quarta-feira, 26 de maio de 2010

Notícias de uma guerra particular

A princípio este parece ser mais um filme sobre o aparentemente interminável conflito entre policiais e traficantes, desta vez sob a ótica de Katia Lund e João Moreira Salles. A diferença não está apenas no fato de ser um documentário, isento de fabulações, mas ainda que todo documentário esteja subordinado à visão do diretor, aqui a dupla trabalhou com as principais partes envolvidas, ou seja, ao longo do trabalho vemos entrevistas de moradores, policiais e traficantes, intercaladas. A comparação nos permite identificar conclusões em comum dos três setores, além de percebermos que diferente das brincadeiras infantis de polícia e ladrão, na vida real mocinhos e bandidos não são tão facilmente distintos.

O maniqueísmo que o senso comum tenta impor é quebrado pelos próprios policiais quando o então chefe da polícia civil, Hélio Luz, dá declarações polêmicas, assumindo a corrupção entre policiais – fato que seria inegável – e dizendo claramente que a polícia garante a segurança dos ricos, pois na favela é necessário manter a ordem e a ferramenta para isso é a repressão. Poderíamos pensar na legitimidade do uso da força pelo estado para estabelecimento da ordem, não fosse pelas declarações de moradores afirmando que antes do domínio do tráfico os policiais entravam na favela com muito mais agressividade, pois não havia reação dos moradores, e os papeis se misturam a partir do momento que moradores tinham eletrodomésticos e objetos de maior valor levado pelos policiais, que alegavam ser produto de roubo, ainda que sem provas.

Evidentemente que com isso não podemos concluir que há uma simples inversão de valores, pois se por um lado o tráfico supre certas necessidades dos moradores, que seriam dever do estado, é latente a crueldade com que dívidas são cobradas e que crimes são cometidos. Ainda que, segundo traficantes entrevistados, o surgimento do crime organizado tenha sido para melhorar a vida de presos e dos próprios moradores da favela, com o intuito de “regulamentar” a violência entre traficantes rivais e oferecer resistência frente à polícia, é indispensável lembrar que os envolvidos com o tráfico de drogas entram para o crime ainda muito jovens e têm toda sua formação marcada pela banalização da violência.

Ainda que uma porcentagem baixa da sociedade entre para a criminalidade – como bem lembrado por Hélio Luz, se essa fosse uma opção generalizada o crime não seria um estado paralelo, mas tomaria o poder de fato – já é um número significativo para abalar a sociedade como um todo, e isso desconstroi a opinião do policial que considera uma guerra particular os conflitos na favela. Pela fala dos três setores entrevistados não é difícil perceber o que leva os jovens à marginalidade. É muito clara a diferença entre os que não entram para o crime e optam por trabalhar nos empregos legalizados, sentindo as consequências de um estado omisso em relação à qualificação profissional. Geralmente com pouco estudo, o salário baixo do subemprego é quase fatídico e o alto lucro do tráfico torna-se extremamente sedutor por proporcionar condições de manter um padrão de consumo mais elevado. Muitos preferem uma vida curta a uma longa exploração legal.

Talvez o maior consenso do filme seja a indicação da miséria como fonte dos conflitos. Essa percepção com base no cotidiano é comprovada por pesquisas que não colocam os municípios mais pobres como mais violentos, este posto é ocupado pelos mais desiguais. A discrepância entre o padrão de vida de um trabalhador e um traficante; a diferença de tratamento pelos policiais entre um morador de favela e um bairro nobre; a omissão do estado para uns e a corrupção para outros. Todos esses fatores que podem parecer repetitivos e cansativos, mas que persistem há séculos, com pequenas mudanças de forma, mas com o eterno conteúdo de exploração culmina em um documentário como este.


O filme pode (e deve) ser assistido integralmente no Youtube.


quarta-feira, 12 de maio de 2010

Sobre meninos e lobos (Mystic River)

Sobra talento individual neste longa dirigido por Clint Eastwood, a começar do próprio. Em adaptação do livro homônimo, Eastwood faz um filme policial em Hollywood, entretanto descontroi diversos estereótipos e na maior parte do longa fica distante da abordagem convencional de diretores norte-americanos. Não se trata de um bang bang moderno com tiroteios pelas ruas movimentadas, nem do maniqueísmo que separa mocinhos e bandidos tentando eliminar qualquer ponto em comum entre ambos. Vemos uma mistura de meninos e lobos – um bom título em português – representada pelos protagonistas, que podem estar ora de um lado, ora de outro da linha extremamente tênue, se não inexistente, entre o certo e o errado.

Os referidos protagonistas são nada menos que Jimmy (Sean Penn), Dave (Tim Robbins) e Sean (Kevin Bacon), três amigos na infância que o tempo, com influência do sequestro de Dave, reduziu a vizinhos distantes. Até neste ponto o roteiro mistura bem e mal, pois uma tragédia, alfinetando a pedofilia na igreja católica, separa os amigos que só voltam a ter contato e a revisitar as memórias após outro fato trágico, desta vez com a família de Jimmy.

O título original, Mystic River, remete ao rio que corta a cidade de Boston, mas também forma uma interessante metáfora para a história cercada de mistérios e personagens mergulhados em si, cada um com suas mágoas de forma a beirar o ocultismo. As vidas carregadas por um passado bastante traumático desencadeiam fatos que culminam em um quebra-cabeças para o agora policial Sean e seu parceiro Whitey (o coadjuvante (!) Laurence Fishburne). Mesmo sendo guiado pelo mistério de um crime não solucionado, não é este o ponto forte do filme, pelo contrário, pois a dúvida não chega a prender tanto a atenção e as hipóteses que tentam montar vários suspeitos são facilmente desconstruídas.

Chama a atenção a densidade dos personagens e a fragilidade da história construída por nuances que só funcionam se estiverem cuidadosamente estruturadas de forma impecável. Esse encadeamento dos fatos culminando em um ponto específico é citado no próprio filme quando Jimmy diz que a mãe de Hitler cogitava um aborto, o que poderia ter mudado a história da humanidade. E com quantas pequenas tragédias cotidianas não nos deparamos durante a vida? Fatos inexplicáveis nos quais há tantos detalhes, individualmente irrelevantes, mas indispensáveis ao todo, que, talvez por comodidade, culpamos o destino.

Por fim, adeptos da justiça com as próprias mãos e defensores da pena de morte, sobretudo diante da confissão do criminoso, talvez tenham que reestruturar seus argumentos depois do que o enredo nos apresenta. Será válido analisar um fato sem levar em conta sua história, para que uma decisão tão drástica e definitiva seja tomada? Com que legitimidade nos colocamos do lado dos meninos, se a qualquer momento um destes – talvez nós mesmos, dependendo do ponto de vista – age como um lobo? O trabalho de Eastwood mostra uma lógica segundo a qual cada detalhe é tão relevante e tão frágil que a qualquer momento uma tragédia pode encobrir a outra.



quinta-feira, 6 de maio de 2010

As melhores coisas do mundo

Laís Bodanzkiy mergulhou no universo dos adolescentes de classe média alta através do personagem Mano (Francisco Miguez), e com os estereótipos bem encaixados dos elementos que circundam o jovem a diretora consegue evidenciar fatos cotidianos que nos levam a contestar alguns paradigmas sobre esta conturbada fase da vida e sua relação com a fase seguinte, dos pais.

A ideia bastante consensual transmitida aos filhos é a de que eles estão vivendo em uma fase sem problemas ou preocupações, uma vez que não precisam se preocupar com o pagamento das contas ou o sustento da família. Entretanto esta visão simplista do que são as “verdadeiras” dificuldades remete ao fato de que os problemas que ocorrem conosco sempre parecem piores do que os das outras pessoas. Ao passar pelo filtro do tempo os pais parecem esquecer as angustias, as pressões e os sentimentos intensos desta fase naturalmente cheia de dúvidas, em que ainda não estamos plenamente inseridos nos processos sociais e acreditamos que tudo é definitivo e dramático.

A opinião unanime dos jovens é a de que os pais cometem erros bobos e quando tiverem filhos tudo será diferente, pois a relação será pautada na amizade. A doce ilusão chega ao fim quando os filhos nascem, crescem e, quando chegam à adolescência, estragam tudo, ou seja, todo o planejamento de uma relação amigável cai por terra devido à personalidade do jovem não ser condizente com a construída pelos pais quando eles eram adolescentes. Apesar de ser fácil concordar que é necessário respeitar a individualidade, as vontades e a personalidade do outro, na prática tudo fica diferente quando este “outro” é alguém com quem sonhamos há anos, com cada detalhe de comportamento, preferências, etc.

Não é apenas dessa forma subjetiva que a diferença entre o que achamos correto e o que achamos correto que aconteça conosco aparece no filme. Sem querer estragar surpresas, Bodanzky trabalha muito bem temas polêmicos que as pessoas costumam tolerar sem problemas, desde que só aconteça com os outros. A intolerância é mais curiosa entre os mais velhos, pois seria de se supor que a maior bagagem cultural e o acumulo de experiências vividas servissem para trabalhar os fatos de forma mais eficiente, sem a herança do romantismo que é tão presente nos jovens, e bem abordado no filme pelo personagem Pedro (Fiuk); mas na adolescência os desdobramentos de atitudes hostis podem não ter um final tão harmonioso quanto a fabulação permite nas telas.

A hostilidade no ambiente escolar é antiga – tanto que qualquer um que assiste ao filme reconhece algumas situações como familiares –, a diferença é que hoje o desenvolvimento da tecnologia, que facilita as pesquisas escolares e contribui para a formação dos estudantes, também pode ser utilizada para fazer com que pequenos fatos da vida particular dos alunos tornem-se públicos. Somando os insubstituíveis hábitos de troca de bilhetes e comunicações mais tradicionais com as mensagens de texto, blogs, etc., a escola continua sendo o ponto chave dos processos de socialização pelos quais todos passamos; o lugar onde acontecem as melhores coisas do mundo, mas ao mesmo tempo bastante coercitivo.


Para terminar, uma nota a parte: a magia dos Beatles parece mesmo eterna, como Laís Bodanzky nos mostra através de Something. Certa vez me disseram para nunca confiar em alguém que não gosta do quarteto de Liverpool, e tenho comprovado isso empiricamente =)



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