quarta-feira, 18 de setembro de 2013

A espuma dos dias (L'Ecume des jours)

Por não ter grande tradição em movimentos artísticos e literários o Brasil acaba pagando um preço alto, ou seja, não ter artistas que se destacam em determinadas correntes. É o que acontece com o surrealismo, por exemplo. Apesar de ser uma das grandes influências do movimento modernista, este sim com mais relevância em nossa sociedade, conhecemos (mal) o surrealismo apenas através de artistas estrangeiros, sobretudo o espanhol Salvador Dalí.

Com uma visão de mundo tradicionalmente utilitarista, que marginaliza o que não é objetivo, acabamos nos afastando também de qualquer forma de expressão alternativa, como o realismo fantástico, marcante em vários países da América Latina. Desta forma um filme como “A espuma dos dias”, do francês Michel Gondry, costuma soar estranho em terras brasileiras.

Diferente de nossas comédias sem graça, com histórias fáceis e finais felizes, Gondry traz uma adaptação da obra de Boris Vian repleta de referências culturais, desde a clássica cena de “Um cão de Andaluz” em que uma personagem tem o olho cortado com uma navalha, aqui bem mais suave ainda que um tanto aflitiva, até o filósofo francês Jean Paul Sartre, que no filme vira Jean Sol-Partre, passando pelas claras referências a Woody Allen.

Com técnicas simples de stop motion associadas a efeitos especiais mais elaborados, o filme cria um universo onírico que rompe completamente com a relação espaço-tempo convencional. Neste ponto a obra se aproxima do realismo fantástico já citado, pois apresenta com extrema naturalidade fatos completamente inusitados, fazendo com que ao abrir mão da necessidade de cenas factíveis, os personagens fiquem livres para mesclar sonho e realidade, característica típica do surrealismo, para concretizar a narrativa.

O enredo do filme é simples, narra em linhas gerais uma história de amor entre Colin (Romain Duris), até então bastante solitário e desajeitado com as mulheres, e Chloé (Audrey Tautou, a eterna Amélie Poulain). Estão nessa trama todos os elementos de uma história que tem como base a sequência utilizada desde as clássicas obras gregas. A particularidade é que, diferente de outras correntes literárias, que primam pela perfeição, omitindo os percalços da realidade, o surrealismo exterioriza esses percalços, expondo tudo de forma caricata, cômica e desajeitada.

Até mesmo a relação com as drogas, frequentemente associadas aos artistas surrealistas que por vezes utilizavam de seus efeitos para conseguir resultados mais vigorosos nos trabalhos, está presente entre os personagens do filme. As substâncias que distorcem os sons, as cores e as formas são proibidas, recriminadas, porém não deixam de marcar presença e render cenas cômicas, assim como os fatos inesperados da vida, tão bem trabalhados no filme.

É curioso que quando somos crianças gostamos de desenhos insanos, que tenham as cores explodindo na tela, com personagens inanimados interagindo com seres humanos e/ou animais. Aos poucos vamos crescendo e aceitando a falsa necessidade de seriedade, para que a realidade que nossos olhos nos mostram não seja manchada com o que foge aos nossos sentidos.

A ideia do surrealismo, muito bem trabalhada neste filme, é exatamente hipervalorizar metáforas aparentemente sem sentido para narrar fatos cotidianos e mostrar, ou sugerir, deixando a cargo da imaginação daqueles que assistem enxergarem as faces que a tendência romântica dos filmes costuma ocultar.

Haveria metáfora mais suave para um câncer do que afirmar que a personagem tem uma flor de lótus crescendo no pulmão? O eufemismo não tira a gravidade do fato e seu desdobramento, também repleto de metáforas, é uma forma de encenar um cotidiano extremamente difícil de forma lúdica.

O enredo não abandona os passos clássicos da construção de uma narrativa, mas mostra comédia e drama com um viés distinto, colocando um pouco de magia no cotidiano e tentando suavizar de forma metafórica os problemas que insistem em aparecer na vida real e que no filme acabam se tornando mais um diferencial para comédias com enredo irritantemente linear.

Apostar na retomada de um movimento artístico costuma ser ineficaz, ou seja, o surrealismo é uma corrente historicamente superada, que deixa raízes como todas as outras, mas não pode ser ressuscitado. Ainda assim, da mesma forma que o romantismo teve seu ápice há muito mais tempo e continua contaminando, muitas vezes de forma extremamente prejudicial, as obras de artes contemporâneas – sobretudo a literatura e cinema – seria muito interessante se mais artistas se inspirassem em fontes surrealistas para narrativas alternativas às tradicionais.


terça-feira, 10 de setembro de 2013

Muito Além do Cidadão Kane (Beyond Citizen Kane)

Cidadão Kane é o personagem fictício do filme homônimo de Orson Welles. Inspirado na vida de um magnata do jornalismo norte americano, Kane manipulava informações e exercia seu poder transitando entre política e imprensa.

Em 1993 uma emissora britânica lançou o documentário "Muito além do cidadão Kane", dirigido por Simon Hartog, com pinceladas sobre a sociedade brasileira – a ser apresentada aos ingleses – e relacionando fortemente a figura de Roberto Marinho, na época com 87 anos, à história recente do Brasil.

Em uma época em que a TV brasileira tinha ainda menos concorrência do que hoje, sem a alternativa da internet, canais por assinatura e apenas quatro canais abertos (Globo, SBT, Manchete e Bandeirantes), já era notável a hipocrisia de estrelas como Xuxa – mais uma rainha para a monarquista rede Globo, junto a Pelé, Roberto Carlos, entre outros que receberam a coroa da emissora – que construía um mundo de sonhos junto com suas paquitas, loiras, magras, jovens e bonitas.

Apesar de ter abandonado os longos programas matinais para crianças, ainda notamos o empenho de produções para o público infantil, hoje não só da Globo, para vender a imagem de sonhos da infância, que escancara o contraste entre quem passa o dia com um copo de leite e socialites que despejam dinheiro em seus bichinhos de estimação.

Sobre a sociedade brasileira, o filme indica que 50% do país pertenciam a 1% da população. Considerando que se este número mudou, não foi para muito melhor, a maioria da população ainda tem acesso apenas às imagens da mercadoria anunciada. A venda é de sonhos, não de produtos. Um carro dito popular e sendo anunciado como uma grande oferta, por quase 60 salários mínimos, serve para duas coisas para a massa que não faz parte do 1% citado: parcelar um carro em infinitas prestações, gerando renda ao banco, à concessionária, à montadora, etc., ou sonhar com o dia utópico em que poderá comprar um automóvel.

A princípio isso poderia gerar uma crítica ética, à qual a emissora poderia se esconder utilizando o falso argumento de que produz conteúdo e quem não gosta tem a liberdade de mudar de canal. O problema maior aparece quando vemos que a concessão às televisões, sobretudo no início recente da TV brasileira, era dada diretamente pelo presidente, sem nenhum critério técnico.

Não é difícil perceber que opositores ao governo jamais receberiam a autorização para um veículo de manipulação, digo, comunicação em massa. Desta forma, com base na amizade, Roberto Marinho conseguiu sua primeira concessão dada por Kubitschek.

Recentemente, em resposta às manifestações populares que diariamente entoavam o coro de “a verdade é dura, a rede Globo apoiou a ditadura”, a emissora admitiu o apoio, em nota seguida de uma retratação. Alegou ter sido enganada, assim como toda a sociedade brasileira, uma vez que os militares haviam prometido uma intervenção breve, que na verdade durou duas décadas.

O que o filme mostra, a Globo esconde e a sociedade sabe é que a emissora apoiou todos os presidentes, em maior ou menor grau, ajudando a derrubar os mesmos quando a queda já era inevitável. Na via de mão dupla entre poder executivo e organizações Globo (que incluem também mídia impressa, rádio e, atualmente, internet e TV por assinatura) há um pacto de não agressão com limites muito nítidos.

Por um lado o governo pode não renovar a concessão da emissora, por outro esta tem poder de sobra para derrubar qualquer presidente. Assim trocas de farpas ocorrem com precisão cirúrgica para que este equilíbrio, benéfico para ambas as partes e prejudicial para o país, seja mantido.

Há 20 anos o documentário já questionava a idoneidade da Globo, tanto com hipóteses de manipulação de dados em relação ao crescimento econômico durante a ditadura militar quanto com fatos dificilmente refutáveis como a manipulação do debate entre Lula e Collor, a “maquiagem” do início da campanha das Diretas Já, a distorção de pesquisas eleitorais e, agora, o apoio à ditadura militar.

Pelo apoio à ditadura houve um pedido de desculpa, no qual exaltavam a democracia e a liberdade. Curioso já que este mesmo documentário tem sua exibição proibida no Brasil, graças ao peso político da Globo. Sua exibição sempre ficou restrita a locais não comerciais e agora na internet.

Com tantas incoerências e mentiras que rondam a emissora família Marinho, questionar sua atual veiculação de notícias é mais que pertinente. É latente a diferença que a emissora dispensa às notícias de corrupção ou escândalos políticos e a manipulação dos telespectadores, eleitores, continua forte, ainda que o monopólio da terceira maior emissora do mundo venha diminuindo.


terça-feira, 3 de setembro de 2013

Imaginaerum

Logo após os finlandeses do Nightwish lançarem o sétimo álbum de estúdio, Imaginaerum, a ideia de um filme baseado na obra ganhou forma. A parceria não tão explorada entre cinema e música rendeu o longa homônimo, que é um bom filme e mesmo não sendo uma obra-prima do cinema, tem pontos interessantes e quem sabe não inspira outras bandas a complementarem o trabalho de estúdio nas telas.

O diretor Stobe Harju também assina o roteiro, junto com Tuomas Holopainen, tecladista e principal compositor da banda. Como era de se esperar, o enredo traz muito do universo onírico e grandiloquente, que marca o estilo da banda, trazendo ainda referências cinematográficas marcantes, sobretudo com o boneco de animação, que tem clara inspiração no cineasta Tim Burton.

A história do filme gira em torno de Tom Whitman (Quinn Lord, Tuomas Holopainen e Francis McCarthy, aos 10, 47 e 70 anos), que a beira da morte devido a um AVC, delira em coma, fantasiando ainda ser criança. Sua memória da vida adulta não existe e em seu mundo de fantasia – onde podemos conferir as músicas do Nightwish, inclusive com os músicos tocando, fato que a princípio parece interessante, mas nem sempre foi bem encaixado nas sequências do filme – o velho homem segue sendo uma criança.

Fora do mundo onírico de Tom, sua filha Gem Whitman (Marianne Farley) não chega a ter grandes problemas em ver o pai à beira da morte, encarando com indiferença a escolha de desligar ou não os aparelhos que o mantém vivo. Tangenciando o tema da eutanásia, que não é a ideia do filme, o ponto central é que Gem se sente rejeitada pelo pai, carente da atenção que ele nunca lhe deu.

Ainda que esse enredo tenha se desenvolvido de forma interessante no filme, a inexperiência do diretor com este seu primeiro longa e mesmo de Tuomas, com seu primeiro contato com o cinema, ficam latentes em algumas partes, não sendo suficientes os requintes de superprodução para dar ao filme a qualidade final que mereceria.

Mesmo assim vale a pena um olhar mais atento sobre o desdobramento da história de pai e filha, que mal se reconhecem nestes papéis familiares. Em meio ao universo de sonhos e a fria realidade somos levados por um corredor estreito, esbarrando ora na insegurança da filha, ora na desconfiança, dada a demência do pai. O fato é que independente de filmes, fantasias ou enfermidades, dois pontos de vista sobre o mesmo fato, ou sobre a mesma relação ‘pai e filha’ nunca são iguais.

A versão que temos sobre nossas próprias vidas é construída a cada vez que relembramos fatos vividos. Por mais detalhistas que tentemos ser, ou talvez exatamente por sermos detalhistas, alteramos mentalmente os acontecimentos, excluindo algumas coisas e acreditando que realmente aconteceram pontos gostaríamos que tivessem acontecido. Assim Gem construiu a própria imagem do pai, corroborando a cada dia sua ideia pré-concebida de abandono. Por outro lado, alterado pelos problemas mentais, o pai vivia sonhos grandiosos para sua infância, desde seu boneco de neve que ganhava vida até o duelo entre bem e mal, vivido imaginariamente.

Em um filme fica mais fácil acompanhar duas versões da mesma história, confrontando os pontos contraditórios, conferindo de perto os equívocos e tirando as próprias conclusões sobre o que é apresentado. O que nos faz pensar em uma analogia com a vida real, não necessariamente em um conflito familiar, mas em relação à própria imagem que fazemos de outras pessoas.

Diante de uma situação em que todos os envolvidos juram ter completa certeza sobre o passado, em versões conflitantes entre si, como garantir que a veracidade dos fatos já não foi alterada, ainda que sem intenção, pelos sentimentos tendenciosos de nossa própria consciência?

Na verdade essa garantia não existe. Muitas vezes sequer uma acareação pode resolver determinados impasses e, não tendo na vida o recurso lúdico do cinema para retratar fatos passados, nos resta considerar a hipótese de nossas certezas não serem tão corretas quanto pensamos, e quem sabe considerar os benefícios da dúvida.

Com o filme o Nightwish mantem a característica de instigar aqueles que conferem suas obras a não somente contemplar o conteúdo, mas também pensar nos temas trabalhados e buscar significados em metáforas e histórias.


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