terça-feira, 27 de setembro de 2011

Hesher

A influência da banda Metallica no filme do diretor Spencer Susser pode ser notada de forma imediata pelas letras que consagraram o logotipo da banda e foram usadas também para o nome do filme. Além disso, várias músicas da banda, que foi uma das precursoras do thrash metal, formam a trilha sonora do filme, o que é raro, já que os integrantes do Metallica não costumam autorizar o uso de suas músicas. O que faz deste filme uma exceção é que o personagem Hesher (Joseph Gordon-Levitt) foi inspirado em Cliff Burton, o genial baixista que morreu em um acidente com o ônibus da banda em 1986, e a encenação realmente lembra o músico.

O roteiro transita entre drama e comédia para mostrar o inusitado encontro do pequeno TJ (Devin Brochu), que acabou de perder a mãe, com Hesher, que entra na vida do garoto por acaso e se recusa a deixá-lo em paz – quase como um Bartleby, de Herman Melville – mas apesar de não se encaixar na realidade na qual se encontra, assim como o personagem da literatura, Hesher não se aquieta e reage, ora com violência, ora com discursos recheados de metáforas vulgares, portanto cômicas, para ilustrar situações sérias.

Com o desenrolar das histórias dos dois personagens é possível notar certa relação entre o estilo de vida de ambos, sendo que a forma com que Hesher trata TJ, muitas vezes parecendo mais com desdém do que com amizade, indica a forma com que provavelmente foi tratado e se habituou, ou seja, sempre sozinho, sem poder contar com outras pessoas e com uma necessidade latente de encarar as dificuldades da vida. Sem escrúpulos Hesher parece ter a personalidade imbatível, sendo que não há situação ruim que um pouco de adrenalina não resolva – e quem acompanhou alguns relatos sobre a cena trash metal do início dos anos 80 sabe como costumavam ficar os camarins das bandas, formadas por jovens como o personagem.

Um indivíduo como Hesher não passa a agir de forma agressiva sem motivos e o filme de Susser é uma proposta interessante para ver dois períodos da vida de um estereótipo em momentos diferentes, pois uma das interpretações possíveis é que TJ é um Hesher em formação. Em um extremo o garoto acabou de perder a mãe e como se isso já não fosse bem difícil ainda tem que lidar com a hostilidade na escola, as atitudes patéticas de seu pai (Rainn Wilson), que de todas as maneiras de lidar com a súbita perda da esposa, parece escolher sempre as piores, e o amor platônico que cria por Nicole (Natalie Portman), sendo que a atração de TJ pela moça pode ser explicada muito mais por uma espécie de Édipo, com o garoto vendo na moça que o defendeu a figura da mãe que ele teve que abandonar, mais do que propriamente uma atração pelo feminino.

Em meio a todas essas dificuldades o outro extremo é Hesher, que pela convivência acaba servindo de modelo para o garoto. A forma rude de resolver os problemas e os discursos, nos quais a discrepância entre forma e conteúdo pode desagradar a quem assiste, passam a influenciar TJ em suas atitudes. O garoto também é forçado por Hesher a enfrentar seus medos e sua timidez, como talvez o controverso personagem também tenha sido forçado. Indiretamente TJ é instruído a valorizar sua família e isso indica que Hesher dá valor ao que não teve, sobretudo com os divertidos diálogos entre o cabeludo, coberto com tatuagens caseiras bem toscas, e a avó de TJ. Em mais uma referência a Cliff Burton, o diretor coloca a música Anesthesia, em off, tocada por Hesher. Poucos além do lendário baixista poderiam compor um solo tão elaborado ainda no começo da carreira, o que aproxima o personagem do músico e é mais uma obra do Metallica com a qual TJ entra em contato.

Longe de ser uma obra prima do cinema, Hesher tem o mérito de trazer para as telas um protagonista cujo estilo de vida é muitas vezes até marginalizado, porém muito comum desde o início dos anos 80. Sem dúvida muitos se identificarão com o bom humor incompreendido, as insanidades e o lado obscuro do personagem, que não se encaixa em um mundo no qual realmente não vale a pena se encaixar. A maneira informal de Hesher é desprezada pelo que geralmente é formal e no mínimo risível, como as atitudes do pai de TJ diante dos problemas.

Difícil dizer se o jovem se tornará mais um Hesher quando crescer um pouco, mas se por um lado explosões de violência não são o melhor exemplo para o menino, por outro ele teve uma forte referência de vida intensa e de uma personalidade que não se resigna aos problemas, enfrentando todos ao invés de baixar a cabeça. Na atual época do “politicamente correto”, na qual parece haver uma obsessão por afastar as crianças do que seria ruim Hesher nos mostra que a essência dos problemas é mais complexa do que a dicotomia entre certo e errado.


terça-feira, 20 de setembro de 2011

Um Conto Chinês (Un Cuento Chino)

Se no filme Além da Estrada vemos dois jovens dando uma chance para as oportunidades da vida, esforçando-se para transformar tudo em benefícios, nesta deliciosa comédia do diretor Sebastián Borensztein vemos o protagonista Roberto (Ricardo Darín) como um solitário de meia idade, rabugento, mal humorado e repleto de manias, que de tão insólitas e repetitivas ficam extremamente divertidas nas telas.

É óbvio que mesmo que tentemos guiar nossas vidas com rédeas curtas, pensando meticulosamente em cada detalhe do cotidiano, uma série de imprevistos irão aparecer. Se não formos até a montanha (de percalços) ela virá até nós. A construção do personagem de Roberto é coerente ao cercar os cenários com antiguidades e lembranças antigas, afinal é recente a ideia de aproveitar os imprevistos da vida. Hoje, para muitos, chega a soar estranho – tanto que o resultado é cômico – tanta meticulosidade e a tentativa tão desesperada de controlar o destino.

Se voltarmos à Idade Média veremos que a sociedade não tinha alternativa à rotina do cotidiano, tendo cada classe suas atividades pré-definidas quase pela vida toda. Em período bem mais recente, há poucas décadas, ainda que houvesse maior mobilidade social e diferentes caminhos a serem seguidos pelos indivíduos, o mais comum era um casamento arranjado, quase ao mesmo tempo em que se encontrava um emprego no qual havia possibilidade de permanecer ao longo de toda a vida. A cruzada moderna não tem cunho religioso, mas é, sobretudo nas grandes cidades, contra a rotina e a falta de grandes acontecimentos no dia-a-dia. Contra esse sentimento de urgência pelo novo não faltam focos de resistência, como Roberto.

O que desconstrói a rigidez do personagem é a súbita presença do chinês Jun (Ignacio Huang), que sem falar uma palavra de espanhol entra na vida de Roberto e obriga uma considerável mudança de hábitos, sobretudo para quem é tão metódico. O convívio forçado de dois personagens tão distintos abre espaço para duas perspectivas interessantes.

Primeiro notamos a necessidade da comunicação sem palavras. Em meio à ansiedade crescente da modernidade, com telefone, televisão, rádio, internet e inúmeras outras formas de informação que nos bombardeiam, tornando tudo urgente e imediato para que o tempo de mais informações não seja perdido, acaba não sobrando atenção para tudo que fuja da palavra em qualquer uma de suas formas. De repente a fala não se torna desnecessária, mas inútil devido aos idiomas tão distintos e o único caminho é tentar algum tipo de contato através de cada detalhe que costuma passar despercebido. Gestos, olhares, expressões, silêncio e tudo o que em tese pode substituir palavras, mas que costuma nos colocar em pânico pela falta de hábito de usá-los sem poder dizer nada para auxiliar o contato, deve ser usado amplamente nas ‘conversas’ entre Roberto e Jun.

Outro detalhe curioso é a ambiguidade do comportamento de Roberto, pois sendo tão solitário e mal-humorado poderíamos esperar que ele criasse oportunidades de se afastar de Jun e se livrar do problema que surgiu de repente em sua vida, porém ele não cria tais situações e ainda as evita. Na verdade a personalidade de Roberto foi formada aos poucos até chegar ao que vemos na tela, e ainda que a solidão seja um hábito e a meticulosidade cresça exponencialmente aos que se acostumam com a vida solitária, vemos Roberto tratando as pessoas que precisam de ajuda com muito apreço, provavelmente com o apreço que muitos lhe negaram, formando o indivíduo aparentemente em guerra contra o mundo, mas que na verdade apenas tenta evitar as hostilidades da vida. A incompreensão da maioria das pessoas em relação a essa personalidade acaba apenas reforçando o estereótipo que se cria ao redor do personagem, de alguém amargo, mas que no fundo só vive a vida em uma eterna defensiva.

Um conto chinês trabalha a comédia implícita nos fatos inusitados e mostra que é possível e muito produtivo a realização de filmes divertidos, mas com boas histórias, ao invés de roteiros vazios com piadas esparsas. Aos poucos nos encantamos com Roberto não apenas pela diversão que ele nos proporciona, mas pelas suas atitudes em relação à vida – e é claro que tudo fica mais fácil com a encenação de Ricardo Darín. Se chegamos ao fim do filme esperando pela reaproximação do personagem de um antigo amor é pela consciência de que uma companhia faria bem ao seu lado rabugento, e que é um desperdício seu lado atencioso viver sozinho.


terça-feira, 6 de setembro de 2011

Além da Estrada

O longa do diretor Charly Braun (não é nome artístico!) conta com roteiro simples, mas não simplista, e encanta com a beleza das paisagens uruguaias, além da simpatia de muitos personagens que aparecem ao longo da viagem que forma o road-movie. O encontro causal do argentino Santiago (Esteban Feune de Colombi) com a belga Juliette (Jill Mulleady) proporciona uma viagem envolvente, tanto pela estrada com percalços quanto pelo que há além da estrada, metafórica para o curso da vida dos personagens.

Em meio à ficção há depoimentos de moradores locais cuja espontaneidade dificilmente poderia ser encenada, e é mérito do diretor ter inserido esses trechos de forma muito natural na trama, misturando ficção e realidade sem cortes repentinos. Outra ferramenta que contribui para dar naturalidade à história é o enredo abstrato e incerto, assim como o futuro de quem põe o pé na estrada, sem saber muito bem o que virá pela frente.

A meta de Santiago é bastante clara, pois quer conhecer um terreno deixado pelos pais, falecidos, em Rocha. Já Juliette vem da Europa para tentar encontrar um antigo amor, com a esperança de uma vida melhor. A partir daí a estrada – da viagem e da vida – pode até ser bem traçada e planejada, mas conta com inúmeros e inevitáveis cruzamentos, a partir dos quais não se sabe muito bem o que pode acontecer. O que resta é encarar os imprevistos e tirar proveito deles da melhor forma possível.

A história do filme se desenrola à medida que os dois personagens principais se deparam com a necessidade de se desviar do que haviam planejado. É evidente que no cinema vemos personagens agindo sob direção e tomando atitudes que remetem a um roteiro, porém a forma com que o diretor apresenta o filme aproxima muito a ficção e a vida real. Desta forma o que faz os desvios de percurso serem bons ou ruins depende em grande parte da forma com que são encarados e trabalhados. Assim como na vida de qualquer um, pesa nas decisões dos personagens os conselhos de pessoas mais velhas, que tem a vantagem de poder contar com a maturidade, pois se é, felizmente, inevitável sermos surpreendidos por imprevistos, a maturidade nos ajuda a ter discernimento e nos afastar um pouco das piores escolhas – sempre tão atrativas quando queremos agradar.

Como o vínculo do casal de amigos é construído desde o início do filme, com o contato entre os dois sempre aumentando, algumas cenas em que eles estão separados podem soar um pouco estranhas e soltas. O interessante é que as cenas de estranhamento condizem com a denúncia de que o local pacato, hospitaleiro e extremamente atraente aos visitantes já é alvo da especulação imobiliária, com a elevação dos preços dos terrenos e cujo desdobramento, ainda que o filme não fale, é a inevitável descaracterização local. Tão estranho quanto o afastamento do casal, quando o afeto entre os dois é substituído por atitudes muito mais egoístas, é a ideia de descaracterização do vilarejo.

Sem uma grande trama, quase fundamental em filmes mais comerciais, o que nos prende aqui é a expectativa sobre o que haverá para além da estrada de cada personagem e como cada um vai lidar com os imprevistos que os lançam um contra o outro. A expectativa estimulada pelo filme é de que os dois fiquem juntos, pois a cumplicidade e ternura entre os dois, somadas às cenas gravadas com uma super-8, dão a impressão de um relicário de bons momentos. A dúvida é se ambos aproveitarão as boas chances que o acaso lhes proporciona, e essa dúvida nos vem por ser tão comum desperdiçarmos os acasos na vida real.

Lamentar que histórias como a de Santiago e Juliette só acontecem nos cinemas é frequente. De fato não é todo dia que temos a chance de viajar por lindas paisagens no interior do Uruguai, encontrar pessoas agradáveis e desfrutar bons momentos. Porém o filme não traz nada de extremamente cinematográfico, exibindo apenas um recorte do momento em que as estradas dos dois personagens se cruzam. Assim como torcemos para que eles deem uma chance um ao outro, também podemos olhar para além da estrada que seguimos. Por vezes, os atalhos e desvios podem oferecer grandes surpresas.


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