terça-feira, 28 de maio de 2013

A Caça (Jagten)

Neste longa o diretor dinamarquês Thomas Vinterberg traz um tema inquietante, abordado de forma perturbadora. Somos apresentados a uma pequena comunidade, na qual todos são muito amigos e unidos. Lucas (Mads Mikkelsen) trabalha em uma creche e é querido pelas crianças, muitas delas filhos de seus amigos.

Na vida raramente as coisas se resolvem sozinhas. Geralmente quando sentamos e cruzamos os braços as coisas boas não batem à nossa porta, nem as dificuldades são superadas de alguma forma com a qual não precisamos nos preocupar. Já com os problemas é bem diferente. Sem termos que fazer nada para isso, de repente nossa vida pode virar de cabeça para baixo, como acontece com a vida de Lucas.

Tudo corre normalmente até que a pequena Klara (Annika Wedderkopp), de apenas cinco anos, diz à diretora da creche que o professor havia lhe mostrado seu órgão genital. O fato não ocorreu, na verdade a menina estava apenas frustrada por ter sido repreendida e utilizou um conteúdo que ouviu do irmão mais velho. A partir disso, o desenrolar da história torna-se muito atrativa.

Assistimos à história no conforto do cinema, ou no sofá de casa, na qualidade de expectadores oniscientes que, por sabermos todos os fatos, temos toda a capacidade de discernir o que deve e o que não deve ser feito, mas para compreender melhor o papel de cada um no filme, são necessárias algumas abstrações.

Para a diretora da creche, a única prova é o relato confuso e por vezes incoerente de uma menina. O problema é que em casos reais de abusos, sobretudo em relação a uma vítima tão nova, os relatos são de fato confusos, imprecisos e as versões podem sofrer alterações involuntárias, sem que a vítima esteja mentindo. Trata-se apenas de um mecanismo de defesa, com o cérebro tentando esquecer um trauma. Era mesmo dever da profissional apurar o caso e tentar investigar o que aconteceu, não dá para dizer que ela estava errada ao fazer isso.

Theo (Thomas Bo Larsen) era um grande amigo de Lucas e também pai de Klara. Por um lado ele confia no amigo, com quem convive há anos e nunca foi motivo de suspeitas, por outro há o amor e confiança muitas vezes incondicionais dos pais para com os filhos, que chega a impedir a percepção de erros gritantes das crianças, que dirá neste caso tão confuso, no qual não há provas concretas. Por mais que haja confiança no amigo, não tem como não pairar sobre Theo a hipótese da acusação ser verdadeira.

Em relação à menina, há o consenso, falso, de que crianças não mentem. Podem não ter a malícia de articular mentiras para atingir uma grande meta, mas é notório que tentam por a culpa de seus erros em outras pessoas e fantasiam muitos episódios vividos. Não é uma questão de serem crianças boas ou más, e sim um comportamento recorrente, que nos põe em dúvida quanto ao que é realmente a verdade. Quantas vezes não acreditamos lembrar claramente de um fato cujo relato entra em conflito com o de outra pessoa? Ou acreditamos ter memorizado fielmente a cena de um filme e ao rever notamos estar inegavelmente equivocados? Portanto o que esperar da confusão estabelecida em Klara, com todos insistindo que o professor de quem ela tanto gostava havia feito coisas horríveis sem que ela possa corrigir?

O único que não passa pela angústia da dúvida é Lucas. Em compensação, sofre uma das piores sensações, de ser acusado com veemência de uma coisa terrível que não fez, não tendo como provar a própria inocência. Impossível saber quantas condenações fora do universo cinematográfico ocorreram nessas condições. Nos presídio há poucos réus confessos. A maioria afirma ter sido condenado por engano, a maioria mente ao afirmar isso, mas no meio de todas as mentiras, em celas ou corredores da morte, podem haver vários Lucas.

Temos a tendência de condenar no primeiro impacto. Somos implacáveis, por vezes até sanguinários e cruéis. A população retratada no filme estava à beira de um linchamento, vendo de fora temos condições de perceber a injustiça, mas dentro do problema, tudo fica mais nebuloso e complexo, principalmente em relação a uma hipótese de crime tão repulsivo como a pedofilia.

O tema desta obra de ficção é tão plausível que se assemelha muito ao documentário Na Captura dos Friedmans, do diretor Michael Moore. Nos deixa a reflexão, por um lado não há hipótese de sermos complacentes com a pedofilia ou outros tipos de crime, por outro devemos tomar muito cuidado ao estarmos convictos da aplicação de uma pena capital.


terça-feira, 21 de maio de 2013

O Abismo Prateado


Quando você me quiser rever 
Já vai me encontrar refeita, pode crer
Olhos nos olhos, quero ver o que você faz
Ao sentir que sem você eu passo bem demais

O diretor Karim Aïnouz se inspirou na canção “Olhos nos olhos”, de Chico Buarque, para mais um filme intimista e poético. Focado na interpretação de Alessandra Negrini para a protagonista Violeta, muitas vezes os personagens interagem utilizando várias formas de expressão, como olhares, gestos, expressões faciais, etc. relegando às palavras a função de preencher o que não pode ser dito de outra forma.

Seguindo a narrativa da canção, no filme vemos a atitude bastante covarde de Djalma (Otto Jr.), que para terminar o casamento com Violeta deixa apenas um recado no celular, deixando a casa, esposa e filho. Ninguém quer um casamento que caia na rotina, sem surpresas ou novidades, ao mesmo tempo em que ninguém quer esta rotina quebrada por um tsunami repentino e devastador.

Relacionamentos não são sentenças imutáveis. Foi, sem deixar saudades, o tempo que o divórcio era proibido por lei. Entretanto usar a desculpa de que é melhor sumir do que resolver as pendências em uma conversa adulta geralmente camufla as próprias inseguranças. Afirmamos que sumimos pensando em aliviar a dor do outro para não encararmos que em pouco tempo seremos apenas um passado superado.

Com esse plano de fundo, seguindo o ritmo da música, Violeta a princípio se vê perdida, sem referências, tentando se segurar em um passado que já não existe e forçar um futuro em conjunto com quem já não compartilhava as mesmas ambições. Em meio a esse período de transição inevitavelmente variável, cuja duração depende muito de cada pessoa, a protagonista tenta se livrar da angústia de várias formas.

Sair de casa (cada detalhe lembraria o, agora, ex-marido), tentar pegar um avião para um último encontro (doce ilusão que isso resolveria as coisas), ir para uma boate para beber e dançar (quem sabe um pouco de álcool e um pouco de endorfina não alivie o peso). Até que, já perto do amanhecer, Violeta chega à orla de Copacabana.

Não faz muito tempo tive a sorte de passar uma noite vagando pela charmosa zona sul carioca, vendo os primeiros raios de sol na princesinha do mar. Uma experiência quase mística, que dá uma sensação de alívio e renovação, como se a brisa que vem do mar trazendo o som calmo das ondas nos mostrasse um refúgio, um lugar tranquilo, a partir do qual pudéssemos recomeçar o que quer que seja.

É através da protagonista que o diretor lança um olhar de poeta sobre os fatos cotidianos, do início de tarde fatídico em que o recado no celular é ouvido, até o amanhecer do dia seguinte. Olhando com atenção para tudo que está em seu redor Violeta processa as informações e trabalha tudo dentro de seu novo cotidiano, utilizando o difícil e doloroso momento pelo qual está passando para poder traduzir toda a angústia em aprendizagem.

Não é um filme melodramático, que apela para o choro do espectador pelo sofrimento exagerado da heroína. A piedade é substituída pela força de passar por um período crítico, com a capacidade que todos têm – mas nem todos utilizam – de superar o que parecia o fim. No aparente abismo Violeta enxerga a luz através de pequenos detalhes que juntos formam seu novo cotidiano, sua nova forma de olhar para o mundo, que como já cantava Chico Buarque, pode se mostrar melhor que antes.

Uma das metáforas para a nova realidade da protagonista é exposta através do encontro com a pequena Gabriela Pereira e com Nassir (Thiago Martins). A dupla pode ser interpretada como o contato com uma realidade mais difícil, sobretudo quando comparada à vida da dentista, que mora na zona sul do Rio e apenas passa por uma separação, mas aqui também o ritmo do filme foge do óbvio e aprofunda a relação entre as partes.

Há uma troca de experiência entre os personagens que é benéfica para todos. Cada um com seus traumas e dificuldades, mostrando ao outro alternativas para a vida, sem a benevolência piegas de quem quer mostrar a emoção de forma vazia. Não fosse desta forma, estria justificada a atitude patética do ex-marido, de terminar tudo com uma fuga. Há formas mais interessantes de transformar o passado em lembranças que podem até ser boas, mas, além disso, constituem nosso presente – podendo nos tornar pessoas melhores se bem trabalhadas.



terça-feira, 7 de maio de 2013

Doméstica


O diretor Fernando Meirelles já havia filmado o longa Domésticas, abordando de forma ficcional e bem humorada o cotidiano dessas profissionais. Agora é Gabriel Mascaro quem dirige o documentário Doméstica, que mesmo abordando muitos pontos em comum com longa anterior – não teria como ser diferente já que o tema é o mesmo – ganha particularidades por contar com filmagens e entrevistas que não foram realizadas pelo diretor.

As câmeras foram entregues a sete jovens, que filmaram o cotidiano da casa, dando ênfase ao que considerassem relevante na relação da família com a empregada doméstica – ou empregado doméstico, em uma das casas. Sem controle sobre o que seria registrado, o diretor montou o filme a partir do material que recebeu, de forma que a maioria das críticas fica nas entrelinhas do filme. Não chegam a ser explícitas, pois se escondem em meio à naturalização da exploração do trabalho doméstico.

É bastante comum entre as famílias a confissão de que não conheciam certos aspectos das profissionais que cuidam do lar, nunca tinham parado para uma conversa na qual a doméstica falasse sobre a própria vida ou sequer tinham visto a realização de determinado serviço.

O enfoque geral das famílias é a tentativa mais comum de tentar suavizar a própria imagem afirmando que a empregada é como se fosse da família, porém as supostas provas para corroborar essa bobagem chegam a ser cômicas. Uma das famílias, judia, chama a empregada para participar de um ritual religioso junto à mesa. De fato é um interessante intercâmbio cultural, que faz com que a empregada aprenda novos costumes, mas será que ela teria liberdade de propor algum rito de sua religião na mesa, ou deve apenas seguir uma religião diferente da sua?

Pelo mesmo caminho uma das adolescentes deixa claro, e com muito orgulho, que a empregada é “praticamente da família”, tanto que se senta à mesa com eles para a refeição (como se isso fosse um grande favor). Porém esse membro da família dorme no quartinho dos fundos, separado da casa, e entre todos os integrantes da família a doméstica é sempre a responsável por preparar a refeição e lavar os pratos.

Chega a ser notável certa inocência na exploração que grita na tela o tempo todo. Quando a patroa se emociona ao falar do bebê da empregada, que novamente foi amparada “como se fosse uma filha”, não percebe que ela foi deixada sozinha no hospital para o parto, pois a patroa não pode ficar (maneira fria de tratar uma filha). A ideia aqui não é insinuar que a mulher deveria tratar a empregada efetivamente como filha, mas esconder-se atrás desse paradigma apenas atenua a relação de exploração.

E a naturalização de certos absurdos não se restringe às telas. Em uma pré-estreia com sala lotada, em São Paulo, a plateia gargalhava com uma cena: a empregada, uma negra bem acima do peso, faz verdadeiras acrobacias para passar pano embaixo do sofá (como pode ser conferido no trailer em 1:20), posteriormente a mesma é filmada dormindo ajoelhada sobre o sofá, arrancando risos da jovem patroa que está filmando e da plateia. Não é um riso inocente de uma cena cômica, mas um riso de alguém que sofre para satisfazer necessidades alheias, de alguém que trabalha à exaustão, chegando a dormir em uma posição extremamente desconfortável, tamanho o cansaço.

A crítica à forma como as empregadas são tratadas não propõe que a solução parta dos patrões, individualmente. É evidente que as domésticas devem ser bem tratadas, mas isso é o básico de uma sociedade que pretende ser civilizada. O fato é que a sociedade brasileira vem forçando a existência dessa relação de trabalho desde seus primórdios. Quando pensamos em trabalhadores de um escritório falamos em direitos trabalhistas, a Folha de São Paulo, ao noticiar a PEC 66/2012 em 27/03/2013 falou em “benefícios do empregado doméstico".

Há quem diga que a exploração não tem fundamento, já que nos últimos anos, com a economia aquecida, as empregadas estão cobrando cada vez mais caro, inviabilizando alguns serviços. De fato, ultimamente essas profissionais estão mais valorizadas, porém é uma condição totalmente vinculada à boa fase da economia, pois o pouco excedente de renda é aplicado em educação particular de baixa qualidade, planos de saúde de fachada, bens supérfluos como celulares de última geração e a estrutura de exploração continua, apenas seguindo caminhos paralelos.

Sem um sistema que tribute grandes fortunas para investir em serviços públicos de qualidade, a ascensão das classes baixas é momentânea e o sonho do oprimido é passar ao lado do opressor, como vimos no documentário, na casa de uma empregada que contrata uma doméstica para a própria casa.

Utilizando dois exemplos lúdicos, também do cinema, no filme Amor vemos o casal de idosos cuidando sozinhos da casa, mesmo com muito dinheiro são eles que preparam as refeições, arrumam a casa e fazem limpeza. Em Elles podemos ver Juliette Binoche interpretando uma profissional elegante e bem sucedida, que além de trabalhar fora ainda cuida da casa e cozinha para um marido patético e machista. Em contrapartida podemos pensar no filme de Gabriel Mascaro mostrando uma das famílias cuja empregada cresceu junto com a patroa, pois sua mãe era empregada da família. Depois de alguns anos os destinos de ambas voltaram a se cruzar, o traço em comum de uma foi seguir a profissão da mãe e da outra, que pode escolher qual caminho seguir, foi manter a exploração do trabalho doméstico.

É curioso notar que certas camadas sociais recorrem ao exemplo de países de primeiro mundo sempre que querem ratificar algum mau exemplo de nossa sociedade, mas fecham os olhos para tudo que seja voltado à equidade social.


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