terça-feira, 20 de maio de 2014

Abril Despedaçado

O livro ‘Abril Despedaçado’ foi escrito pelo antropólogo Ismail Kadaré, com a história de vinganças entre duas famílias desenvolvidas na Albânia. O cenário peculiar e a descrição detalhada do ambiente tornam o romance bastante regional, de forma que não faria sentido uma comparação direta com o filme.

Apesar disso, a estrutura da história não é exclusiva, tendo sido transposta com maestria pelo diretor Walter Salles, com o sertão nordestino servindo de plano de fundo. A ideia de comparar livro e filme nunca é exatamente viável, e nesse caso é ainda menos plausível, já que a intenção nunca foi realizar uma filmagem fiel à obra original.

A aridez do sertão, que reduz a vida ao trabalho duro com recompensa mínima, se encaixou muito bem à história de assassinatos em sequência, que se repetem há várias gerações entre duas famílias que disputam com sangue uma parte da propriedade.

Essa insensatez da disputa mortal com base no ódio pode parecer bárbara à primeira vista, entretanto conflitos familiares são historicamente retratados na literatura, as vinganças se encaixam em locais bem distintos – como a Albânia e o sertão – e para analisarmos a disputa, é indispensável considerarmos o contexto social em que ela acontece.

Nossa aversão ou tolerância à violência estão ligadas à forma como fomos socializados, e isso não se restringe à violência física. Desde nossa apatia diante de escândalos de corrupção que chocariam pessoas vindas de países bem menos corruptos, até os índices de homicídios que toleramos dependendo da classe social atingida, definimos nossos padrões com exemplos absorvidos desde a infância.

No filme a infância é representada pelo menino sem nome, batizado informalmente de Pacu (Ravi Ramos Lacerda, em atuação exemplar), que viu o irmão mais velho ser assassinado e Tonho (Rodrigo Santoro), o irmão do meio, vingar a morte, sendo, portanto o próximo da lista.

O contato cotidiano com a morte deve ser somado, como já mencionado, ao trabalho duro do sertanejo, que tem início logo na infância. A moenda da cana, auxiliada pelos gados sofridos, e o cozimento do caldo para a produção de rapadura exige o esforço de todos, que mal garante o sustento da família.

Por acaso passam pelo menino um casal de artistas de circo, de quem ele ganha um livro ilustrado. Sem saber ler o garoto fica maravilhado com as figuras e repassa mentalmente a história para não esquecer. Esse universo lúdico, tão elementar nas crianças, frequentemente é coibido até mesmo nas escolas, que dirá em um ambiente familiar tão bruto quanto o retratado no filme.

Com várias gerações seguindo a mesma rotina, sem estudos, sem cultura, com trabalho pesado e mal remunerado ao longo de toda a vida, é impossível olharmos para a sequência de vinganças com os mesmos valores que adquirimos em condições totalmente distintas.

É evidente que nada justifica a violência, porém sem nunca ter saído do trajeto entre a casa e a venda em que a produção de rapadura é negociada, é perfeitamente aceitável que os personagens não tenham outra referência, senão honrar o nome da família com o sangue do inimigo.

Muito mais absurda seria uma situação em que pessoas instruídas defendessem de alguma forma a violência e a vingança pessoal como forma de justiça. A violência injustificada das vinganças familiares ainda seguem regras e códigos bem específicos, já a barbárie urbana que temos acompanhado através de linchamentos também tem a base alicerçada na socialização, mas é muito menos compreensível.

Entre muitas cenas enigmáticas do filme, vemos um grupo de crianças em um vilarejo espancando um boneco, que provavelmente representa a tradicional malhação de Judas. Atualmente a igreja Católica tem uma postura oficialmente contra tal prática, mas durante séculos essa aparente brincadeira doutrinou gerações a serem tolerantes ao espancamento público.

Essa associação raramente é feita, pois isoladamente a brincadeira católica não chega a ter uma influência tão grande a ponto de incitar um espancamento, mas vemos ao longo do filme – e em nosso cotidiano – que os fatores que estimulam a violência são diversificados. Na soma geral, cada um tem sua contribuição.

A mesma associação subjetiva pode ser feita em relação ao estado, que poderia e deveria intervir tanto na disputa de terras que originou o conflito, afinal as terras deveriam ser demarcadas e registradas, quanto na matança originada pela reivindicação de terra. Mais cômodo aos governantes é deixar que os sertanejos permaneçam isolados, se matando, enquanto a indústria da seca enriquece alguns bolsos.


terça-feira, 13 de maio de 2014

Coisas belas e sujas (Dirty pretty things)

Todos nós temos um padrão interno para o que chamamos de justiça. Punir o que é errado costuma ser o reducionismo mais aceito, entretanto somos parciais e incoerentes, seja fazendo vista grossa a um ato censurável cometido por alguém próximo, seja tratando de forma distinta pessoas desconhecidas que cometem o mesmo delito.

Misturando noções de certo e errado, o diretor Stephen Frears conduz seu filme com imigrantes ilegais vivendo em Londres. Viver em uma cidade estrangeira sem o devido visto de permanência já é uma ilegalidade, mas o que se segue são pessoas tentando fazer o possível para sobreviver, sendo exploradas por cidadãos nativos igualmente criminosos, como vemos no filme.

Em um mundo tão globalizado, é um argumento muito raso dizer que os imigrantes ilegais simplesmente deveriam ter ficado em seus países de origem. Pensando na história da humanidade, todo desenvolvimento de nossa sociedade é baseado em migrações, voluntárias ou forçadas. Migrando, o homem chegou a América; primeiro com os indígenas que povoaram o continente, depois com os europeus, que exploraram todos os recursos – naturais e humanos.

Atualmente as rotas migratórias são muito diferentes. Sem a escravidão institucionalizada e com a facilidade de deslocamento, a rota contrária pode ser realizada. Ou seja, ao invés de europeus espalharem-se pelo mundo, africanos, sul-americanos e asiáticos podem tentar uma vida melhor em países com grande responsabilidade sobre a miséria em suas terras natais.

Ainda que os motivos que levem alguém a assumir os riscos de ser imigrante ilegal em um país mais desenvolvido sejam variados, as consequências são sempre parecidas. É o que vemos no filme com o nigeriano Okwe (Chiwetel Ejiofor) e com a turca Senay (Audrey Tautou).

Sem o visto, eles devem permanecer invisíveis na sociedade. Não podem reclamar seus direitos perante as autoridades, o que os torna alvos fáceis para aproveitadores. O fato de serem imigrantes ilegais não dá o direito de serem tratados de forma ilegal.

Um dos primeiros erros do senso comum ao abordar a questão dos imigrantes é alegar que eles roubam empregos da população local. Como vemos no filme e como tentamos fechar os olhos para não ver em nosso cotidiano, os imigrantes são empregados para funções rejeitadas pelos moradores locais, como os bolivianos escravizados em São Paulo, os haitianos recrutados para serviços braçais ou, em países europeus, brasileiros que trabalham fazendo faxina ou trabalhos similares.

No filme o caso é ainda mais grave. Com ambos trabalhando em um hotel, Okwe descobre por acaso que um dos funcionários – um inglês – lidera um esquema de tráfico de órgãos, sendo que muitas vezes os imigrantes tentam trocar um rim por um passaporte legalizado.

Realizada sem as menores condições cirúrgicas, a extração do órgão rende, na melhor das hipóteses, uma infecção gravíssima aos que sequer poderiam procurar um hospital. Isso leva ao extremo a ideia de que uma ilegalidade não justifica a outra. Tanto podemos interpretar a situação do filme como literal, pois em alguns países os imigrantes ilegais são submetidos a qualquer coisa, inclusive mutilação, quanto metafórica, pois em locais onde os imigrantes são mantidos como escravos, vale expressão popular de que para pagar a dívida seria necessário vender um rim.

Durante toda a trama vemos o quando a sociedade é bem mais complexa do que o maniqueísmo entre bem e mal pode indicar. O ápice desta complexidade evidentemente vem no final da história, sem detalhes aqui para não comprometer nenhuma surpresa, mas muito além do filme, vale a pena estendermos suas reflexões para nossa própria sociedade.

É cômodo adotarmos a postura conservadora de apoiar a expulsão dos imigrantes. Enquanto compramos roupas barateadas pela mão-de-obra escrava ou toleramos salários indignos para imigrantes absorvidos pela construção civil, fechamos os olhos para o fato de sermos, todos os brasileiros, frutos de um conjunto de imigrações ao longo da história do país.

Como em qualquer lugar do mundo, nossa xenofobia também é seletiva. Qualquer imigrante oriundo de um país rico que venha abrir uma loja ou restaurante por aqui será bem recebido, sem que ninguém questione sua idoneidade ou os motivos que o fizeram imigrar. Já quando a origem é um país pobre, como a recém onda de imigrantes vindos do Haiti, o pressuposto é de que se tratam de pessoas sem instrução, que nada teriam a acrescentar ao país. Uma visão preconceituosa, que diferente dos imigrantes, de fato não acrescenta nada a ninguém.


terça-feira, 6 de maio de 2014

O Físico (The Physician)

Historicamente as religiões costumam prestar grande desserviço à ciência, sendo a medicina um bom exemplo de como o avanço do conhecimento pode ser barrado por crenças religiosas. Enquanto antigos egípcios e gregos nos surpreendem com procedimentos complexos para suas épocas, o período da Idade Média, dominado pela igreja Católica, mostrou pouco avanço, e por vezes até certo retrocesso para o desenvolvimento de tratamentos médicos.

É esse desenvolvimento lento e trabalhoso que vemos no filme do diretor Philipp Stölzl. Adaptado do romance homônimo, que deveria ter sido traduzido como “O médico”, o protagonista Rob Cole (Tom Payne) não mede esforços para desvendar os mistérios da cura, desde que, ainda criança, viu sua mãe morrer com dor de barriga – uma simples apendicite, que na época era fatal.

A falta de conhecimento é a porta de entrada mais comum aos charlatões. Desde a época do filme, que começa no ano 1021, curandeiros já empurravam qualquer coisa às pessoas fragilizadas por alguma enfermidade. Algumas vezes esses remédios eram baseados em conhecimento empírico, com ervas medicinais passadas de geração para geração, outras vezes, como indica o filme, até urina de cavalo poderia ser vendida camuflada como remédio.

Com os estudos proibidos pela igreja Católica, o oriente muçulmano oferecia mais espaço para o desenvolvimento da medicina, lecionada por Ibn Sina (Ben Kingsley). Isso não quer dizer que a ciência poderia se desenvolver livremente. Católicos não eram aceitos, por isso Rob teve que se passar por judeu, e a inviolabilidade dos corpos proibia a dissecação de cadáveres.

A picuinha entre religiões nunca trouxe nada de bom para a sociedade e é curioso que alguns pontos em comum, como a inviolabilidade dos corpos, contribuem negativamente. Com o pretexto de que o corpo é sagrado os cientistas não poderiam estudar a partir de cadáveres, ainda que as igrejas tenham sido inúmeras vezes condescendentes com a produção de cadáveres em massa.

É inegável que a liberdade científica avançou muito no milênio que seguiu à época relatada. Casos de religiosos que se recusam a receber tratamento médico por este ser incoerente com a fé são raros, porém muitas pesquisas, sobretudo com células tronco, ainda são tolhidas por pessoas sem a menor qualificação técnica para opinar, retardando o avanço de uma técnica que promete ser menos invasiva e com resultados surpreendentes.

Se por um lado as três grandes religiões do mundo não detêm mais o conhecimento, laboratórios rivais guardam suas descobertas a sete chaves, protegendo a patente e bloqueando o progresso em prol do lucro que os futuros remédios trarão. Mudam as justificativas, mas o egoísmo milenar continua sobreposto ao conhecimento em prol da maioria.

Semelhante aos dias atuais, vemos grande mobilização diante de epidemias mais graves, como no caso da peste negra, que assombrou a humanidade por séculos. Com os empecilhos citados e o pouco conhecimento, é notável como se sobressai uma forma construtivista de aprendizagem – não só em relação à medicina, mas também na matemática, construindo um gráfico do número de mortos de forma clara e didática.

No filme é necessário que tudo aconteça de forma mais rápida e abreviada, portanto vemos o mestre Ibn Sina trabalhando em conjunto com seus discípulos para desvendar algum segredo sobre o mal que assola a cidade. Noções de infectologia que hoje são extremamente básicas e banais só são conhecidas por qualquer criança por um dia terem sido desenvolvidas na prática.

As primeiras medidas profiláticas devem ser tomadas com base no agente transmissor da doença em questão. Quanto à peste negra, descobrir que o contato com pessoas infectadas transmite a doença e que ratos carregam as pulgas transmissoras foi fundamental para barrar o avanço da doença, já que os antibióticos que hoje tratam os doentes com facilidade só seriam desenvolvidos séculos mais tarde.

Curioso que a medicina preventiva esteja na gênese desta ciência por, a princípio, não haver a alternativa da cura. Hoje é bastante óbvio o velho dito popular que é melhor prevenir do que remediar, pois ainda que muitas doenças tenham cura todos preferem não adoecer. Não obstante, ainda padecemos com muitas doenças cuja profilaxia seria simples; tão básica quanto o saneamento básico que não chega a uma porcentagem expressiva dos lares brasileiros.

O Físico, ou médico, não apenas mostra de forma didática alguns passos importantes da medicina que conhecemos hoje, como também dá algumas lições que com nova roupagem devem ser ensinadas, tanto para os que precisam prevenir doenças quanto para os que seguem barrando o avanço a ciência de uma forma ou de outra.


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