terça-feira, 19 de janeiro de 2016

Carol

O filme do diretor Todd Haynes acabou ganhando como referência a história de amor entre duas mulheres. De fato, fosse um casal heterossexual o enredo não seria tão interessante e talvez sua filmagem nem tivesse sentido. Ainda assim, Carol traz mais do que um romance entre duas mulheres.

Filmado no passado, por volta dos anos 50, vemos o quanto alguns preconceitos seguem extremamente atuais, sendo que já deveriam ter sido superados há muito tempo. Intolerâncias que já deveriam ter sido historicamente sepultadas, sobretudo após eventos sociais importantes ocorridos na segunda metade do século passado, seguem atormentando indivíduos em suas esferas privadas.

À parte disso, os sentimentos expostos são muito mais compreensíveis. A protagonista Carol Aird (Cate Blanchett) está em meio a um divórcio não muito amistoso, no qual Harge (Kyle Chandler), legalmente seu marido, utiliza a guarda da filha como chantagem para manter o relacionamento.

Por acaso ela encontra com Therese Belivet (Rooney Mara), que tem um trabalho extremamente desagradável como balconista de loja e parece buscar alguma justificativa para uma guinada na vida.

Em ambos os casos nada impede que cada uma encontre na própria vida, de forma independente, novas motivações e caminhos a serem traçados, de forma a superar dificuldades passadas e tornar a vida mais interessante. Porém as duas estão em um período extremamente propício para que um novo relacionamento, intenso e revelador, auxilie as personagens nesse início de uma nova fase, que pode ser bem complexo.

O passado do filme poderia ser muito mais remoto se quisesse demonstrar a quanto tempo temos tido um cotidiano repetitivo e entediante. Nos acostumamos desde pequenos a acordar cedo e ir para a escola, depois para o trabalho, voltar para casa no fim da tarde e esperar pelo fim do dia. Até hoje as mulheres lutam por uma causa que ganhou força na época do filme, a de deixar claro que não existem para viver em prol do marido – por mais insano que possa parecer, muita gente ainda tem esse pensamento.

Essa rotina massacrante da qual conseguimos pequenas fugas reduz o potencial do ser humano. Uma das características que nos diferencia dos outros animais é a capacidade de escolha, de diversidade, de um aspecto múltiplo da vida. Não somos como bichos que acordam e passam o dia de forma instintiva – ou apertando parafusos, para voltar aos tempos modernos.

Tudo isso quer dizer que não há nada que obrigue Therese a seguir em seu emprego entediante, tão pouco que a faça aguentar o namorado e suas pressões. Ela poderia se arrepender de deixar tudo para trás e iniciar uma viagem com Carol, assim como o namorado disse que aconteceria, porém sem os riscos poucas coisas interessantes aconteceriam na vida de qualquer um. Só para o rapaz não é evidente o fato de que casar-se com ele não seria nenhuma garantia de acerto para Therese.

Carol é uma personagem mais complexa. Não tem a imaturidade de Therese e tem uma filha, que torna seu vínculo com Harge muito mais forte, além da pressão social mais intensa sobre uma mulher madura que, aos olhares mais tradicionais, teria passado da idade de aventuras. 

É possível pensar que o foco do filme não seja o machismo, pois ainda que esteja inevitavelmente presente por algumas atitudes de Harge, tentando principalmente subjugar a esposa às suas ordens, o que parece mais evidente no desenrolar da história é a reação imatura diante de um processo de separação, que pode estar presente em ambos os lados da relação, ainda que seja intensificada e geralmente agravada pelo machismo.

O curioso é que a mesma liberdade experimentada pelas duas personagens poderia ser igualmente posta em prática por Harge, que ao invés de mobilizar todo o aparato jurídico para tentar chantagear uma reaproximação, poderia chegar à conclusão um tanto elementar de que ter alguém ao nosso lado só é válido quando essa relação traz benefícios para ambos.

A eternidade do amor não se dá por nada além dos momentos agradáveis que foram compartilhados. Ainda que não exista nenhuma informação sobre o início do casamento de Carol, é bem provável que ela tenha vivido momentos marcantes com Harge, assim como os pequenos detalhes encantadores que agora são compartilhados com Therese. O que resta ao ex-marido é não fazer com que as boas lembranças se tornem arrependimentos.

Muito mais que a história de um casal homossexual, Carol é uma história de amor que tem muito a nos ensinar, já que a caracterização de tempo pretérito se dá muito mais pela fotografia do que pelos sentimentos retratados.


terça-feira, 12 de janeiro de 2016

O vendedor de passados

Costumamos pensar no passado como algo distinto de nós. Algo que aconteceu a parte de nossa existência, o que daria margem para correções de fatos que supostamente poderiam manchar nossa imagem. É nessa linha que se desenvolve o longa do diretor Lula Buarque de Hollanda, adaptado do romance homônimo do angolano José Eduardo Agualusa.

O protagonista Vicente (Lázaro Ramos) cria um passado para as pessoas, reunindo fotos, vídeos, áudios – verdadeiros ou não – para que determinada característica seja ressaltada ou fatos sejam omitidos. Esta ilusão vem da esperança de que nossos problemas sejam externos, apenas um detalhe que aconteceu ocasionalmente, portanto podem ser omitidos, senão criados, para que nosso verdadeiro eu não seja prejudicado por isso.

Só não podemos esquecer que o que somos hoje não é mais que o resultado de fatos ocorridos no que chamamos de passado. Somos indissociáveis de tudo o que nos aconteceu. Assim, de pouco adianta criar ou remover alguns fatos, pois os traços reais moldam nossa personalidade, por vezes de forma inalterável.

Histórias baseadas em fatos passados quase sempre estão envoltas em mistério, que aqui aparece com a distinta personagem vivida por Alinne Moraes. Ela procura Vicente à procura de um novo passado, porém se recusa a fornecer qualquer tipo de material sobre sua vida. Quer uma história completamente nova, com apenas uma exigência, a de ter cometido um crime.

A vida moderna, em certa medida, nos cobra um passado hegemônico. Se por um lado cada história de vida é única, por outro somos cobrados por cumprir os estudos dentro de determinada faixa etária, entrar no mercado de trabalho, aprender um idioma, entrar na faculdade, etc. Tudo que corresponda às expectativas de nosso campo de possibilidades.

Não cumprir determinada demanda ou, pior, cometer algo que não se espera – como um crime – é algo que muitos gostariam de mudar para evitar problemas. Querer inserir um crime fictício em seu passado é algo difícil de compreender. Porém, Vicente vive garimpando objetos antigos, cada um com seu passado, e sabe que as pessoas não têm uma história, mas versões da mesma história, distintas de acordo com quem a recorda.

Há quem acredite que o ideal é mantermos uma vida sem mistérios, a personagem sem passado do filme prefere que a vida seja propriamente um mistério, o que a torna muito mais atraente e sedutora.

Somos tão condicionados a cumprir as rotinas sociais que quando conhecemos alguém que fuja do padrão não procuramos compreender suas causas ou aceitar de imediato seus motivos. Uma pessoa que escolha mudar radicalmente de carreira depois dos trinta anos dificilmente conseguirá um estágio, sem o qual terá suas possibilidades profissionais restritas.

Em um mundo corporativo a exigência é que as escolhas profissionais sejam feitas ainda na adolescência, quando muitos sequer imaginam o que querem fazer da vida. Porém o que chama mais a atenção é essa exigência se estender para relacionamentos não corporativos. Daí vem a necessidade da maioria dos personagens de comprar um passado. A ideia é tentar omitir uma particularidade indesejada.

Do lado oposto, o que mais atrai na personagem que não passa sequer um número de telefone ao vendedor de passados não é o inusitado de sua atitude, mas o mistério que instiga a querer saber mais, a conhecer e desvendar os detalhes com base em pequenas nuances.

Não há nada de errado em preferir pessoas ditas transparentes, ainda que essa transparência soe falsa na maioria das vezes, mas a ideia que fica do filme é que somos seres complexos, múltiplos e versáteis. Esperar que uma pessoa apresente uma autobiografia revelando todos os fatos já vividos e os projetos futuros é mais que uma ilusão, chega a ser um conformismo com a mediocridade da rotina.

Sem detalhar muito a história do filme para não frustrar nenhuma surpresa, em meio à trama é citada a ditadura militar argentina. Uma alegoria muito interessante para um filme que questiona a veracidade do passado. Em todos os países sul-americanos que viveram sob ditaduras militares, existem diversas versões sobre os motivos que levaram a ruptura democrática, quem foram os apoiadores e financiadores dos golpes, quantos civis foram torturados e mortos, etc.

O passado, tanto em um nível micro, como a da personagem do filme, quanto em um nível macro, como um longo período da história de um país, é formado por versões e reconstruído a cada narrativa. Em uma das frases marcantes do filme, a personagem misteriosa afirma: “você acredita em tudo o que te dizem”. Algumas pessoas, sim.


terça-feira, 5 de janeiro de 2016

Labirinto de Mentiras (Im Labyrinth des Schweigens)

Em 1945, com a morte de Hitler, a guerra estava encerrada na Europa – ainda duraria mais alguns meses até a rendição japonesa e o término oficial. Na Alemanha, mais do que a reconstrução física foi necessária uma reestruturação política e ainda que Hitler tenha preferido o suicídio à rendição, a sociedade alemã ainda tinha vários membros do partido nazista que cometeram atrocidades durante o holocausto.

O longa do diretor Giulio Ricciarelli não aborda diretamente esse período, mas sim os resquícios dos julgamentos, mais de uma década após o fim da guerra. Aparentemente tudo estava resolvido, a ordem política reestabelecida e os responsáveis pelo genocídio devidamente punidos. Ainda que dividida pela Guerra Fria, a Alemanha parecia ter sepultado o terceiro Reich.

É através do procurador Johann Radmann (Alexander Fehling) que o filme mescla fatos históricos com um pouco de ficção para demonstrar que os bastidores do holocausto esconderam muitos segredos. Johann só queria cumprir seu dever, mas ao investigar pessoas envolvidas com os massacres do exército nazista percebeu logo que ainda havia muita sujeira escondida e que não seria nada fácil terminar esta limpeza.

A vontade de fazer justiça não era uma unanimidade e muitos viam nos assassinos de Auschwitz heróis de guerra, que estavam cumprindo ordens e fazendo o melhor pelo país. Infelizmente governos totalitários deixam seus seguidores, que por ignorância ou comprometimento fazem de tudo para justificar o inimaginável.

Um dos argumentos utilizados na tentativa de dissuadir o procurador é que os jovens passariam a questionar se seus pais foram assassinos. Parece evidente que aqueles que não cometeram crimes não teriam nada a temer, entretanto fica implícito neste argumento que os nazistas que de alguma forma auxiliaram na tentativa de extermínio de judeus e outras minorias deveriam, aos olhos de seus defensores, seguir impunes. A pretensa tentativa de não macular a moral paterna oculta o desejo de que o antissemitismo nazista fosse perpetuado de pai para filho.

Entre os investigados por Johann estava o médico Josef Mengele, que ficou conhecido por, após praticar experiências horripilantes nos campos de concentração, fugir para a Argentina, mudando depois para o Brasil, onde viveu em plena liberdade até o fim de sua vida.

Curioso Mengele acabar encontrando refúgio no Brasil. Formalmente o país lutou contra os nazistas, porém sua estadia foi no período de ditadura militar, em que civis eram presos, torturados e frequentemente assassinados pelo estado. Ainda que não tenhamos chegado ao extremo nazista, Mengele deve ter se sentido bem próximo de sua terra natal, com agentes do governo tendo carta branca para eliminar quem o Estado considerasse inimigo.

Morto antes do fim da ditadura, o médico provavelmente estaria em êxtase se vivesse hoje, afinal, além do Brasil não ter punido nenhum militar pelos crimes cometidos ao longo dos 21 anos de ditadura, ainda conta com uma parcela da população pedindo a volta do totalitarismo.

A história nos mostra continuamente que tentar ocultar crimes cometidos pelo estado não faz com que o passado seja esquecido e superado. Resquícios da ideologia que motivou os crimes ficam apenas latentes, prontos para voltar à tona assim que o impacto provocado pelo desmascaramento perder força.

Neste mesmo ano de lançamento do filme de Ricciarelli o livro Minha Luta, escrito por Hitler no período entre guerras, entrou em domínio público. A discussão na Alemanha é se vale a pena reeditá-lo, já que chegou a ser proibido após a Guerra. A única coisa que o livro faz é mostrar o quanto a ideologia do tutor do nazismo é insustentável.

Se o discurso de ódio aos judeus e a pretensão de fazer parte de uma raça pura já não fazia sentido na primeira metade do século passado, hoje, com os avanços da genética, é possível provar cientificamente que as suposições insanas de Hitler de uma raça superior às outras estão erradas, até porque a espécie humana não pode ser subdividida em raças.

Mais eficiente que proibir um livro ou tentar ocultar fatos amplamente documentados é a exposição e diálogo entre as várias gerações que sucederam a guerra. Fingir que nada aconteceu ou que tudo está superado só fortalece aqueles que por falta de conhecimento ou influências tendenciosas acreditam que a volta de um estado assassino é a solução para algum tipo de problema. Uma insanidade em qualquer lado do Atlântico.



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