terça-feira, 28 de março de 2017

Chatô - o rei do Brasil

Condensar uma biografia na duração de um filme não é tarefa fácil, sobretudo quando o biografado foi uma pessoa influente e sua história se confunde com vários aspectos do país, como é o caso de Assis Chateaubriand, interpretado por Marco Ricca.

Baseado na biografia esmiuçada de Fernando Morais, o diretor Guilherme Fontes optou por dar ênfase na relação dos canais de comunicação de Chateaubriand com o presidente Getúlio Vargas, utilizando recursos lúdicos para guiar as inúmeras faces do protagonista, como o julgamento fictício que traz como argumentos de acusação e defesa os fatos vividos pelo protagonista.

Além das inúmeras dificuldades que envolvem a produção de um filme, Chatô contou ainda com problemas judiciais e processos que atrasaram bastante a produção. Tudo isso acabou fazendo com que o lançamento do filme coincidisse com um momento extremamente tenso da política nacional, que nos remete aos entraves vividos na era Vargas.

Fica claro o quanto é antiga a relação promiscua entre imprensa e governante. Com personalidade bastante destoante dos círculos sociais que frequentava e tendo os bastidores retratados no filme, Chateaubriand não costumava usar eufemismos para exaltar o peso dos anunciantes não somente na economia do jornal, mas também no conteúdo e viés das matérias publicadas.

Igualmente tendencioso em relação à política, é notável que não haja decisão tomada em um grande veículo de comunicação que não seja amparada por uma intenção, cuja eventual nobreza não reflete nada além do interesse do proprietário do jornal. Qualquer candidato a cargo eletivo que negue ser político não faz mais do que ocultar dos eleitores as alianças firmadas por trás das manchetes de jornal. Isso já ficou claro em meados do século passado.

Mas Chateaubriand não se resumia a ligações espúrias com o governo. Amigo próximo dos artistas responsáveis pela semana de arte moderna, realizada em 1922, havia um lado inovador e revolucionário no magnata de aparências contraditórias e faro para os investimentos.

O problema é que suas contradições não se restringiam ao aspecto privado de sua vida. Os caprichos do magnata também atingiam em cheio a forma e o conteúdo de seu jornal. Neste os entraves com anunciantes tinham repercussão na esfera privada e qualquer irregularidade deveria ser investigada neste sentido. É na esfera pública que a arbitrariedade de parcerias atinge diretamente a população.

O direito à informação não pode ser refém de interesses do jornal, nem da amizade baseada na troca de favores entre governante e empresário do setor de comunicações. Atualmente os proprietários de grandes jornais do país – podem ser contatos com apenas uma das mãos – são mais discretos e cuidadosos para que os problemas pessoais não manchem a imagem empresarial.

Diante de tantos escândalos políticos seria difícil um fato inesperado vindo do Planalto, mas ainda assim a disputa pelo amor da primeira dama não é um fantasma que ameace a relação presidencial com a grande mídia. Atualmente a ligação é mais sólida e formal, com concessões muito bem selecionadas e diversos deputados vinculados diretamente a redes de rádio e tevê.

A estrutura frágil que unia mídia e governo nos tempos de Chateaubriand e Vargas foi muito bem lapidada por seus sucessores, de forma que questões pessoais sejam devidamente blindadas e os benefícios dessa relação de mutualismo político siga sendo vantajosa para as duas partes e um consequente entrave para a população, que segue com um viés tendencioso do que é noticiado.

Uma possível solução para ao menos reduzir o caráter tendencioso do que é ou não divulgado sobre políticos seria o já proposto controle social da mídia. A solução é convenientemente divulgada como censura por jornais tão isentos quanto Chateaubriand, interessados em manter a atual liberdade de concentrar o poder nas mãos de poucos, divulgando o que é interessante aos jornais e aos políticos que não ameaçarem o atual quarto poder formado pela mídia.

O que, não por acaso, é omitido pelos setores de comunicação é que a mídia é socialmente regulada nos principais países do mundo. Talvez a única grande democracia que permita grandes blocos formados por rádio, tevê, jornal e portais de internet unificados nas mãos de um único proprietário seja mesmo o Brasil. É possível que seja uma característica temporária, não pela dissolução dos monopólios midiáticos, mas pelo fim da democracia, que desde o impeachment apoiado e estimulado pela grande mídia, anda mesmo por um fio.


terça-feira, 14 de março de 2017

No fim do túnel (Al final del túnel)

Neste thriller o diretor Rodrigo Grande utiliza alguns recursos clássicos de narrativa, porém sem deixar que com isso seu trabalho fique previsível. O enredo se desenvolve em ambientes fechados, muitas vezes claustrofóbicos e a restrição de movimentos parece contribuir para que o fôlego siga a mesma opressão das situações tensas envolvendo as personagens.

O protagonista é Joaquín (Leonardo Sbaraglia), um cadeirante que vive sozinho em uma grande casa, onde trabalha consertando computadores no porão, com um elevador tem acesso ao térreo em que ficam seus aposentos e resolve anunciar um quarto para alugar no terraço, já que o único acesso é por uma escada.

Todo seu sossego, que até então parecia excessivo, é quebrado quando o quarto é alugado por Berta (Clara Lago) e sua filha de seis anos. O interesse da moça pelo quarto é tão grande que chega a ser suspeito e sua personalidade explosiva e extrovertida retira definitivamente Joaquín de sua tranquilidade, com o personagem se refugiando no porão para um pouco de paz.

É no silêncio, em companhia de seus inseparáveis cigarros, que o protagonista resolve analisar com mais cuidado os barulhos estranhos vindo da casa ao lado. Para sua surpresa trata-se de uma quadrilha cavando um túnel, que passará por baixo de sua casa até o cofre do banco ao lado. Para seu estarrecimento Berta é namorada do líder da quadrilha e seu desespero para alugar o quarto era uma necessidade de vigiá-lo e ter a certeza de que ele não seria um empecilho ao roubo.

A partir dessa descoberta o filme começa a surpreender e a prender cada vez mais a atenção. Joaquín poderia simplesmente fazer uma denúncia anônima, que acabaria com qualquer risco e o levaria de volta a sua vida pacata, porém ele é um personagem que unifica os conceitos de herói e anti-herói.

Desde o romantismo estamos habituados com a valentia de homens com moral ilibada, que no enredo em questão não só impediriam o roubo ao banco como livrariam a bela moça do bandido. O protagonista do filme já quebra esse estereótipo com sua limitação física, que não impede mas dificulta suas ações. Além disso, não há um dever moral em sua tentativa de intervir no roubo, pois sua intenção é utilizar as informações obtidas através da espionagem para tirar proveito do trabalho duro executado pelos bandidos.

Parece não ser somente a recompensa financeira que motiva Joaquín, mas principalmente a possibilidade de, mesmo na condição de cadeirante, participar de alguma ação grande e complexa, que exige sua astúcia e inteligência para driblar as dificuldades de locomoção.

Elementos bastante sutis ao longo do filme sugerem também que a presença da mãe com a filha pequena remete o personagem a sua própria família, cuja perda provavelmente está ligada à sua deficiência. Neste sentido sua atuação nos remete mais diretamente ao herói romântico, que sonha em se aproximar de Berta como certa continuação de sua vida pré-cadeirante.

Todo o plano complexo de um túnel que termina no piso do cofre do banco nos faz lembrar de crimes históricos, frequentemente retratados no cinema, o que dá grandiosidade à trama. Os ambientes fechados e opressivos não tiram dinamismo da história e o destaque fica para a necessidade do intelecto para atuar de forma precisa no verdadeiro jogo de nervos que se forma.

O diretor trabalha muito bem a ideia da sofisticação de um crime, que o torna muito maior do que uma simples contravenção a ser combatida e punida. É o gênero policial que mostra a estratégia aliada à brutalidade, capaz de articular detalhes minuciosos de um roubo a banco com punições severas ao que for considerado uma traição por seu mentor.

Entre muitos filmes argentinos que ganham destaque pelo engajamento político e abordagem eficiente de causas sociais, ‘No fim do túnel’ mostra que a qualidade também pode vir de ficções que trazem questões políticas de forma muito mais reticente.

Um filme muito mais voltado ao entretenimento, mas que nem por isso deixa de lado a tradição de boas produções cinematográficas. Retratar uma contravenção fazendo com que esta seja quase uma obra de arte, misturando papéis de herói e vilão para mostrar que os melhores personagens também têm interesses pessoais e não estão isentos de uma crítica moral não é uma tarefa fácil, mas quando bem executada oferece ótimo resultado.


terça-feira, 7 de março de 2017

Eu, Daniel Blake (I, Daniel Blake)

O que me levou a esse filme foi ouvir o psicanalista Contardo Calligaris dizendo que é uma obra que explica o Brexit. Claro que não era essa a intenção do diretor Ken Loach, mas os problemas retratados oferecem uma justificativa bastante plausível para que a população mais velha do Reino Unido tenha tido peso fundamental na escolha pela saída da União Europeia.

Quem simboliza a frustração que deu origem à mudança é o protagonista Daniel Blake (Dave Johns). Passando por um período difícil de sua vida, tendo sofrido um ataque cardíaco pouco tempo depois de sua esposa falecer, Daniel é aconselhado pelo cardiologista a não voltar a trabalhar. Com isso ele passa a simplesmente buscar seus direitos.

Para melhor compreensão do que sente o personagem, vale a empatia de nos imaginarmos com uma idade avançada, sem filhos, com a perda recente da esposa, com a saúde fragilizada e agora incapaz de exercer a profissão de carpinteiro, que o sustentou ao longo da vida. O que sobra?

O ideal é que sobrasse ao menos a certeza de que as leis trabalhistas conquistadas com muita luta assegurassem uma previdência que garantisse uma vida digna, depois de tanto tempo de contribuição. Na prática o que Daniel encontra é um sistema burocrático e engessado, que trata todos os trabalhadores como peças de uma produção em série.

Com suas particularidades ignoradas, o protagonista deve seguir um rito padrão, que inclui responder imensos questionários de pouca serventia prática, feito por pessoas que mais parecem robôs programados para agir sempre da mesma maneira, ignorando imprevistos e incapazes de improvisar uma solução mais eficiente.

Em uma das peregrinações pelas instituições às quais tinha que relegar seu futuro – já que não podia trabalhar e não conseguia receber seus direitos previdenciários – Daniel acaba encontrando Katie (Hayley Squires), que enfrenta problemas com origens distintas, mas semelhantes pelo fato de convergirem para uma situação angustiante, da qual a personagem parece não conseguir escapar.

Mãe solteira de duas crianças, o fato de serem de dois pais distintos não gera nenhum problema direto, além da indicação sutil e intencional dos preconceitos que tudo isso pode suscitar. Katie acabou de chegar na cidade, justamente em busca de uma vida melhor, porém sem ter com quem deixar as crianças para poder trabalhar e sem nenhuma renda, sequer para as necessidades mais básicas.

Talvez pela afinidade criada pelas dificuldades burocráticas, a relação que se desenvolve entre os personagens é paternal, com Daniel cuidando das crianças como um avô dedicado, que fabrica presentes e consegue arrancar das crianças sorrisos que aparentemente só a idade nos ensina a obter.

Em pouco tempo a impressão que a vida dos personagens passa é a de que tudo poderia ser muito bom, não fosse a burocracia estatal impondo seus entraves a ponto de deixar Katie completamente sem alternativas. É como se a personagem fosse obrigada a se sujeitar a humilhações que não toleraria sem a pressão de uma vida digna aos filhos.

Por não ter mais nada a perder e levado à extrema exaustão psicológica diante de tantas dificuldades, Daniel se recusa a continuar tentando se encaixar em um sistema com o qual não se identifica e acaba tomando atitudes que a princípio seriam rechaçadas pela população, mas que pela percepção dos serviços estatais burocráticos generalizados, acabam apoiando simbolicamente o personagem.

Claro que a questão do Brexit é extremamente complexa para que seja resolvida em um filme que sequer tem essa pretensão, entretanto a saída do Reino Unido da União Europeia foi amplamente veiculada na mídia brasileira como uma tragédia, que a maioria da população aceitou sem saber ao certo do que se tratava.

O filme de Ken Loach mostra um lado pouco retratado, embora muito vivenciado – não só no Reino Unido. A empatia com as dificuldades dos personagens também deve ser olhada com o devido cuidado. Um estado desnecessariamente burocrático deixa qualquer um indignado, o que não significa que devemos aderir ao primeiro discurso populista que ofereça uma solução aparentemente fácil.

Boa parte dos fatos históricos que moldaram a sociedade contemporânea tiveram início na Inglaterra de Daniel Blake, inclusive a revolução industrial, as primeiras leis trabalhistas e boa parte da seguridade social. Todos são processos históricos que levaram muitos anos para serem concretizados. Acreditar que os problemas atuais – que existem e devem ser combatidos – serão resolvidos com um discurso nacionalista e radical é inocência por parte dos eleitores e má fé por parte daqueles que visam o poder.


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