam, talvez pela grande dose de realidade que cria uma identificação em quem assiste.

O retrospecto de sua obra faz com que quem a conheça crie grande expectativa em relação a um filme intitulado Amor. Uma única palavra que define sentimentos tão diversos. Podemos sentir amor pelos pais, amigos, animais, amantes, e ainda que possamos restringir a esses últimos, ainda existe uma infinidade de agentes externos influenciando. Ainda assim Haneke consegue nos dar a sensação de uma câmera autônoma, ligada para registrar um cotidiano sem interferência de um diretor.

Vemos Georges (Jean-Louis Trintignant) e Anne (Emmanuelle Riva), um casal de aposentados, aproveitando o momento atual que estão vivendo. Sem eufemismos de “melhor idade”, sem um apego desesperado e insustentável de aparência jovial dos corpos e outras maluquices. Além de consumir arte através de concertos musicais, quadros e livros que preenchem todo o apartamento, chama a atenção o comportamento do casal.

Mesmo com a idade avançada o cotidiano dos dois não é marcado pela indiferença, mas pela atenção de um para com o outro. É claro que essa aparente expressão do amor romântico é um recorte de uma longa vida juntos, que inevitavelmente é marcada por altos e baixos. Mais que mostrar um casal que viveu uma vida de conto de fadas, o filme parece indicar que com paciência, serenidade e maturidade ambos souberam superar percalços, mantendo um relacionamento saudável.

O realismo de Haneke se expressa com a conclusão óbvia de que a vida nos traz problemas sem que precisemos encomendá-los. Um AVC faz com que Anne tenha o lado direito do corpo paralisado, alterando a relação com Georges. Já era de se esperar que o marido continuasse a dispensar atenção à esposa, mas entra em cena o delicado limite entre ajuda e comiseração.

Ainda que o sempre gentil Georges tenha as melhores intenções, às vezes exagera na atenção que dedica a Anne. Esta, por sua vez, ainda que reconheça a boa vontade do marido, não quer ser tratada como uma total incapaz. Essa ambiguidade é muito comum no auxílio a qualquer tipo de deficiência.

Como desconforto pouco é bobagem Anne sofre um segundo AVC. É a partir desse momento que vemos a senhora que mesclava força e elegância definhando, sofrendo para pronunciar palavras que formam frases incoerentes e sem sentido; presa a um estado talvez pior que o vegetativo, pois os momentos de breve lucidez permitem expressar o sentimento de dor e desejo de morte. Sabemos que Anne vai morrer, o diretor nos conta isso logo na primeira cena, sem que isso impeça um final que nos faça prender a respiração e parar de piscar.

Conforme já citado, o filme emociona – como não poderia deixar de ser, com uma história dessas – porém sem apelar para isso. Não há uma única música como trilha sonora para os momentos mais difíceis, com exceção da que a própria Anne executa ao piano quando o marido lembra a vitalidade da esposa, já presa à cama. Notamos que a emoção se dá por conta do retrato da vida com naturalidade, sem a necessidade de transformar tudo em um dramalhão cinematográfico.

Se pensarmos em Georges como um senhor que já não tem obrigações profissionais, tão pouco grandes compromissos, é plausível que se dedique a cuidar daquela que foi sua companheira. O que realmente pesa é o convívio com aquela que até então vivia ao seu lado, compartilhando bons momentos e trocando experiências de uma longa vida, agora degradada e sem possibilidades de recuperação.

Como costumamos ver nos filmes de Haneke, temos aqui um final aberto a interpretações e conclusões, sem moralismo, como não poderia deixar de ser após expor tão diretamente o delicado prolongamento da sobrevida. A lição que podemos tirar com o cativante casal do início do filme gira em torno da serenidade e da forma com que cara um aprendeu a lidar, na medida do possível, com os percalços que a vida nos impõe. A partir disso, a conclusão sobre o que é certo ou errado fica por conta de quem assiste.

O título do filme está de pleno acordo com seu enredo. Amor. Bonito, triste e indispensável.


terça-feira, 15 de janeiro de 2013

Água para Elefantes (Water for Elephants)

O diretor Francis Lawrence nos apresenta um filme que vai muito além da história de amor, situada no universo circense. Repleto de metáforas relacionadas ao período histórico no qual está inserido, o roteiro abre espaço para muitas reflexões e ensina muito sobre a sociedade americana.

A história se desenvolve na década de 30, época em que o país todo lutava para superar a crise econômica, que marcou o período como sendo de grande depressão. As oscilações na economia eram sentidas diretamente no circo, que frequentemente passava por dificuldades, ainda que durante as crises as atividades lúdicas ganhem destaque por aliviar um pouco a tensão do cotidiano.

Mas a atuação do circo como metáfora supera o simples entretenimento do público. Seu funcionamento indica um pouco sobre a forma com que os EUA se reergueram economicamente. August (Christoph Waltz), o proprietário do circo, é a imagem clássica do capitalista, pois mesmo que o circo não seja uma indústria que produz bens de consumo, seu dono explora o trabalho alheio para enriquecer, oferecendo em troca no máximo algumas migalhas, ou nem isso.

Sobretudo nos períodos de grande crise, nos quais os empregos são raros e a subsistência ainda mais difícil, é bastante comum que as pessoas adotem o princípio de salvar a própria pele, ou seja, primeiro conquistar uma posição mais estável e depois tentar reorganizar a vida e buscar um caminho que realmente agrade. Aqui entra a domadora Marlena (Reese Whiterspoon). Esposa de August, ela é seduzida pelas vantagens e pelos medos da mudança, se sujeitando a muitas coisas com as quais não concorda, mas não quer arriscar seus benefícios e correr o risco de voltar à vida dura que levava antes de se casar.

Essa zona de conforto de Marlena é quebrada frequentemente pelos agravamentos na crise. Como era de se esperar pelo que simboliza, August não é nada gentil e a forma com que trata a esposa é bastante dura, principalmente quando está bêbado. A chegada de Jacob Jankowski (Robert Pattinson) abala definitivamente a vida da moça, que começa a perceber alguma alternativa.

Jacob é o típico trabalhador daquela época. Sem grandes laços familiares, sem perspectiva, sobe em um trem sem rumo, com a esperança de que este o leve para um lugar melhor. Consegue um emprego e, fazendo amizade com os outros empregados, começa a indicar os problemas que a onipotência de August ocasiona. Evidentemente ocorre um súbito e mútuo interesse por Marlena, que dá ritmo à trama e também serve de elo para a moça, que fica entre a vida materialmente confortável, porém sofrível, e a possibilidade de realizar os sonhos, que evidentemente corre o risco de ser uma escolha equivocada, caminhando no incerto.

Seguindo o paralelo entre os personagens do circo e as classes sociais, vemos que todos os empregados do circo, ou seja, toda a classe trabalhadora, muito numerosa, está subjulgada a um único patrão. Numericamente levam vantagem, porém quando o dono se vê ameaçado, sempre tem o braço forte, ou dos capangas ou do estado, dependendo da associação que estiver sendo feita, para lhe proteger.

A elefante, que em pouco tempo acaba sendo a principal e mais lucrativa atração do circo, pode sem bastante emblemática. Aquela que de fato gera renda não fala a mesma língua que o capitalista – o animal foi adestrado em outra língua, por isso não compreende as ordens em inglês. Além da dificuldade de compreensão a empregada, ou elefante, sequer tem consciência do lucro que proporciona ao circo, só sabe empiricamente que se não fizer exatamente o que for ordenado, será duramente castigada por isso – se August agride a esposa, dá para imaginar como trata os animais.

Água para elefante não chega a ser um grande filme marcante, mas as interações entre as classes retratadas e a forma com que a época da grande depressão é retratada, em meio ao universo lúdico do circo que oculta graves problemas em seus bastidores, torna a trama mais rica e atrativa, ainda que se renda a certos apelos comerciais.


terça-feira, 8 de janeiro de 2013

O som ao redor


A sociedade brasileira vem mudando ao longo dos anos. Processo inevitável, as relações e a estrutura social são moldadas conforme novas necessidades surgem. Apesar disso, filmes como este, do diretor Kleber Mendonça Filho, deixam claro que certas características ganham novas formas, mas mantêm a essência quase intacta.

A história que se desenvolve em Recife poderia ser adaptada para qualquer outra grande cidade, sobretudo litorânea, onde se concentrou a colonização do país. No bairro retratado podemos ver forte influência do coronelismo, que por sua vez tem características do feudalismo trazido pelos europeus, ou seja, um senhor economicamente poderoso, aqui representado por Francisco (WJ Solha), que cria certa dependência com boa parte dos moradores locais, por ser dono de diversos imóveis alugados no bairro.

A partir deste topo da pirâmide vemos os netos do senhor local sempre gozando de privilégios, seja através de Dinho (Yuri Holanda), que pratica pequenos furtos apenas por diversão, sabendo que o avô sempre o protegerá, ou através de João (Gustavo Jahn), que administra os imóveis da família e até demonstra um pouco mais de consciência de sua condição privilegiada, mas ainda assim prefere lavar as mãos na reunião do condomínio que está prestes a demitir o porteiro sem muitos direitos trabalhistas.

Descendo um pouco mais pela pirâmide o filme traz diversos personagens que formam uma massa de moradores interagindo entre si de forma mais igualitária, com problemas de convivência bem comuns, sempre relacionados ao conflito de interesses e à invasão do espaço, mesmo que não seja de forma física, mas através do latido do cachorro, por exemplo.

Um ponto em comum que une os moradores do bairro, mesmo com todas as suas particularidades, é o medo da violência. Formando a base da pirâmide vemos a camada social que não têm condições de pagar o aluguel dos imóveis de Francisco, mas muitos podem manter a relação de dependência, trabalhando direta ou indiretamente para ele, sofrendo preconceitos, que agora devem ser velados, diferentemente da escravidão institucionalizada, e frequentemente buscando algum lugar ao Sol – o que causa incômodo nos moradores que querem se sentir acima desta classe.

Essa estrutura força a burguesia a se enclausurar em uma espécie de burgos contemporâneos que, somados ao individualismo, fazem com que as pessoas queiram resolver as consequências que os problemas sociais trazem a elas, ao invés de solucionar os problemas como um todo, desta forma é criada uma enorme confusão em relação ao espaço público e ao uso do mesmo.

As ruas, espaço público que a princípio deveria proporcionar a convivência sem nenhum tipo de distinção, passa a ser evitada em nome da segurança e posteriormente privatizada com a mesma desculpa. No filme isso se dá com a atuação de um grupo de seguranças particulares, coordenados por Clodoaldo (Irandhir Santos). A suposta empresa chega sem nenhuma referência prometendo segurança àqueles que pagarem por seus serviços, negociando a autorização com o "chefe local", Francisco, e garantindo fazer vistas grossas aos furtos de Dinho.

Um dos grandes destaques do filme é a capacidade de mostrar todas as tensões presentes nessas relações sociais de forma implícita, muitas vezes através do silêncio ou da sutileza com que este é quebrado, de forma intermitente. Não há uma palavra ou agressão direta que expresse o racismo daquele recorte da sociedade, apenas o papel que cabe a cada um naquela estrutura já basta. O silêncio da normalidade quebrado pelo latido incansável do cachorro da vizinha é suficiente para indicar a dificuldade de relacionamento que se estabelece entre aqueles que dividem o mesmo muro.

Vemos através do comportamento das classes que interagem no filme que a herança do colonialismo influencia na tendência de uma sociedade extremamente verticalizada, onde não há interesse na redução das diferenças para que a solução dos conflitos seja uma consequência natural. Há apenas o desejo de ascensão individual, deixando para baixo todos aqueles que não puderem pagar pelo sossego.

Para aqueles que ainda acreditam na justiça desta estrutura, algumas conclusões também ficam latentes na trama. Notamos, por exemplo, que essa escalada na pirâmide social dificilmente é feita sem nenhuma mancha de sangue, além disso, as relações sociais estabelecidas são permeadas por uma tensão constante, capaz de explodir a qualquer momento, quebrando bem mais que o silêncio.


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