terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

Gloria

Uma mulher que não se contenta com a solidão. Este é o ponto de partida do diretor Sebastián Lelio. A protagonista Gloria (Paulina García) faz de tudo para viver a vida de forma intensa, mesmo que sozinha sai para dançar, canta, frequenta bares e busca um romance. Não seria uma história muito atrativa se ela não estivesse beirando os 60 anos.

A possibilidade de uma mulher dessa idade viver a vida livremente e preferir lidar com os percalços cotidianos a render-se ao papel estigmatizado para idosos é recente. Os avanços sociais em termos de igualdade de gênero e até mesmo de idade são lentos e historicamente não favorecem as mulheres.

Mesmo com os hábitos em processo de mudança, os homens, de uma sociedade machista, sempre gozaram de mais liberdade e menos censura, chegando à terceira idade com possibilidades de encontrar um novo amor, sair com mulheres mais jovens ou qualquer atividade que os faça felizes.

Às mulheres, depois de passar a vida em função do marido e filhos, restava uma velhice tranquila e insuportavelmente monótona. A prova de que essa herança cultural ainda nos persegue é que Gloria, mesmo com toda sua disposição, demonstra não ter fortes laços de amizades que poderiam ter sido cultivados ao longo da vida.

De seu passado sabemos apenas que foi casada, graças a um encontro com o ex-marido, atualmente casado, e a presença dos filhos, cuja relação com a mãe também evidencia um período de transição social. Gloria é uma mulher forte, mas ao mesmo tempo carente, demonstrando não ter superado o fato dos filhos terem crescido e não precisarem mais de seus cuidados.

A protagonista sofre os efeitos de apostar em uma relação próxima aos filhos, mas não ser correspondida. Talvez o que demandasse um pouco mais da atenção que ela tanto gostaria de proporcionar seria um neto, mas sua filha engravidou de um suíço e irá deixar o país.

É sozinha, carente e jamais entregue que Gloria encontra um novo amor, Rodolfo (Sergio Hernandez), também separado – ao menos é o que ele diz –, mas ao contrário dela, ele é extremamente conectado com as filhas, com as quais está sempre no telefone.

Apesar de cada vez mais comuns, os casais formados na terceira idade ainda não têm muitas referências históricas. Pensando nos tradicionais casais formados na adolescência, com a interferência dos pais, falta de dinheiro, inexperiência, etc., podemos esperar que os mais velhos levem vantagem e enfrentem menos problemas. Ilusão.

Gloria é a protagonista, portanto é ao redor dela que gira a história e, ainda que possamos criticar algumas nuances de seu comportamento, Rodolfo se mostra bastante despreparado, para não dizer infantil mesmo já tendo passado dos sessenta, em relação ao namoro. Tanto a insegurança ao conhecer o ex-marido de Gloria quanto à dificuldade de lidar com a dependência das filhas já adultas nos remete a um casal adolescente, que não consegue construir ou manter um relacionamento prazeroso.

Os problemas dos dois nos mostram o quanto somos complexos e como um relacionamento é difícil. Não se trata apenas de experiência e maturidade. Se hoje os casamentos têm durado menos tempo e as relações conjugais estão mais frágeis, não é por falta de empenho. A diferença é que até pouco tempo o divórcio era proibido, os casamentos arranjados e a mulher criada desde pequena para servir ao marido.

Não havia separações, mas havia satisfação? Sem dúvida Gloria tem que lidar com frustrações que não existiriam se ela aceitasse uma velhice tranquila dentro de casa, mas como iria lidar com sua carência e a sensação de vazio deixada pela independência dos filhos?

Gloria representa muito bem um novo comportamento social, adotado por pessoas que perceberam que o aumento da longevidade pode e deve ser acompanhado de qualidade de vida. Em uma sociedade que busca a juventude a qualquer preço não é nada fácil conciliar a pressão social para ser escrava da juventude e, ao mesmo tempo, trabalhar a quebra de paradigmas que permite aos mais velhos uma vida para além dos lamentos e saudosismos.

Um ponto chave que Gloria ensina para lidar com essa fase da vida é algo que deve ser bem cultivado desde cedo: as amizades. Podemos envelhecer ao lado de algumas pessoas que nos acompanharam ao longo da vida, um dando suporte ao outro, mas é claro que nunca é tarde para conhecer pessoas que, diferente de amores românticos, tem muito mais chance de corresponder às expectativas.


terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

Redentor

O filme não chega a ser uma grande obra do cinema nacional, mas traz questões extremamente relevantes quanto ao crescimento desordenado das cidades e suas implicações. Uma pena que depois o diretor Claudio Torres cai em uma tentativa de realismo fantástico que não atinge grandes resultados.

A base da história é um edifício construído pelo pai de Otávio Sabóia (Miguel Falabella), na promissora região da Barra da Tijuca, que na década de 70 ainda não era o símbolo da ascensão social de hoje. Ao lado do condomínio, os mesmos operários que construíram o prédio construíram também uma favela para moradia própria.

Por problemas financeiros que levaram seu pai ao suicídio, Otávio não entregou os apartamentos, prejudicando o pai de Célio (Pedro Cardoso), que sonhava com o novo lar, já quitado. Este cenário, tão comum em qualquer grande cidade brasileira, costuma ser analisado como problemas distintos e as providências geralmente são tomadas contra os mais pobres.

Favelas ao lado de condomínios não é exclusividade da Barra da Tijuca, nem mesmo do Rio de Janeiro. Em grandes conglomerados urbanos, que escancaram a desigualdade social, as áreas mais ricas contratam o serviço dos trabalhadores mais pobres, para a realização de tarefas pesadas como a construção civil exibida no filme.

O problema mais evidente de manter esses trabalhadores distantes, imaginando uma divisão urbanística em que favelas e bairros pobres ficassem distantes dos condomínios, é o custo e o tempo que o trabalhador levaria para se deslocar diariamente. Com as tarifas elevadas e a malha viária mal planejada, as cidades sofrem com o transporte em horários de pico. Além disso, tem a questão da segregação social causada pela formação de guetos, com critérios econômicos.

A ponta da pirâmide social também sofre as consequências de um crescimento desordenado, com base na especulação. Uma metrópole deveria ter seu desenvolvimento guiado por critérios mais técnicos, de forma que novas áreas residenciais fossem planejadas, diferente de um aval conseguido com propinas.

Se tudo der certo, depois que os grandes condomínios forem construídos e habitados a região passa a lidar com o trânsito caótico e a falta de estrutura para acomodar tanta gente de repente. Mas toda essa estrutura de construção e venda de imóveis torna-se frágil quando a incorporação imobiliária não trabalha com margens de erro.

Na prática os empresários (como o pai de Otávio) começam a construir um prédio e a vender os imóveis na planta. O dinheiro das primeiras vendas financia a continuidade da obra e posteriormente serve de base para a construção de um novo edifício. Em pouco tempo são várias obras em andamento, uma financiando a outra com o dinheiro de apartamentos parcelados em vários anos.

Tudo anda muito bem, até que a taxa de inadimplência começa a subir e a corrente se rompe. Com a falta de dinheiro as construções param, quem já pagou fica sem o apartamento (como o pai de Célio), quem pagou parte das parcelas acaba perdendo o dinheiro investido e os trabalhadores que eram sustentados pela obra acabam sem emprego.

Nossa tendência é culpar somente os inadimplentes, por adquirirem uma dívida que não teriam condições de quitar, esquecendo assim dos corretores que na hora da venda transformam tudo em benefícios, convertem os problemas em virtudes e fazem promessas imperdíveis para quem sonha em fugir do aluguel, sem contar as frequentes propinas e ilegalidades cometidas pelas construtoras.

Entre as partes envolvidas, os empresários são os que apesar de ter ido à falência, costumam ou ter grandes reservas em contas no exterior ou condições de se reerguer, conforme Otávio tenta a todo custo, literalmente. Célio é um personagem bastante específico, pois ao mesmo tempo em que foi lesado ao não ter o apartamento entregue, é jornalista e tem acesso a um meio de comunicação, usando como chantagem sua possibilidade de publicar algo que pode salvar ou destruir definitivamente a vida de Otávio.

Quem não tem dinheiro, destaque ou poder são os trabalhadores, que além de ficarem sem salário ainda são criminalizados pela construção da favela, como se morar em um barraco ao lado de um prédio vazio fosse uma opção desejada. Para quem não tem alternativa, os operários fazem uso inconsciente da função social de um imóvel, ocupando os apartamentos que construíram.

Na vida real esse é o momento em que no meio de uma estrutura que já nasce fadada ao fracasso, a polícia apara uma das arestas com a violência física que recai sobre os mais fracos. No filme as tensões geram a intervenção do Redentor que batiza a obra e torna-se seu ponto fraco.


terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

O Lobo de Wall Street (The Wolf of Wall Street)

Com mais uma trama marcada pela tensão entre personagens nada nobres, o diretor Martin Scorsese entra no mundo milionário das ações de Wall Street através do jovem e exímio vendedor Jordan Belfort (Leonardo DiCaprio). A ascensão do protagonista é rápida e o ritmo frenético do filme ajuda a da a impressão de que o sonho de ficar milionário aconteceu de repente para Belfort.

Inversamente proporcional à fortuna, os escrúpulos vão diminuindo à medida que o personagem atinge seus objetivos e funda a corretora Stratton Oakmont. Apesar do filme ser baseado em uma história real, é possível traçar um bom panorama sobre a história econômica recente dos EUA e sua relação com investidores, utilizando este como um estudo de caso.

A carreira de Belfort começou em uma pequena corretora, cujas ações valiam centavos e a comissão chegava a 50%. O problema é que negociavam papéis de empresas de fachada, que não valiam sequer centavos, que dirá os milhares de dólares que o hábil vendedor arrancava dos clientes.

Este foi basicamente o estopim para a quebra da bolsa em 1929, quando, resumindo ao extremo, a economia norte americana cresceu tanto para reconstruir a Europa do pós-guerra, que quando o velho continente se recuperou os estoques de mercadoria dos Estados Unidos foram sustentados por ações sem valor, que ao começarem a quebrar geraram uma reação em cadeia.

Apesar das crises econômicas serem cíclicas, é muito difícil que a bolsa de valores repita este erro. As empresas de fachada continuam sendo criadas e, como vemos no filme, não faltam compradores que se atolam em dívidas com a ilusão de enriquecer através de papéis sem valor. Porém os governos estão menos inocentes em relação à especulação.

Em meio ao bom humor com que o assunto é tratado por Scorsese, ora com uma ironia fina, ora com atuações escrachadas, vemos que o equilíbrio de poderes entre corretores e investigadores é tênue, extremamente tenso e por vezes beira as explosões de violência recorrente em outras obras do diretor. Aqui os impasses são mais psicológicos.

O lobo do título remete à voracidade com que Belfort encara seus negócios, desde as primeiras vendas até as palestras motivacionais para seus funcionários. Mas comparando com o comportamento dos investigadores, é possível dizer que entre esses lobos não há cordeiros.

Seria louvável que o FBI agisse de forma a proteger aqueles que investem a economia de toda uma vida em ações que não valem nem um centavo, porém a preocupação gira em torno de proteger o próprio mercado. Indiretamente cumprem o papel de agir em prol da população, pois ações descontroladas, como a história ensina, podem dar prejuízos para todo o país, porém pouco é feito diretamente em relação aos pequenos investidores.

A postura de tolerância seletiva em relação aos crimes por parte da polícia norte americana pode ser verificada também através de algumas nuances do filme. Belfort e seus sócios justificam o estereótipo de corretores viciados. Todos se entopem de álcool, barbitúricos e cocaína. Que muitos milionários fazem uso de drogas ilícitas não chega a ser um grande segredo, porém a repressão neste mercado é muito mais forte em relação aos fornecedores, traficantes de países subdesenvolvidos e as ‘mulas’, que se arriscam para levar a droga aos EUA. Ainda que esta não seja uma polêmica debatida pelo filme, vale a pena indicar os desdobramentos de um crime.

Por parte daquele que comete o delito, parece quase inevitável e universal a sedução que o sucesso econômico exerce. O poder que acompanha o dinheiro é a combinação para que a ambição não veja limites, porém eles existem mesmo entre os milionários. Ultrapassá-los com cautela pode dar direito a correções, porém a cautela não é uma característica daqueles que vivem do mercado imprevisível de ações.

Toda a rede de delitos do filme é baseada no campo econômico, o resultado não é evidente. Diferente de assassinatos, agressões, etc. os crimes financeiros não deixam sangue e suas consequências são difusas, abstratas, deixando uma camada de verniz sob seu formato ilegal.

É possível procurar culpados objetivos. Subornos, complacências, falta de caráter entre tantos fatores identificáveis, porém o inegável é que todo o sistema econômico mundial gira em torno de falso capital. Ações que da noite para o dia podem levar seus acionistas à ruína ou à glória sem que nada seja produzido fisicamente.

Os governos tentam intervenções que não rompam com a tolerância em relação aos crimes mais convenientes, porém é inevitável que periodicamente algum vulcão do mercado entre em erupção. O caso mais grave até hoje foi a quebra da bolsa em 1929, o mais recente foi a crise do setor imobiliário em 2008. Quando será a próxima crise é tão imprevisível quanto as tendências do mercado.


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