quinta-feira, 3 de julho de 2008

Morte no Funeral



O versátil diretor inglês Frank Oz (foto) já demonstrou seu talento em diversas áreas da indústria cinematográfica. É produtor de televisão; junto com Jim Henson, criou os bonecos Muppets; na série “Star Wars”, deu voz ao pequeno Mestre Yoda; e dirigiu bons filmes, como “Os Picaretas”. Recentemente, em apenas sete semanas, concluiu as filmagens de seu novo trabalho, “Morte no Funeral”, uma comédia com o característico humor britânico e com destaque para a qualidade do elenco.

A princípio, a morte do patriarca da família deveria reunir parentes e amigos para uma sóbria despedida organizada pelo filho Daniel (Matthew Macfadyen), mas nem tudo acontece de acordo com a pontualidade e seriedade dos ingleses. Infortúnios, que vão de uma acidental viagem lisérgica a uma surpreendente revelação de pederastia, caem sobre os ombros do jovem Daniel, que faz de tudo para manter a situação sob controle e despedir-se do pai com a discrição que se espera de um funeral.

No elenco, marcado por grandes atuações sempre bem dirigidas, destacam-se Peter Dinklage, o misterioso anão desconhecido que se torna peça-chave da trama; e principalmente Alan Tudyk - fazendo o papel de Simon, noivo da sobrinha do falecido -, cujo simples olhar já é capaz de arrancar boas risadas da platéia. Uma cena bem marcante talvez seja considerada "escatológica demais" para alguns - é o único momento em que o filme lembra um besteirol americano -, mas foi bem contextualizada por Oz.

O enredo do filme lembra o livro “Os restos mortais”, de Fernando Sabino, que também trouxe de forma bem humorada um enterro que parecia não querer acontecer. Como Sabino expôs em seu livro: “O pior da morte é o corpo que ela deixa atrás de si. Devia sumir, esvair-se no ar, sem ficar sequer a lembrança de jamais haver existido.” A lembrança sempre fica. Entretanto, o comum é que a despedida do corpo seja breve.

A morte em todas as sociedades é seguida de um rito, cuja forma varia muito, mas a intenção é sempre semelhante. Desde o simples enterro a que estamos habituados aos grandes eventos realizados por diversas tribos, as sociedades cercam de misticismo a despedida e a homenagem aos que nos deixam. É um momento de ruptura em que os que seguem a vida ainda não estão certos de como reestruturar seus hábitos cotidianos.

A princípio, esse cenário parece impossibilitar qualquer tipo de brincadeira, muito menos uma comédia - escrita ou filmada -, que pode parecer desrespeito, ou até mau gosto. Porém, tanto Sabino quanto Oz conduzem seus trabalhos de forma a descreverem situações em que a morte parece não querer nos deixar, e o fazem sutilmente. O humor negro, quando bem conduzido, passa despercebido e não damos conta de que estamos rindo de situações que na vida real seriam trágicas.

Outro ponto indiretamente ressaltado ao transformar um funeral em uma comédia é que a vida não respeita rituais. Mesmo os ingleses, com a fama de rigidez quase como um protocolo, têm de lidar com imprevistos e improvisar diante dos fatos inusitados que podem ocorrer em qualquer lugar, em uma festa, em uma reunião, em um funeral!

Para quem não está habituado ao cinema europeu, “Morte no funeral” é um bom começo. Um filme simples, sem grandes efeitos, que prima pela qualidade através de bons atores e um ótimo diretor.



quarta-feira, 2 de julho de 2008

A Vila



Este filme de M. Night Shyamalan (Sexto Sentido, Corpo Fechado, Sinais) decepcionou muita gente. Baseadas em traillers e sinopses que vendiam uma imagem comercial do filme, não faltaram críticas taxando o trabalho de chato e previsível. De fato A Vila não é um filme fácil de compreender que, sem dúvida, decepciona quem espera por sustos que colam a platéia nas cadeiras e mais ainda quem espera por banhos de sangue.

Shyamalan opta por inúmeras metáforas que dão margem à diversas interpretações ao invés de entregar ao público as idéias prontas e concluídas. Isso resultou em um filme um tanto linear, sem o famoso "grand finale" que muitos esperavam. As entrelinhas são fascinantes aos que conseguem interpretá-las e estimulam a ver o filme diversas vezes em busca de detalhes despercebidos à primeira vista.

O enredo gira em torno de uma pequena vila no meio da floresta que supostamente é habitada por criaturas malignas. Segundo os habitantes mais velhos, há um pacto que determina que as criaturas não atacarão os moradores, desde que os limites da floresta não sejam ultrapassados por eles. Ao longo do filme vemos que a vila foi criada por algumas pessoas que, após sofrerem vários infortúnios, gostariam de fugir dos males da cidade e viver em um lugar tranqüilo e protegido. Agora os fundadores governam a vila; ensinam as crianças; e perpetuam a idéia de que a cidade é ruim e de que a floresta é habitada por criaturas, chamadas apenas de "aqueles de quem não falamos". Até aqui, um cenário típico dos filmes de terror, não obstante o terror da Vila é mais psicológico.

Neste contexto encontramos Lucius (Joaquin Phoenix), o jovem tímido que prima pela razão e questiona se não seria viável cruzar a floresta até a cidade em busca de remédios e produtos que trariam benefícios para os habitantes, pois, para ele, diante de uma causa nobre as criaturas não atacariam; Noah Percy (Adrien Brody), que tem problemas mentais e esse é um dos argumentos utilizado por Lucius para buscar remédios; e Ivy Walker (Bryce Dallas Howard) que interpreta com maestria a jovem cega que enxerga o mundo de uma maneira muito peculiar, chegando a lembrar Mary Philbin em O Homem que Ri e a frase "Deus fechou meus olhos para que só pudesse ver o verdadeiro Gwynplaine". Ivy enxerga o mundo de forma sensível e diz ver a cor que Lucius emite.

Com esses três personagens centrais e suas características, Shyamalan coloca o amor (Ivy Walker, cega e sensível) entre a razão (Lucius, que não consegue esconder sua atração por Ivy, como uma espécie de limite da razão diante da emoção) e a loucura (Noah Percy, a sua maneira tem grande atração por Ivy). A loucura tenta eliminar a razão em prol do amor; quando a loucura toma uma atitude direta a razão torna-se impotente e cabe ao amor sanar o conflito. O desfecho fica por conta do filme - mesmo sem o "grand finale", sempre há algumas surpresas.

Além do conflito entre relacionamentos, é notável a presença da coerção psicológica através do medo das criaturas que habitam a floresta, incutido nos moradores desde a infância. Na obra “Vigiar e Punir” Michel Foucault desenvolve a noção de panoptismo que, resumindo ao extremo, explora a idéia de repressão através da hipótese da observação por autoridades – como na Vila, onde o comportamento de todos é regido constantemente pelo medo de serem observados pelas criaturas e suas conseqüentes retaliações. Outro ponto que chama a atenção no regimento da Vila é o caráter vertical do poder, concentrado nas mãos dos poucos fundadores do local que, subjugados as criaturas, tomam todas as decisões de forma a zelar pelo bem-estar de todos, porém não um bem-estar natural, mas definido e imposto pelos fundadores.

Para finalizar o artigo – não as interpretações possíveis – o filme foi lançado em 2004, pouco mais de um ano após as tropas norte americanas invadirem o Iraque, quando o governo dos E.U.A. lançava constantemente um indicador que mostrava qual era o risco de um ataque terrorista. O governo nunca explicou como era feito o indicador, que revelava a ameaça de perigos externos cercando o país como criaturas malignas. No filme, Edward Walker (Willian Hurt) é um dos fundadores da vila e manda a filha Ivy para solucionar um grande problema indiretamente gerado por sua administração do local. Criar um governante que envia uma jovem cega para a batalha pouco depois do início de uma guerra real que já matou cerca de quatro mil soldados (sem contar os milhares de civis) é uma metáfora no mínimo interessante.



terça-feira, 1 de julho de 2008

Cama de Gato


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“Cama-de-gato” é uma antiga brincadeira infantil de origem indígena, na qual, segundo o dicionário Houaiss, “um participante faz passar entre os dedos um cordão ou barbante que tem as pontas ligadas, criando com ele várias disposições ou armações que são transportadas para os dedos de um segundo participante”. Esse emaranhado de fios passa das mãos de um para outro, e não deve ser desfeito.

“Cama de Gato” é também o primeiro longa de Alexandre Stockler, em que o emaranhado consiste numa série de problemas que formam uma bola de neve na vida de três jovens inconseqüentes da classe média.

A produção é do Movimento T.R.A.U.M.A. (Tentativa de Realizar Algo Urgente e Minimamente Audacioso), uma versão tupiniquim para o dinamarquês Dogma 95, do qual segue alguns princípios. A preocupação do Trauma é com o conteúdo dos filmes, não com sua rentabilidade; e fazer os filmes, para o grupo, é mais importante do que discutir as dificuldades da realização, especialmente no Brasil.

O resultado da aplicação desses pressupostos é um filme cru. “Cama de Gato” teve um orçamento de apenas 13 mil reais (elenco e equipe técnica não cobraram cachê) e quebra com a tradição da procura pela perfeição de imagem, iluminação e som. São utilizadas condições naturais de luz, que faz com que a imagem fique, algumas vezes, imperfeita e escura. É perceptível a liberdade dos atores em relação ao roteiro, que implica em cenas com grande improviso, em contraposição às direções rígidas. A cena de sexo, seguido de estupro, que choca pelo realismo extremo, mereceria mais destaque, não fossem tantos outros temas polêmicos abordados ao longo do filme.

As filmagens começam na vida noturna, com depoimentos de jovens que permitem traçar um estereótipo de uma parcela da sociedade da qual fazem parte os protagonistas. É possível identificar na ficção muitas situações verídicas, com algumas cenas retratando simbolicamente fatos reais que ganharam repercussão nacional.

A história conta com três personagens principais, Cristiano (Caio Blat), Chico (Rodrigo Bolzan) e Gabriel (Cainan Baladez). Representantes característicos da juventude de classe média alta paulistana, começam com uma conversa com pinceladas de política, demonstrando que chega a existir certa preocupação com a desigualdade social. Mas o engajamento e a preocupação dão lugar ao individualismo e à necessidade de diversão a qualquer custo. A rotina de festas tem espaço de destaque quando os três amigos passam no vestibular e querem comemorar o acesso à universidade.

O desenrolar da trama coloca os jovens em uma espiral crescente de problemas, iniciada por uma morte acidental – a primeira atitude inconseqüente dos jovens – e a necessidade de ocultar o crime para poder viver tranquilamente no país da impunidade. Os atrapalhados (e azarados) amigos não contavam com uma série de infortúnios que tomaram proporções inesperadas.

O humor negro de situações tragicômicas mostra como, mesmo em situações de extrema gravidade, que demandam atitudes sérias, os personagens encaram os fatos de maneira irresponsável, e o desenrolar da trama mostra que eles não têm outro objetivo que não o de livrar a própria pele, sem a menor ética ou sentimento de culpa.

Assim como no início, o filme termina com cenas externas (entrevistas com jovens da mesma faixa etária dos personagens), mas dessa vez o depoimento é sobre o roteiro do filme e possíveis soluções para a "cama-de-gato", ou seja, Stockler dá mais realidade às filmagens ao buscar na sociedade que pretende retratar a solução para os problemas criados.

Para quem assiste, a princípio a tendência é concordar com a brincadeira inserida no meio do filme – talvez o único momento cômico que não é cercado por tragédia –, segundo a qual situações como as que são descritas só acontecem no cinema. Mas uma reflexão sobre fatos recentes presenciados em nossa sociedade nos remete à impunidade, muitas vezes tão inacreditável quanto as trapalhadas dos jovens protagonistas.

O filme dribla dificuldades financeiras com talento e conteúdo, faz uma denuncia direta de crimes cotidianos – geralmente impunes – e prova que é possível fazer cinema de forma diferente e inusitada. Merece ser lembrado pela idéia de quebrar barreiras e propor algo novo, muito mais do que por ter uma cena de sexo chocante. Os cineastas não precisam seguir os princípios do Movimento Trauma, mas os que seguirem estarão fazendo bom cinema, com certeza.


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