terça-feira, 29 de agosto de 2017

Neruda

A poesia de Pablo Neruda o levou a ser um expoente da literatura latino-americana. Esse filme do diretor Pablo Larraín mostra um pouco da vida política do escritor, levando ao questionamento se foi o lado poeta que influenciou o político ou vice-versa.

Muito antes do reconhecimento mundial através do prêmio Nobel de literatura, com que foi agraciado em 1971, Neruda foi senador no Chile na década de 1940. As ditaduras militares ainda não haviam sido instauradas e o poeta já tinha que lidar com a perseguição política. Este é o recorte de sua vida retratado no filme, interpretado por Luis Gnecco.

Pensando em um contexto mais amplo, a hegemonia geopolítica era disputada entre uma potência capitalista e outra, que ao menos no discurso, defendia o sistema comunista. A existência de um governo já descaracteriza a teoria comunista, mas ainda assim a disputa da guerra fria seguiu por algumas décadas.

A proximidade geográfica e cultural facilitou a influência dos EUA em toda a América Latina, plantando uma semente de ódio ao pretenso inimigo. O discurso dominante, imposto a qualquer preço, moldou um imaginário sobre comunismo que em nada se assemelha à ideologia marxista. Ao longo dos anos muitos internalizaram a ideia de combate ao inimigo, sem nunca ter chegado perto de um livro de Marx ou de seus estudiosos.

Na contramão dessa aversão ideológica, intelectuais e artistas buscam na essência de uma sociedade mais justa a inspiração e o material de suas obras. Entre personalidades renomadas da América Latina, Neruda se destacou por sua atuação política direta. Não se restringiu ao apoio a políticos, mas foi eleito para o senado e chegou a pleitear a presidência do Chile, abrindo mão da candidatura em nome de Salvador Allende.

Uma oposição crítica e engajada, que proponha alternativas muito melhores à população, é um pesadelo aos que governam colocando o capital acima do social. A saída costuma ser a perseguição política, que no filme fica a cargo do inspetor Óscar Peluchonneau (Gael García Bernal).

A necessidade de capturar Neruda diz muito sobre a necessidade de fabulação em torno da figura do suposto transgressor. Óscar não persegue o poeta real, mas a imagem criada de alguém perigoso que deve ser detido.

Não há nada de errado na fuga de Neruda. A premissa de que ‘quem não deve, não teme’ não condiz com as perseguições políticas, nem com os métodos nada constitucionais daqueles que, em nome da lei e da ordem, torturavam e aplicavam sanções ilegais. Mesmo antes de Pinochet tomar o poder através do golpe militar chileno, Neruda sabia da necessidade de buscar refúgio.

As armas do poeta são as palavras. Na tentativa de se defender sem abrir mão dos ideais políticos que o levaram à clandestinidade, não espalhava bombas ou armadilhas. Seu ataque era deixar um pequeno e silencioso livro, dedicado a Óscar, cuja curiosidade o levava à leitura.

Conhecer o suposto inimigo instiga reflexões e questionamentos. Tudo o que se busca aniquilar através da censura, para que o conteúdo real não desmonte o trabalho de criação do inimigo pelo desconhecido.

Em contrapartida, o que o Estado repressor tem a oferecer além da força desproporcional é um ataque à moral e aos costumes de uma vida boêmia, que não por acaso fica na esfera privada do indivíduo, não tendo influência em sua atuação política.

Atado à rígida hierarquia militar, Óscar deve somente cumprir seu dever sem questionar a legitimidade das ordens. Para ir além de um mero executor, busca através de sua caça o reconhecimento e talvez algo que o tire da mediocridade de um agente repressor. Uma fama que não tem condições de alcançar através do talento, a exemplo de Neruda.

Como se pode comprovar décadas mais tarde, com as ditaduras que assolaram tanto o Chile quanto os países vizinhos, a perseguição aos artistas acontecia por parte daqueles que alegavam visar a destruição do monstro intitulado comunismo, mas na prática pareciam buscar a censura de um estilo de vida.

Em um movimento histórico ondulatório, oscilando entre períodos de maior repressão e outros mais liberais, vemos o quanto valores morais conservadores se expressam de forma capilarizada na sociedade, censurando hábitos considerados promíscuos como uma maneira de manutenção de um sistema excludente.

A morte de Neruda, que aconteceu algumas décadas após os fatos do filme, segue envolta em mistérios. Muitos juram que o poeta foi assassinado pelos militares. É uma possibilidade que, mesmo se for falsa, revela a incompatibilidade de uma vida dedicada à arte contestadora, com um regime totalitário e repressor.


terça-feira, 22 de agosto de 2017

Comandante

Oliver Stone teve uma oportunidade rara. Entrevistar por cerca de trinta horas um dos mais icônicos personagens do século 20. Fidel Castro respondeu diretamente a todas as perguntas, sem assessores ou intermediários, somente com o auxílio da tradutora Eugenia Gobbato, que já trabalhava com o Comandante há décadas.

Ao longo de todo o filme é possível ouvir a voz da tradutora, às vezes se sobrepondo aos protagonistas. Talvez o diretor tenha buscado a confiança do conteúdo, com uma tradução simultânea que não deixa dúvida quanto ao que foi questionado e respondido.

Uma das preocupações de Stone é deixar claro que ofereceu a Fidel a possibilidade de vetar questões ou refilmar o que considerasse inadequado. Nada disso foi requisitado pelo cubano. Sempre sereno e bem humorado, quando ainda estava no comando da ilha, Fidel respondeu a tudo o que foi questionado de forma simples e direta. Aparentemente os longos discursos, marcantes na vida do Comandante, eram feitos mais com cunho político do que como uma forma natural de se expressar.

O trabalho do diretor não deve ter sido nada fácil. É uma vida repleta de fatos importantes que, após ser condensada nas horas de entrevistas, ainda deve ser resumida em pouco mais de uma hora e meia. Um documentário de entrevista não deve ser muito longo, sobretudo quando não há muitas externas nem variação de entrevistados, pois independente do tema, fica difícil prender a atenção de quem assiste.

Stone consegue compor um documentário fluído, que retrata pontos importantes da vida política do Comandante sem abrir mão de mostrar a vida do homem por trás do governante. O menor destaque à vida particular é compreensível por se tratar de uma figura com peso político internacional, além de que os hábitos de Fidel não ficavam muito distantes de sua atividade profissional. Seus estudos e reflexões costumavam tomar mais tempo que as distrações ou descanso.

Desde a Revolução Cubana, em 1959, o governo começou a investir no cinema, como uma forma de entreter e politizar a população. Inclusive os documentários cubanos são uma das marcas culturais do país, tendo revelado diversos diretores especializados no gênero.

É bem provável que a escolha de um diretor norte-americano, mesmo com profissionais hábeis dentro do próprio país, se justifique pela busca de uma isenção política. Nenhum documentário é plenamente imparcial, sobretudo ao abordar um assunto político e tão divergente quanto o governante cubano, mas um documentarista local seria inevitavelmente taxado de parcial ou até de um conchavo político.

O trabalho de um diretor vindo do país vizinho e inimigo histórico elimina a hipótese de ameaças ou chantagens políticas por parte de Fidel e, uma vantagem que ultrapassa a paranoia de um líder político supostamente onipotente, dá ao filme uma visão de fora da Ilha.

Mesmo que Oliver Stone tenha formado sua visão de Cuba com base no noticiário norte-americano, ou seja, com notícias voltadas à formação de um inimigo ideológico, seu trabalho como documentarista teve o viés de esclarecimento de fatos obscuros a quem está fora de Cuba, fazendo com que Fidel se apresente diretamente a estrangeiros através do documentário.

Ao abordar um tema tão controverso, que envolve opiniões passionais extremas, é inevitável que críticas sejam feitas por ambos os lados. Há quem diga que Stone foi complacente com Fidel e evitou temas polêmicos; outros apontam a omissão de aspectos positivos do governo cubano ao longo de mais de quarenta anos.

Parece que Oliver Stone apenas cumpre o papel de um entrevistador. Ao invés de demonizar Fidel para corroborar a versão norte-americana da história, ou glorificar a vida do Comandante cubano a partir de suas próprias palavras, o filme mostra um velho governante, com virtudes e defeitos.

Fidel fala abertamente sobre fatos históricos, assume erros e exalta qualidades, semelhante à forma com que qualquer um se descreveria, com a evidente diferença de seu peso na geopolítica mundial.

Independente de qual seja o posicionamento político de quem assista ao documentário, verá um líder político que passou boa parte da vida sob a mira da CIA, enfrentou grandes potências amparado por uma pequena ilha e não apenas superou problemas sociais crônicos na América Latina como passou a oferecer ajuda humanitária a outros países com menos recursos.

Erros e críticas são inevitáveis para qualquer governante. Talvez mais produtivo que uma tentativa de demonização dos feitos da Revolução Cubana, fosse uma análise de seus logros, a serem alcançados sem passar pelos mesmos equívocos.


terça-feira, 8 de agosto de 2017

Batismo de sangue

Um Estado governado por militares, com tortura de cidadãos civis, eventuais assassinatos e ocultação de cadáveres por parte daqueles que deveriam zelar pelo bem estar da população. Na economia, um falso crescimento amparado pela dívida externa que aumentava exponencialmente. A corrupção era facilmente dissimulada, tanto através da censura institucionalizada quanto pelas formas violentas que o estado de anomia oferecia aos militares para inibir denúncias.

As linhas gerais do que foi o período de ditadura militar no Brasil não nos dão uma ideia exata do que sofreram aqueles que foram politicamente perseguidos. Neste ponto o livro ‘Batismo de sangue’ de frei Betto, aqui adaptado pelo diretor Helvecio Ratton, elucida o terror vivido pelas vítimas do regime, detalhando as arbitrariedades, as torturas físicas e o terror psicológico imposto pelas autoridades.

O argumento insano de que bastava não cometer crimes para não ter problemas com o Estado, ainda que possuísse alguma legitimidade, era falso. Mesmo os criminosos reais devem ser punidos com respeito à dignidade humana, não obstante, é notável no filme que inocentes foram torturados, até que a suspeita de envolvimento com a guerrilha fosse desfeita.

A tortura e toda forma de punição pelo suplício é inaceitável qualquer que seja o aspecto analisado. É no mínimo frustrante pensar que hoje algumas pessoas vejam os métodos utilizados nos porões da ditadura, que incluíam dias de privação de sono, choques elétricos nos órgãos genitais, estupros, queimaduras e o que mais a criatividade sádica pudesse criar, como algo minimamente construtivo.

A narrativa se restringe ao recorte histórico da perseguição a frades dominicanos, sob a alegação de contribuir com guerrilheiros liderados por Carlos Marighella (Marku Ribas). Questionar um governo ditatorial e lutar pela democracia não é crime. Ainda que atos políticos pudessem ser nivelados com crimes comuns, a justiça baseada em leis, com direito à defesa e contraditório são ganhos sociais pelos quais lutamos duramente.

Um dos destaques da história, até por ser o autor do livro, é frei Betto (Daniel de Oliveira), que não sofreu torturas físicas por influência familiar. Militante político com habilidade rara de tecer alianças entre a Igreja e os combatentes, após quatro anos de cárcere o dominicano produziu várias obras aproximando os valores cristãos de uma política social voltada aos necessitados.

Essa proximidade, que deveria ser elementar, nem sempre é valorizada pela instituição política representada pela igreja Católica. Contrariando dogmas religiosos, algumas figuras notórias da Igreja distorceram interpretações bíblicas com o intuito de relativizar a atitude dos militares e tentar atribuir alguma culpa a ser punida, por parte dos frades.

A omissão custou caro, sobretudo a frei Tito (Caio Blat). Em resposta à covardia acima da média de sua sessão de tortura, Tito resistiu estoicamente para livrar seus companheiros do mesmo suplício pelo qual passou. Porém os efeitos da tortura não são mesuráveis. Assim como a resistência à dor é variável, portando aquele que cede às pressões não pode ser criticado, os traumas gerados pelo sofrimento são imprevisíveis e, no caso de frei Tito, irreversíveis.

No outro extremo da história, o destaque é o torturador Sérgio Fernando Paranhos Fleury (Cássio Gabus Mendes). Um pai dedicado e amoroso, que defendia valores morais e a instituição familiar; tudo lavado com o sangue de civis torturados impiedosamente.

O autoritarismo em nome da liberdade do ‘cidadão de bem’ que precisava ser protegido da ameaça do comunismo não se sustenta. O período de tensão política e forças divergentes que culminaram no golpe de 64 nunca chegou a ter um movimento de esquerda coeso e forte a ponto de almejar o poder.

O que muitos tentam impor através do discurso histórico como ações terroristas foram, na verdade, reações ao autoritarismo que tomou o poder, barrando avanços sociais e trabalhando em prol de uma elite econômica que até hoje concentra a maior parte da riqueza do país.

Há alguns anos atrás poderíamos pensar em Batismo de Sangue como um documento histórico obrigatório. Hoje, com o avanço da extrema direita e grupos de manifestantes clamando pela volta do regime militar em carros de som, a obra ganha tom de alerta. Quem sabe as cenas de tortura – inevitavelmente desagradáveis e repugnantes – não sirvam de aviso para a falta de limites daqueles que em nome da ordem instalam um caos silencioso e sangrento.


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