terça-feira, 20 de dezembro de 2016

Querida, vou comprar cigarros e já volto (Querida voy a comprar cigarrillos y vuelvo)

Voltar no tempo e reviver alguma situação pela qual passamos, mas com a maturidade que só a experiência pode proporcionar. Um tema recorrente no imaginário popular, que virou tema para os diretores Mariano Cohn e Gastón Duprat. De forma bem humorada e explorando os aspectos trágicos das situações, os diretores permeiam a história com algumas questões bem interessantes, que além de divertir nos instigam a pensar em aspectos de nosso cotidiano.

O protagonista é Ernesto Zambrana (Emilio Disi), que com cerca de sessenta anos recebe a proposta de reviver dez anos de sua vida, a partir de qualquer data de sua escolha. Essa proposta tende a ser mais valiosa que um prêmio de mega sena. Não é só o dinheiro, mas a chance de consertar erros cometidos no passado que tiveram consequência ao longo de toda a vida. Pense rápido, para qual dia você gostaria de voltar?

Ernesto opta por voltar a tempo de pedir desculpas à mãe pela distância ao longo da vida. Note que ele iria reviver dez anos, podendo passar todo esse tempo próximo a ela caso quisesse realmente arrumar o que considerava um erro, mas prefere voltar apenas a tempo de se desculpar. Não temos elementos suficientes para julgar essa atitude. Nunca se sabe o que leva alguém à escolha de seus caminhos.

Pego de surpresa e munido apenas da esperança de tornar sua vida recente marcante, o protagonista logo percebe que reviver um período não o torna imune às imprevisibilidades do destino. Não é uma questão moral, pois sendo egoísta ou altruísta os imprevistos seguem transformando sua vida em algo independente de sua própria vontade.

Quando pensamos em algum erro cometido temos a tendência de imaginar que se pudéssemos consertar aquele ponto específico todo o resto teria o mesmo desdobramento, com a vantagem de um problema desfeito. O que o filme mostra, ainda que de forma cômica e caricaturada, é que nossa vida se equilibra em uma estrutura formada pelos detalhes do dia-a-dia. Alterar um detalhe implica em desestruturar os eventos seguintes.

Claro, são hipóteses que não passam de uma abstração, não se trata de considerar uma viagem no tempo oferecida por um emblemático ser imortal como o filme sugere, mas podemos pensar em como, independente da maturidade e experiência de vida que temos, nossos erros são inevitáveis a ponto de ser mais eficiente uma flexibilidade diante dos desdobramentos de nossas ações do que o saudosismo de um fato que deveria ter acontecido.

Não bastasse a versatilidade de nossa própria vida de acordo com os caminhos que escolhemos com o passar dos anos, ainda temos inúmeras pessoas com quem interagimos de uma forma ou de outra, por vezes sem nem perceber, e que vão influenciar em nossa vida. Em meio à comédia de personagens rabugentos e mal humorados, existe certa melancolia da vida como uma prisão, da qual não podemos escapar e tão pouco tomar as rédeas. 

As supostas vantagens que a experiência poderia trazer a um jovem com décadas a mais de vivência esbarram no fato de que a vida sempre irá frustrar nossas expectativas, sobretudo quando elas forem muito fechadas. As oscilações do comportamento humano ao longo da idade não ocorrem por acaso, mas são fruto de uma longa evolução que levou a adaptação dos indivíduos de acordo com a necessidade de cada época da vida.

Ernesto volta à juventude apostando em sua sabedoria, porém não demora para perceber que tem muito o que aprender. Apesar do corpo agora jovem, sua mente não tem a versatilidade do início da vida e seu conhecimento está deslocado no tempo. Uma ação que parece razoável hoje pode ter um impacto bem distinto quando transposta para um tempo com costumes bem distintos.

O que o filme mostra nas entrelinhas de todo o enredo inusitado e cômico é que a vida não é uma máquina com funcionamento isolado, à qual podemos trocar peças e rearranjar funções. Talvez a melhor definição seja a de John Lennon – que não escapou do roteiro do filme – quando afirmou que a vida é o que acontece conosco enquanto estamos ocupados fazendo planos.

A vida de Ernesto não precisou de nenhuma magia para chegar ao tédio extremo do início do filme. Basta passar o tempo todo imaginando o quão grandioso nosso destino poderia ter sido, o que na prática se concretiza para pouquíssimas pessoas, ao invés de imaginar o que podemos extrair do que realmente temos.


terça-feira, 13 de dezembro de 2016

Califórnia

Em seu primeiro longa de ficção a diretora Marina Person nos leva até meados dos anos 80 para acompanhar a adolescente Estela (Clara Gallo). Permeando os problemas característicos dessa fase da vida temos uma série de referências à cultura pop que florescia na época, além de fatos históricos marcantes. Com tudo isso somado o resultado vai muito além de um filme adolescente e agrada a quem assiste de várias formas.

Não há nada de excepcional na vida de Estela. É uma adolescente que, como tantas outras, enfrenta um turbilhão de dúvidas e angústias quase inevitáveis para a sua idade. O tabu da sexualidade, a descoberta do mundo que começa a aparecer fora da influência dos pais, o sonho que se torna meta de vida – que no seu caso é ir para a Califórnia, encontrar com seu tio Carlos (Caio Blat).

Entre os problemas corriqueiros cabe destaque à ironia de ter que lidar com o pai conservador e reacionário vivido por Paulo Miklos, que na época do filme despontava nos Titãs como ícone de rebeldia e contestação. Os Titãs se juntam a uma trilha sonora que reúne clássicos nacionais e internacionais dos anos 80, para deixar qualquer um que tenha vivido e efervescência cultural da época animado a relembrar histórias pessoais.

Hoje temos acesso tão fácil a determinadas coisas que frequentemente nos esquecemos de como era difícil ouvir uma música recém-lançada, conseguir uma camiseta de banda ou mesmo ter privacidade para falar ao telefone na única linha fixa da casa.

A dificuldade acaba valorizando as conquistas. Aquela camiseta importada que era lavada com todo cuidado, até desbotar e continuar quase como uma segunda pele, virando marca registrada do dono; a fita cassete que ao ser gravada não remetia apenas às músicas, mas também à pessoa que gravou, que muitas vezes torcia para que aquela lista de músicas ajudasse na expressão de sentimentos – era quase um perfil de rede social; saber do lançamento de um filme em Hollywood significava a espera de meses até que chegasse a um cinema nacional.

Nem tudo são flores na referida década. Mesmo que muitas diferenças sejam tecnológicas, a economia precária do país era crucial para que até uma camiseta fosse festejada. Além disso, aos poucos fica claro que tio Carlos precisa voltar ao Brasil por conta de uma doença que começava a se apresentar ao mundo, ainda desconhecida e negligenciada.

Essas referências temporais são fundamentais para que o filme deixe de ser apenas uma história adolescente. A obra também não se restringe ao saudosismo. Com a história retratada em uma época turbulenta, logo após a campanha das diretas já, que marcaram o início de uma nova fase do país, podemos estabelecer um paralelo entre as carências e esperanças da época com a situação que encontramos cerca de trinta anos depois.

A base das alegrias e problemas de uma jovem adolescente segue muito semelhante. Características sociais mudam lentamente e a tecnologia desenvolvida nas últimas décadas apenas deu uma roupagem nova à relação dos jovens com o mundo que os cerca.

Politicamente se na época retratada o país lutava para superar uma fase difícil e consolidar a democracia, acompanhada da abertura comercial e desenvolvimento, hoje colhemos muitos frutos provenientes da geração da personagem. Toda a luta expressa no filme pela correspondência de Estela com Carlos foi decisiva para que o país virasse uma página tão triste de sua história.

Por outro lado aquela foi uma geração marcada pela utopia e pelo otimismo. O fim da ditadura cultivava a esperança de melhorias, que de fato vieram. Os que dizem hoje que o país passa pela pior crise de sua história ‘esquecem’ da inflação galopante e dos assassinatos políticos da década de 80.

Nem mesmo em relação à AIDS podemos negar o progresso da ciência. Ainda que não tenhamos chegado à cura, a prevenção e a expectativa de vida dos que contraem o vírus não se comparam ao que tínhamos na época do filme.

O aspecto que aparenta ter regredido vergonhosamente é a postura política da sociedade em geral. Parece termos saído de uma utopia vanguardista para um conservadorismo que se resigna ao retrocesso. Claro que o roteiro do filme não foi pensado como uma crítica à postura política atual, mas diante dos fatos recentes a comparação é tristemente inevitável.


terça-feira, 6 de dezembro de 2016

Guantanamera

A década de 1990 foi bem difícil para o povo cubano. Depois de uma década próspera graças à proximidade com a União Soviética, a Ilha passou a sofrer com a falta de apoio financeiro, pagando um preço alto por não ter aproveitado o período favorável para investir em sua industrialização.

Parte disso é exposto de forma metafórica e muito bem humorada pelos diretores Juan Carlos Tabío e Tomás Gutiérrez Alea, repetindo a parceria de ‘Morango e Chocolate’. O filme foi lançado em 1995. Curioso como duas décadas mais tarde a viagem que compõe a história central do filme seria refeita pelo personagem mais enigmático da história do país.

Em tempos de crise não há saída, é necessário cortar o que é supérfluo, economizar no que é indispensável e ainda assim os gastos aumentam. O impasse inicial do filme gira em torno do que fazer quando uma pessoa morre em uma província distante de sua terra natal. Enquanto uns insistiam na coletividade, indicando que a pátria era uma só, portanto não havia diferença quanto ao local do enterro, outros indicaram logo a recusa em serem sepultados longe do local escolhido.

Neste ponto Afonso (Carlos Cruz) tenta se valer dos ideais da Revolução, de socializar ganhos e perdas entre todos, para solucionar os problemas. Cada província arcaria com uma parte dos custos do traslado, mantendo a cota de combustível dentro da meta. A surpresa foi a morte repentina de sua sogra, que o faria ser o primeiro a por seu plano em prática cruzando a ilha de Guantánamo, no extremo leste, a Havana. Caminho inverso que fizeram com as cinzas de Fidel, até Santiago de Cuba.

A viagem que segue fornece elementos para críticas severas ao regime cubano, assim como virtudes que não se encontra em países sul-americanos. No que fica isento de críticas positivas ou negativas, a história mostra que a vida é feita de imprevistos, que não podem ser planejados em uma mesa de reunião e demandam soluções que fogem ao protocolo rígido que as instâncias governamentais tendem a impor.

Uma das coisas que Afonso não poderia prever é que sua esposa Georgina (Mirtha Ibarra) encontraria com um ex-aluno, Mariano (Jorge Perugorria). Cabe ressaltar que Georgina deixou de dar aula de economia e Mariano se formou em engenharia, mas trabalha como caminhoneiro e ganha até mais nessa profissão. Há quem veja como insanidade um caminhoneiro ter salário equivalente ao de um engenheiro.

Toda história tem pelo menos duas versões. Se Afonso narrasse o filme provavelmente se colocaria como uma vítima de Mariano, que tentava seduzir sua esposa. Poderia citar infortúnios do destino, culpar os personagens que atravessaram seu caminho – como uma mulher em trabalho de parto – ou qualquer outra coisa para justificar as dificuldades que teve.

Como o filme não é narrado por ele, resta a imagem personificada de um burocrata restrito, cuja devoção aos valores revolucionários não visam o bem da sociedade, mas um cargo de destaque que coloque seu nome na história do país. Dessa forma faz de tudo para que a realidade se adeque aos seus planos, não o contrário.

A morte, trágica, mas trabalhada de forma leve e cômica ao longo do filme, sugere que aquilo que já foi grandioso, como Yoyita (Conchita Brando), a falecida sogra de Afonso que fora uma artista de sucesso, pode chegar ao fim quando menos esperamos e depois disso deixa um corpo que ainda precisa de atenção.

Em qualquer país do mundo a sociedade é muito mais dinâmica que as leis. Estas são passíveis de interpretações e corrupções – não necessariamente grandiosas, mas essas pequenas corrupções do dia-a-dia, que por vezes nem nos damos conta de que cometemos – enquanto as situações reais demandam urgência que foge do escopo da burocracia.

Assim o cadáver insepulto que insiste em causar transtornos nos planos de Afonso estaria presente de forma metafórica independente da área em que o funcionário público trabalhasse. Seu problema não era o cadáver da sogra, mas o cadáver de uma ideologia distorcida, que nasceu tendo por base a ascensão pessoal enquanto dizia se apoiar no bem comum.

Superando o discurso e a postura ultrapassa de Afonso, vemos os demais personagens vivendo a vida fora do papel. A vida que traz surpresas que podem ser tão ruins quanto a morte, ou tão boa quando um reencontro afetivo. Melhor que tentar adequar os imprevistos à burocracia é encontrar uma saída satisfatória, que não implique em renunciar aos sonhos, nem sepultá-los em uma terra distante.


terça-feira, 29 de novembro de 2016

Viva Cuba!

Desde que Shakespeare contou a história dos dois jovens apaixonados, cuja rivalidade entre as famílias impedia o tão sonhado relacionamento, o enredo vem servindo de base para uma infinidade de histórias de relacionamentos no mínimo improváveis.

Este longa é a versão cubana do diretor Juan Carlos Cremata Malberti para a esperança da juventude que desafia uma tradição geralmente insustentável. De forma lúdica, não se trata de um casal romântico, mas de uma amizade infantil daquelas que os adultos tendem a ver como um futuro relacionamento, mas que para as crianças é uma amizade muito mais inocente e até pedagógica, por introduzir os primeiros conflitos a serem resolvidos.

Não há um motivo concreto para a divergência entre as famílias de Jorgito (Jorge Milo) e Malu (Malu Tarrau Broche), porém alguns sinais indicam que o menino vive em uma família castrista, simpática ao regime político da ilha e sem religião, enquanto a mãe de Malu, católica, separada e com mais recursos, quer deixar Cuba, precisando apenas da autorização do pai da menina. É para impedir a autorização que os dois resolvem fugir e cruzar a ilha sozinhos, de uma ponta à outra, onde mora o pai de Malu.

Se por um lado tudo que está relacionado a Cuba ganha uma dimensão política desde a revolução, por outro é uma história contada há séculos, plausível em qualquer lugar do mundo, com particularidades que marcam cada adaptação. Levar a ideia de um romance para o universo infantil suavizou os conflitos da história, permitindo que possamos assistir sem a necessidade de eleger anjos e demônios.

Sem dúvida muitos preferem seguir com uma ideologia superficial que nutre um ódio profundo a tudo que venha de Cuba, mesmo sem saber muito bem por que. A estes o título do filme já é uma barreira ao conteúdo, que os faz perder a chance de acompanhar o divertido road movie, que nos leva da capital Havana ao extremo leste mostrando as belas paisagens naturais, as virtudes e os problemas, que existem como qualquer país.

As interpretações metafóricas feitas com base na história de “Romeu e Julieta” ao longo dos séculos também podem ser aplicadas à trama de Malberti. Não é por acaso que questões tão delicadas opõem as famílias vizinhas em Havana. A mesma intolerância resultante da falta de diálogo, que fez Shakespeare explorar até as últimas consequências o relacionamento de seus personagens, aqui está presente, ainda que de uma forma mais suave.

Enquanto Jorgito e Malu estudam juntos e vivem intensamente essa fase de descobertas, suas famílias mantém uma intransigência desnecessária. Colocar os pais no mesmo patamar, sem tomar partido ou apontar um dos lados como vítima, indica que as crianças acabam sendo a parte prejudicada de toda a história, tendo que lidar com uma inimizade que sequer compreendem. É no mínimo interessante desenvolver a trama desta forma em um país que há décadas sofre com um bloqueio econômico resultante de uma desavença de governos que, se um dia fez algum sentido, já não se sustenta.

Evidente que a comparação é restrita. Para pensarmos os pais das crianças como governos tutores da população, esbarramos na horizontalidade das duas famílias, sendo a disparidade entre o governo cubano e seu principal opositor ideológico é incomparável. Quase trinta anos após o fim da Guerra Fria, é um engodo achar que Cuba tem algo a barganhar com os norte-americanos.

As famílias do filme precisaram de um grande abalo para poder colocar a cabeça no lugar e agir racionalmente, pelo bem dos filhos. Em relação aos governos esse abalo é mais complexo, pois questões históricas, diplomáticas e vários outros fatores influenciam na decisão de agir racionalmente, pelo bem da população. Obama foi até Cuba para tentar um primeiro passo – os EUA iniciaram o bloqueio, cabe a eles encerrá-lo –, Fidel, se é que ainda tinha influência política, se foi. Resta aguardarmos os passos dos próximos atores políticos.

Durante a aventura das crianças, em meio às belas paisagens do interior do país, um homem dá carona aos dois e, talvez para evitar que passem a noite ao relento, assusta os pequenos com a lenda dos guijes, supostas criaturinhas que andam a noite para matar as pessoas de susto. Depois de tantos anos de guerra psicológica, com golpes baixos dos dois lados, parece que hoje o temido comunismo cubano atua na política internacional como um guije, assustando aqueles que preferem criar um monstro imaginário a dar uma olhadinha fora da caixa.


terça-feira, 22 de novembro de 2016

Aquarius

Mais uma vez os conflitos sociais urbanos chegam às telas pelo olhar do diretor Kleber Mendonça Filho, que já se destacou em ‘O som ao redor’ e agora nos oferece uma história baseada nos interesses do capital financeiro, que podem moldar uma sociedade para além da vontade de seus indivíduos.

O edifício Aquarius tem apenas dois andares acima do térreo, com poucas mas suficientes vagas para os carros dos moradores e espaços internos amplos, característico das construções mais antigas e menos lucrativas.

Um roteiro mais que conhecido nas grandes cidades tem como base a expansão de uma área economicamente atrativa. Logo as grandes construtoras começam a comprar imóveis e demolir, abrindo espaço para edifícios majestosos. Muitos moradores do local consideram a prática uma benção, já que acabam recebendo um valor acima do mercado, que permite uma mudança de vida, inesperada, mas que acaba sendo bem-vinda.

A questão é o que fazer quando por algum motivo alguém se recusa terminantemente a vender o imóvel. Pior, quando é um apartamento que acaba interferindo na negociação de diversos moradores, como é o caso da protagonista Clara (Sonia Braga).

O diretor constrói a personagem de modo a deixar claro que o dinheiro não é um problema para ela. Aposentada e com imóveis alugados, sua renda é mais que suficiente para suas necessidades, não há uma preocupação com o futuro financeiro dos filhos e as memórias guardadas em cada canto do apartamento não podem ser compradas ou transportadas para um novo local.

Mais que uma personagem, Clara é a personificação de um estereótipo que coloca os valores pessoais acima dos financeiros – característica que evidentemente só é possível graças à condição de conforto econômico. E na outra extremidade está Diego (Humberto Carrão). Neto do dono da construtora, recém-chegado do exterior, está, em suas palavras, com sangue nos olhos para concluir a compra e construir o novo edifício. Sem dúvidas mais um arranha-céu à beira mar, daqueles que fazem sombra na praia.

Com exceção de uma expropriação estatal não há nada que obrigue o proprietário a vender seu imóvel, ainda que fosse uma cabana de madeira emperrando a construção de um imenso investimento imobiliário. A lógica do capital econômico como valor supremo é tão enraizada que por vezes nos esquecemos de que nem todos querem coloca-la em prática, e todos que vivem em um prédio deveriam estar cientes de que entraves como o do filme não têm, ou não deveriam ter, uma solução que excedesse o diálogo.

Pensando no filme como um exercício constante de empatia a quem assiste, é possível imaginar que aos antigos vizinhos que agora querem finalizar a venda a atitude de Clara é egoísta, mas até esse ponto todos estão dentro de seu direito. O inaceitável é que uma senhora de idade mais avançada, que já passou por momentos felizes e outros de extrema dificuldade, seja agora chantageada e emocionalmente fragilizada por um jovem mimado, que passa a usar técnicas tão infantis quanto sua personalidade indica para forçar Clara a vender seu apartamento.

Os impasses que surgem nos conglomerados urbanos não tem uma solução exata, que resolva todos os casos da melhor forma aos envolvidos. Assim, não há um veredito final sobre o que fazer em um impasse como o que é apresentado no filme. Uma coisa é certa, Clara tem plena consciência do que quer e não faz nada de errado, somente tenta seguir sua vida e resolver as coisas com serenidade. Bem diferente de Diego.

Vale a pena lembrar o protesto no festival de Cannes, da equipe do filme contra o golpe. Claro que o processo de criação de um filme é longo e quando o diretor começou a desenvolver o projeto de Aquarius o golpe no Brasil não estava articulado – ao menos não de forma explícita. Porém acaba sendo bastante simbólico que em meio ao lançamento do filme os interesses do capital financeiro não obriguem uma moradora a vender seu apartamento, mas forcem uma troca presidencial.

O lado ruim da repercussão do protesto seria uma polarização desnecessária, levando as pessoas a assistirem ao filme com um lado político escolhido anteriormente, sabendo de antemão se gostariam ou não da história. Por outro lado, sendo um filme voltado ao circuito alternativo, que inevitavelmente luta por uma sala de exibição, é de se supor que a imensa maioria das pessoas que se sentiram incomodadas com o protesto e por isso taxou o filme sem assisti-lo, já não deixariam um blockbuster de lado para ver um filme alternativo.


terça-feira, 8 de novembro de 2016

Sabogal

Recentemente a população colombiana rejeitou em referendo um acordo de paz entre o Estado e as FARC. Apesar desse não ser o tema central abordado pelos diretores Juan José Lozano e Sergio Mejia, a mistura de ficção e realidade expressa na animação traz pontos que podem nos ajudar a entender essa complexa relação entre atores políticos que nem sempre têm equivalentes por aqui.

É frequente na América Latina a demonização de algum grupo, sobretudo com viés político, desqualificando qualquer qualidade que possa existir e afastando a população do grupo em questão. Assim ocorre com as FARC. Forças armadas sem paralelo em outros países, seus revolucionários têm currículo recheado de atitudes condenáveis, como sequestros e assassinatos – de quem quer que seja.

Por outro lado a condenação de tais atitudes não deveriam se disseminar para a ideologia inicial do grupo. O combate de injustiças sociais e a reivindicação de direitos acabaram caindo no bojo da criminalização, que igualou os combatentes aos traficantes, formando um suposto único mal a ser combatido.

Mesclando realidade e ficção, o filme cria a história do jornalista Fernando Sabogal, que tenta fazer seu trabalho de denúncia, driblando uma censura informal, que não se restringe aos veículos de comunicação, mas que assassina aqueles que são vistos como pedra no caminho – não somente das FARCS.

A tríade formada pelo governo, o tráfico e a guerrilha muitas vezes beira a um ménage, em que interesses em comum são defendidos em detrimento daqueles que, com todas as falhas e defeitos de um ser humano, tentam elucidar conchavos prejudiciais ao Estado e, sobretudo sua população.

Se pensarmos nos problemas sociais dos países sul-americanos, o tráfico não terá nenhuma fronteira. Tentar colocar toda a culpa da Colômbia pós Pablo Escobar nas FARC é uma tentativa de maquiar raízes muito mais profundas, que englobam outros atores de peso no cenário político.

Tão onipresente no continente quanto o tráfico, a criminalização da pobreza, assim como daqueles que lutam para combatê-la, também é marcante no filme. Durante a primeira década deste século o governo de Álvaro Uribe não hesitou em corroborar a ideia de que representantes dos direitos humanos só defendem bandidos, que rapidamente foi absorvida e reproduzida pela mídia e por setores da sociedade.

Fazer clivagens simplistas da sociedade, colocando bem e mal em lados opostos e convencendo cada indivíduo que ele está do lado do bem, portanto ameaçado pelo mal, é uma tática de dominação muito bem utilizada para controle das massas. Daí saem as deturpações insanas baseadas em frases de efeito como ‘direitos humanos para humanos direitos’, ‘bandido bom é bandido morto’ e outras variações marteladas à exaustão para que as pessoas absorvam a ideia de que há um inimigo, com o qual devemos ser implacáveis.

O que a animação vem mostrar é que essa divisão entre mocinhos e bandidos é simplista demais para uma sociedade multifacetada, em que o governo está longe de ser representativo e, assim como as FARCS, pode usar métodos nada constitucionais para remover obstáculos.

Não bastasse o fato de que, independente do que façam os guerrilheiros, eles devem ser julgados, se necessário, conforme as leis, as atitudes criminosas por parte do Estado podem se estender para civis que nada tem a ver com a guerrilha ou o tráfico, como por exemplo, os jornalistas que tentam levar à população os conchavos obscuros firmados secretamente entre instituições formais e informais.

Após tantos anos plantando ódio e desconstruindo os direitos humanos podemos ver como um desdobramento da história narrada na animação a vitória dos que se negam a fazer um tratado de paz. Por um ódio insuflado injustificado, já que foi estimulado por governos corruptos e tendenciosos, seres humanos contrários aos direitos humanos seguirão combatendo a violência negando um tratado de paz.

Enquanto elegermos um único culpado para alvo de nossas demandas e indignações, seja na Colômbia das FARCS, seja no Brasil de tantos conchavos suspeitos, seguiremos com disputas internas na base da pirâmide social. Fernando Sabogal é um exemplo icônico entre tantos que mesmo com seus problemas pessoais seguem tentando lutar por uma causa maior. 

Os fatos encadeados na animação colombiana deixam uma mensagem implícita para qualquer país e sua população. É sempre recomendável a desconfiança diante de discursos muito homogêneos. Tanto por parte de governos pintados como acima de qualquer suspeita, quanto em relação ao que seja exposto como o único grande mal a ser combatido, quando a realidade nos mostra que os males são multifacetados.


terça-feira, 25 de outubro de 2016

A frente fria que a chuva traz

A desigualdade social no Brasil é uma das maiores do mundo. Diversos fatores históricos e muitas forças ainda atuantes contribuem para essa triste marca, que se expressa de várias formas em nossa sociedade.

O Rio de Janeiro é uma cidade onde por características geográficas o abismo entre classes interage de forma curiosa. Espremida entre montanhas, a cidade de natureza exuberante e paisagens privilegiadas relegou aos pobres, desde a época da escravidão, os lugares de difícil acesso, cujas vistas paradisíacas do mar até hoje são usadas como um suposto privilégio daqueles que moram nos morros.

De fato uma vista do mar é valorizada em qualquer lugar, porém esse valor simbólico tem alto custo. A infraestrutura precária de uma região que cresceu sem planejamento faz com que os moradores tenham dificuldade de ir diariamente para o centro ou para as regiões nobres para trabalhar, o deslocamento na comunidade é feito por vielas estreitas e o Estado só marca sua presença com violência policial.

O diretor Neville D'Almeida mostra em seu longa uma forma de integração social mais recente e também muito específica do Rio. Não são os moradores do morro que descem para trabalhar para a classe média alta, mas os jovens da classe média que buscam diversão subindo o morro em uma espécie de turismo a um lugar diferente.

Como qualquer hotel que cobra mais caro de acordo com a vista do quarto, Gru (Flávio Bauraqui), morador do Vidigal, aluga a laje de sua casa para Alison (Johnny Massaro) organizar festas para um grupo de jovens em busca de diversão. A primeira crítica às relações do filme costuma girar em torno do comportamento hedonista dos jovens, afinal para eles a vida se resume a festas regadas a drogas e sexo.

Porém esse comportamento é até secundário se comparado aos problemas sociais capilarizados na trama do filme. Não são os jovens ricos que só querem saber de aproveitar a vida, tentando supervalorizar pequenos problemas e acreditando que a vida para eles também é difícil; na verdade esse é o desejo de qualquer um, que não é posto em prática por falta de recursos.

A diversão, seja bancada pela mesada dos pais ou por alugar parte da própria casa, é igualmente legítima. O que realmente incomoda é ver como essa aparente aproximação entre classes é unilateral e restritiva, contribuindo para a segregação social ao invés de combatê-la. É um equívoco pensar, diante das injustiças mostradas no filme, que as relações deveriam ser baseadas na essência das pessoas, ao invés de seus bens, pois isso também é posto em prática junto ao poder econômico.

Por mais que Gru ganhe dinheiro alugando sua laje e até frequente as festas, ele nunca será parte integrante do grupo de jovens. Ainda que entre eles os jovens façam brincadeiras pejorativas que chegam a causar transtornos, quando essas brincadeiras são com Gru fica claro que estão se referindo a alguém de fora.

A convivência em um ambiente fora do próprio condomínio, que poderia ser ótima para apresentar uma realidade distinta e assim ensinar outros valores, acaba somente corroborando preconceitos que são exatamente baseados no status social, independente do poder econômico.

No meio do caminho entre as duas realidades está a personagem Amsterdã (Bruna Linzmeyer). Com uma beleza estonteante a jovem tem mais integração com o grupo, desde que esta aceitação seja vista como um favor dos mais ricos à garota que não tem família que a sustente, não tem um barraco com vista para o mar, mas tem um belo corpo como moeda de troca e se prostitui para conseguir dinheiro e drogas.

O filme retrata cada personagem em seu papel social. O problema não são valores morais que censurem a sexualidade – liberada desde que dentro do próprio grupo, com exceção de Amsterdã –, tão pouco as drogas que poderiam render um capítulo à parte desta análise.

Todas as relações do filme são baseadas em troca de bens, materiais ou simbólicos. Essa troca de bens obedece a regras implícitas muito claras. O que difere Amsterdã, que entra no carro de um desconhecido para se prostituir por cinquenta reais, e a jovem de classe média que presta o mesmo serviço em troca de drogas é que esta só se sujeita a isso quando quem pede sexo é o amigo próximo. Diferente de Gru e Amsterdã, Alisson não precisa do dinheiro e o sexo poderia ser obtido de outra forma, mas a relação de poder leva à troca de bens simbólicos.

Em uma cidade que une a população por conta da geografia, seria ótimo se houvesse relações sociais reais, que permitisse às diversas classes um contato instrutivo. Isso permitiria tanto a desconstrução de preconceitos quanto a própria redução de desigualdades. Infelizmente há muito mais forças atuando para que as desigualdades persistam.


terça-feira, 18 de outubro de 2016

As escolhidas (Las elegidas)

Há pouco mais de um século o movimento feminista vem ganhando força no mundo todo. Um século pode parecer muito, mas para combater milênios de opressão o movimento ainda tem muito trabalho pela frente, mesmo já tendo conquistas fundamentais para as mulheres.

Nos últimos anos a internet teve papel de peso nessa ascensão feminista. Com as redes sociais mulheres têm a oportunidade de compartilhar experiência com desconhecidas, tomando consciência de que muitas coisas consideradas normais só tem esse caráter devido à naturalização do machismo na sociedade.

Claro que como todo movimento que contesta uma ordem vigente, junto com sua ascensão crescem também as críticas, desde as mais diretas às relativizações aparentemente inocentes. Para uma indicação clara de que o machismo ainda é dominante, costuma ser suficiente a inversão de papéis. E se fosse um homem na situação em questão? – não basta uma exceção à regra. É comum que homens sejam explorados sexualmente sob a supervisão impiedosa de mulheres, que ganham a vida como cafetãs?

Essa é a realidade da família de Ulises (Oscar Torres). O pai e o irmão mais velho do jovem mantém uma casa de prostituição com garotas mantidas à força, sob a ameaça de castigos físicos contra elas e seus familiares. O método de escolha das meninas era sempre o mesmo, seduzi-las induzindo a um namoro até que quando se davam conta já era tarde para sair do prostíbulo.

Não bastasse a insegurança dos adolescentes diante de novos relacionamentos, com o desconforto de uma situação desconhecida minando as atitudes e comprometendo os resultados, Ulises sabia do destino que estava traçando à Sofia (Nancy Talamantes). O inusitado para um esquema repleto de insanidades é o fato de Ulises estar de fato apaixonado pela adolescente.

O diretor David Pablos mostra como o funcionamento do prostíbulo era protegido por várias frentes. A recusa de Ulises em entregar a moça não tinha nenhuma relevância frente ao pai e ao irmão. A polícia era conivente com o esquema, graças à propina, e isso escancara uma característica inerente aos preconceitos enraizados: eles não precisam da anuência das leis, pois de tão capilarizados na sociedade são tolerados muitas vezes até pelas próprias vítimas. Por fim, localizado em um bairro distante, o local era vigiado por vários homens, o que impossibilitava uma fuga de Sofia.

A única alternativa da menina estava também subjulgada ao universo masculino, pois o pai e o irmão de Ulises concordaram em libertá-la, desde que o jovem trouxesse outra menina para seu lugar. Difícil pensar em alguma atitude direta de Sofia para conseguir escapar. Uma vítima de catorze anos, cercada por uma estrutura de dominação muito organizada e forte.

Não é somente a situação de Sofia e das demais jovens que incomoda. Ao longo do filme começamos a pensar em uma alternativa que possa colocar fim ao esquema criminoso que converge uma série de crimes para um ponto específico. Será que nos esforçamos para desenvolver uma sociedade regulamentada por leis e instituições de fachada, que oferecem brechas para que a quadrilha que mantém o prostíbulo não seja desfeita e seus integrantes detidos?

Infelizmente parece que a cereja contaminada que dá o toque final a este bolo amargo é a condescendência dos frequentadores do local. Talvez seja um argumento frágil utilizar a lei de mercado que diz que não há oferta se não houver demanda, mas quando o sexo é mercantilizado e explorado como uma mão de obra escrava parece que essa alternativa insana é a chave para toda a situação.

Ainda que a exploração fosse de alguma forma denunciada para um policial que não participasse do esquema, se em casos explícitos de estupro existe a tendência machista de culpar a vítima questionando suas roupas ou a falta de companhia, o que dizer de meninas que, em tese, são pagas pelo que estão fazendo. Ainda que seja uma falácia, devemos lembrar que uma sociedade que culpabiliza a vítima de um estupro não prima pelo bom senso.

No filme, Ulisses demora um pouco para encontrar uma jovem que possa ser trocada por Sofia, nesse escambo tão rudimentar que não se trata nem de comercializar o sexo, mas as mulheres mesmo. Após uma cena um pouco confusa, em que uma tentativa de fuga por parte de Sofia parece não ser concluída, fica a dúvida: depois de ter vivido uma experiência tão traumática e ter criado empatia com algumas jovens do prostíbulo, como levar a vida adiante?


terça-feira, 4 de outubro de 2016

O bosque de Karadima

A religião é apenas um dos aspectos da Igreja Católica. Sua força política, que apesar de vir diminuindo continua extremamente atuante na sociedade, já foi preponderante, quando a Igreja era a instituição central de toda a sociedade. Eram as autoridades eclesiásticas que cuidavam da educação, legislação, condenação e uma série de outros aspectos, hoje ramificados por órgãos específicos do Estado.

Mesmo que formalmente os Estados sejam laicos e o poder das Igrejas restrito pela liberdade de escolha dos fiéis, em cidades pequenas e distantes dos centros urbanos as paróquias e seus padres ainda têm muita força de atuação. Assim as carências da população acabam sendo sanadas – ainda que aparentemente – pelo padre; em geral uma figura carismática, vista pelos fiéis como sábia e representante divino.

Levando para as telas sua versão da história do Padre Fernando Karadima (Luis Gnecco), o diretor chileno Matias Lira consegue mostrar claramente como a concentração de poder nas mãos da Igreja ainda causa muitos problemas, sobretudo por se tratar de uma instituição administrada por pessoas, que nada têm de santas, independente do que cada um espera desta classificação.

No filme as vítimas de Karadima são sintetizadas na figura de Thomas Leyton (Benjamín Vicuña). Qualquer jovem de uma pequena comunidade chega à igreja vendo no padre a autoridade máxima. A relação de subordinação é instantânea e a grande diferença de idade coloca o pároco em posição ainda mais privilegiada, pois suas experiências de vida o fazem prever o comportamento e muitas vezes até o pensamento do jovem seminarista.

A tática da Igreja de manter a população amedrontada, temendo os supostos castigos divinos impiedosos, é uma arma recorrente de Karadima, que coloca atitudes comuns como pecado, censurando o prazer a ele vetado pela igreja. Os desejos sexuais aflorados na adolescência é apenas uma das ferramentas do padre, através da qual estabelece vários laços com Thomas – afetivos, coercitivos, sociais, etc.

Não bastasse o vínculo insano criado pela pedofilia, Karadima ainda tem o poder econômico a seu favor, pois deixa claro que paga os estudos do seminarista, que nunca chegou a ter plena convicção de seu dom para o sacerdócio. Se tentarmos nos colocar no lugar de Thomas devemos nos afastar de nossas alternativas à subordinação ao padre e compreender que a formação daquele indivíduo sempre teve as opções bloqueadas pelo padre.

A história ganha ainda mais complexidade quando Thomas começa a se relacionar com Amparo (Ingrid Isensee). Ao mesmo tempo em que Karadima tem que preservar seu segredo ele insiste em manter as rédeas da situação com uma espécie de jogo de xadrez psicológico com o casal. O diretor opta por mostrar um lado mais sensível do padre, que demonstra um ciúme quase incontrolável de Thomas.

De tão execrável a pedofilia não costuma nos dar margem para procurar algum traço de humanidade naquele que a pratica, mas ao exibir o padre como uma pessoa que tem seus sentimentos feridos e que quer manter o controle sobre seu seminarista, o filme mostra que um pedófilo não é uma figura estereotipada do mal. É um alerta para que pais e responsáveis não baseiem a confiança na aparência. Um potencial abusador pode ser alguém tão gentil e atencioso quanto um padre.

Evidente que estereótipos são ineficientes independente da abordagem. Mesmo com vários escândalos de pedofilia relacionados a membros da igreja, tendo sido a denúncia de Fernando Karadima uma das que estimularam outras vítimas a denunciarem explorações semelhantes, também existem vários padres com papel importante na comunidade em que atuam, preenchendo uma lacuna que as pessoas encontram em seus cotidianos.

O que devemos questionar é se essa atuação não deveria ser uma das opções da população, ou seja, que o padre da igreja local sirva de referência somente para os seguidores daquela religião em questão, tendo alternativas provenientes de outras instituições aos que assim preferirem.

Essa descentralização seria ruim para uma instituição que sempre teve pretensões políticas extremamente amplas, porém reduzindo o poder da Igreja e relegando a ela somente a esfera religiosa seria mais difícil que os padres se envolvessem em escândalos sexuais, que sempre ocorreram nas mais diversas hierarquias eclesiásticas, mas que hoje a multiplicidade dos meios de comunicação faz com que seja cada vez mais difícil esconder o escândalo embaixo do santo graal, ou do tapete.


terça-feira, 27 de setembro de 2016

Boi Neon

O Brasil não é grande somente geograficamente. Culturalmente temos tanta diversidade que é bem difícil ter contato com os vários tipos de expressões artísticas e costumes marcantes de cada região. Uma forma de conhecer um pouco mais das culturas específicas que se espalham pelo país é através do cinema, que retrata cotidianos distintos das grandes cidades – que, infelizmente, concentram praticamente todas as salas de exibição.

Um bom exemplo disso é o longa do diretor Gabriel Mascaro, que mostra os bastidores das vaquejadas apresentadas pelo nordeste. O conflito entre cenas rústicas e afeto entre os personagens às vezes causa estranhamento, mas o sentimento é gerado mais pelo inusitado diante de um cotidiano desconhecido do que pelo filme em si.

Não se trata dos rodeios que em algumas cidades se tornaram eventos gigantes, que movimentam grandes cifras e pagam prêmios milionários. As vaquejadas são bem mais simples, rústicas e acabam expressando a vida daqueles que a tornam possível. Para que se chegue aos bois derrubados e imobilizados pelos cavaleiros existe muito trabalho pesado, mal remunerado e desconsiderado.

É interessante vermos a indignação – legítima – de algumas pessoas com o tratamento dispensado aos animais no filme. Existe uma louvável onda crescente de preocupação com os maus tratos, porém o que fica muito chamativo é a aproximação do estilo de vida das pessoas, frequentemente animalizadas.

Os personagens são transportados junto com os animais, dormem em espaços improvisados que mais parecem um curral, tomam banho ao ar livre improvisando uma cortina sob o caminhão. A forma com que tratam os bois não é pior do que a forma como são tratados pelos fazendeiros.

Qual o limite da diferença de tratamento entre humanos e animais é bastante discutível. Há até quem veja o filme e não encontre nada de errado com nenhum dos tratamentos. Porém uma demanda é primariamente distinta: a cultura. Ainda que a própria vaquejada possa se encarada como uma forma de expressão cultural, é latente a necessidade de cultura por parte dos personagens, seja de forma consciente – buscando atividades lúdicas que fujam do convencional – ou inconsciente, para que ascendam para uma vida mais digna.

A expressão artística é mostrada de forma curiosa no filme. Galega (Maeve Jinkings), a caminhoneira que leva o gado para os locais das vaquejadas, é também uma dançarina que ao som de músicas bregas e vestindo uma bizarra cabeça de cavalo se apresenta aos peões em um palco improvisado.

A vestimenta de Galega fica por conta de Iremar (Juliano Cazarré), o vaqueiro que quebra o estereótipo de atitudes masculinas desenhando roupas femininas e sonhando em trabalhar com costura. Assim como a dança de sua amiga, as roupas de Iremar não primam pela qualidade estética e deixam claro que a falta de referências artísticas é um fator bastante limitante para o trabalho alternativo dos dois.

Essa crítica, que pode parecer elitista, é pertinente a partir do momento que as expressões artísticas dos personagens não criam uma identidade própria, mas tentam imitar sem sucesso o que é considerado de bom gosto.

Grandes formas de arte nasceram marginalizadas antes de chegar ao reconhecimento, porém traziam elementos novos e contestadores, que são praticamente vetados aos personagens que, sem acesso à cultura, acabam já fazendo um grande trabalho ao romper com estereótipos de gênero.

Fica clara a perpetuação desta forma rústica e animalizada da vida com a personagem infantil Geise (Samya de Lavor). Filha de Galega e abandonada pelo pai, não há meritocracia que livre a menina de seguir os passos daqueles que a cercam. Adultos que foram tratados como bichos a vida inteira não veem outra forma de tratar a criança, senão de forma rude. Pode parecer evidente para quem vê de longe, mas para os personagens nem sempre é perceptível que às vezes a menina só precisa de um abraço.

A forma com que olhamos para os comportamentos sociais não é estática. A própria indignação com os maus tratos aos animais é relativamente recente. Trazer esse incômodo para as telas de forma direta e crua, aproximando a vida dos animais com a das pessoas, pode abrir caminho para uma conscientização de que comportamentos são aprendidos e relegar seres humanos a uma vida rude e desnecessariamente difícil só pode resultar em atitudes reprováveis, que não irão mudar com um passe de mágica.


terça-feira, 13 de setembro de 2016

De longe te observo (Desde allá)

O diretor venezuelano Lorenzo Vigas Castes consegue abordar em seu longa diversos tipos de violência, desde as mais evidentes até as nuances que, de tão naturalizadas, podem passar despercebidas, ainda que causem desconforto do começo ao fim do filme.

Sendo Caracas uma típica grande metrópole sul-americana, reúne a desigualdade social necessária para que a primeira e mais clara ideia de violência apareça. Isso fica ainda mais evidente ao observarmos que Armando (Alfredo Castro) é o protagonista representante da classe média, proprietário de um laboratório de próteses, com uma renda que proporciona uma vida materialmente confortável.

Em pouco tempo notamos que a figura aparentemente alvo da violência de uma metrópole desigual é amparada por uma estrutura de outras violências, ocultas ou por serem banalizadas e aceitas como normais ou por acontecerem longe dos espaços públicos que garantiriam notoriedade.

A sexualidade costuma ser encarada pela sociedade de forma bastante ambígua, para não dizer hipócrita. O olhar de censura de pessoas mais conservadoras torna alvo de preconceito condutas que são encaradas por muitos como imorais, partindo do princípio que entre quatro paredes haveria um comportamento padrão e correto, fora do qual as pessoas deveriam ser marginalizadas, ainda que suas práticas não interfiram em nada no convívio com a sociedade.

Neste ponto a figura de Armando é contraditória e emblemática. Visitando a periferia da cidade ele oferece generosas quantias de dinheiro para que jovens rapazes tirem a roupa em seu apartamento e ele se masturbe. Se por um lado a sexualidade de Armando é reprimida e ao mesmo tempo sua atração por homens é censurada, por outro lado a exploração de jovens, ainda que já tenham completado dezoito anos, com uma supremacia econômica é um abuso a ser combatido.

Foi em busca de jovens para satisfazer suas fantasias que Armando chegou até Elder (Luis Silva). No outro extremo da pirâmide social, o rapaz é o estereótipo de um perfil cuja existência já caracteriza uma violência contra sua classe. Com a família desestruturada, trabalhando desde cedo e praticando pequenos furtos para complementar a renda, Elder é normalmente visto como agente ativo da violência urbana. Raramente ele ou a classe que representa é vista como uma vítima da violência estrutural, necessária para manter privilégios econômicos de uma pequena parcela da população.

Elder se vê dividido entre a tentação pelo dinheiro fácil e a pressão da censura, mais pela homossexualidade que pela moral, ainda que não houvesse na proposta de Armando a necessidade de contato físico. Aparentemente a situação econômica degradante não permite a seleção das fontes de renda, porém a homofobia parece mais forte que as necessidades materiais.

A partir de então o que parece é que Armando não vê no jovem apenas mais uma fantasia a ser consumida, mas alguém em quem valeria a pena insistir para que se torne uma pessoa melhor, desde que tenha acesso a condições que deveriam ser básicas para qualquer pessoa, mas que na prática são restritas aos que têm poder econômico.

Uma exploração só tem espaço onde uma das partes possui em excesso o que a outra parte carece. Isso não acontece necessariamente através de dinheiro ou bens materiais. Na relação retratada Elder possui como única moeda de troca seu próprio corpo, que é objeto de desejo de Armando. Este em contrapartida não tem somente o dinheiro, mas também uma série de outros confortos materiais, capital cultural, experiência de vida e o que Elder parece ter sido privado por toda sua vida: afeto.

Ao olharmos para uma relação entre pessoas de idades muito diferentes uma série de abusos podem ser listados, um deles é a manipulação psicológica que ocorre em qualquer relação, ainda que involuntariamente. O agravante nesse caso é a discrepância de experiências de vida. Armando não é apenas mais velho que Elder, mas também tem muito mais cultura e uma vida diversificada, comparada à do jovem que no máximo deixa a periferia onde mora.

O diretor joga muito bem com as atitudes dos personagens mostrando sempre a ambiguidade de situações que fogem do simples certo ou errado. Estamos habituados com filmes estruturados na ideia de mocinhos e bandidos muito bem definidos, mas quando se falar em violência urbana de forma coerente com problemas sociais reais, tudo fica muito mais misturado.

A repressão sexual é um tipo de violência, assim como a privação de direitos sociais básicos. Se a prevenção a essas violências não foi possível, a correção deve ser feita de forma responsável e adequada. Um erro nunca se corrige com outro.


terça-feira, 6 de setembro de 2016

O Vulcão Ixcanul (Ixcanul)

Esse é um daqueles filmes que ultrapassam completamente o limite o entretenimento. Não é divertido, talvez nem prazeroso, mas leva às telas uma realidade comum em locais remotos da América Latina. O cotidiano da protagonista Maria (María Mercedes Croy), assim como dos moradores vizinhos, é a síntese de dificuldades e preconceitos que não se restringem à Guatemala, tudo muito bem apresentado pelo diretor Jayro Bustamante.

Se por um lado os valores do mundo globalizado chegaram ao local, com tudo o que vem de fora visto como exemplo a ser seguido e referência de boa qualidade, por outro toda a base de vida dos moradores está nas tradições locais. Isso gera um choque de costumes que acaba oferecendo a parte ruim de cada lado.

A economia local é baseada no cultivo do café e milho, que mobiliza toda a força de trabalho para o plantio e colheita de um produto que será totalmente exportado, em contrapartida o que vem de fora para os moradores são produtos de má qualidade, visto como melhores simplesmente por virem dos Estados Unidos.

Com a má remuneração e vida difícil todos buscam formas de uma ascensão social, ou ao menos algo que traga algum tipo de conforto. Uma das formas é a antiga, e machista, tradição do casamento arranjado. É assim que a família de Maria pensa em conseguir uma vida melhor. O desconforto da moça tímida e insegura diante de uma situação inevitável, contra a qual nada pode fazer, é constrangedor.

Subjugado ao poder econômico, o machismo não garante aos homens locais a prosperidade, apenas oferece possibilidades que são negadas às mulheres. Essa também é uma característica de todas as formas de exploração, ou seja, na ausência de uma educação emancipatória os indivíduos explorados não lutam pela ascensão em comum, mas na prosperidade individual, que supostamente faria com que passassem à categoria de exploradores.

É assim que Pepe (Marvin Coroy) planeja emigrar aos Estados Unidos, sonhando em desfrutar das casas grandes, carros, fartura e todas as facilidades que o capitalismo proporciona para uma fatia pequena da população. Na construção onírica que os moradores fazem dos Estados Unidos não existe o preconceito contra imigrantes latinos, sendo que o vilarejo tem o agravante (para quem visa a migração) de falar somente o dialeto Kaqchikel.

Tendo muito mais identificação com Pepe do que com o marido que os pais escolheram, Maria faz de tudo para que ele a leve para os Estados Unidos, sem se dar conta de que as maravilhas norte-americanas são vedadas a eles, tão pouco que o machismo faz com que Pepe tenha muito mais liberdade de ao menos arriscar uma vida nova e partir em uma aventura – ainda que as restrições norte-americanas sejam as mesmas – do que Maria, que tem sua função social muito mais restrita e submissa.

Aos que ficam resta a exploração contínua em vários níveis; as mulheres pelos homens, estes pelos seus superiores, que serão explorados pelo dono da fazenda. Com um cotidiano tão duro é bastante natural que os moradores idealizem um local melhor e sonhem em viver nessa suposta perfeição. Na verdade, a parte do preconceito já mencionado, não haveria condições de um único país abrigar todo mundo e para um país atingir níveis de dominação global tão elevados, é indispensável que boa parte da população siga como o povoado retratado.

A única forma de produzir tanta riqueza é através da relação comercial que fica implícita ao longo do filme, ou seja, produtos primários são cultivados por quem recebe uma miséria pelo trabalho pesado que realiza e o valor agregado ao longo das transações comerciais serve para manter as relações econômicas.

O misticismo religioso, que acaba sendo uma das poucas opções que os moradores veem para se apegar, também prejudica o desenvolvimento na medida em que casa muito bem com o conformismo da situação de vida, atribuindo as dificuldades às forças sobrenaturais, como a do próprio vulcão que dá nome ao filme.

Um intermédio entre a cultura local e as comodidades que poderiam vir do exterior deveria ser pensado no sentido de oferecer aos moradores o que há de melhor em cada um dos lados, trazendo conforto com produtos externos e aproveitando a riqueza cultural da população, ao invés da velha tática de oferecer quinquilharias em troca do trabalho pesado que enriquece as grandes potências.


terça-feira, 30 de agosto de 2016

Sr. Kaplan (Mr. Kaplan)

O diretor uruguaio Alvaro Brechner utiliza o humor com muita competência para, através do protagonista Jacobo Kaplan (Héctor Noguera), apresentar algumas reflexões pertinentes sobre a forma de encarar a vida em uma idade mais avançada.

Existem inúmeras maneiras de olhar para a própria vida. Alguns vivem presos a um passado, outros vivem sonhando com um futuro perfeito, muitos prezam pelo presente, mas o fato é que sempre planejamos muitas coisas e vamos adaptando as expectativas de acordo com os imprevistos do destino.

Se na juventude temos a impressão de um tempo infindável pela frente, pensando assim em carreira, família, viagens, bens materiais, etc., Jacobo se aproxima dos oitenta anos, tem um casamento de meio século, filhos, netos, aposentadoria e várias outras realizações.

Na ausência da imensa perspectiva da juventude, Jacobo começa a buscar figuras longevas conhecidas ao longo da história para servirem de referência, mas não é somente a preocupação com o tempo de vida ou novos planos que o preocupam.

Uma característica extremamente comum na velhice, e muitas vezes negligenciada pelas pessoas próximas, é a dificuldade de lidar com as limitações do corpo. Aquela pessoa que sempre trabalhou e foi extremamente ativa começa a sentir o peso dos anos e a ter dificuldades para fazer coisas simples. Por mais que as mudanças sejam graduais, ninguém que se habituou a ser independente gosta de passar a precisar de ajuda para tarefas cotidianas.

Perder a capacidade de dirigir não é um incômodo pelo fato isolado, mas é visto como uma deficiência que se soma às outras. Em uma sociedade em que a velhice é vista como uma coisa ruim, como se fosse algo possível de ser evitado, Jacobo não vê valor nas coisas que tem, tão pouco exalta suas experiências de vida que o permitem refletir sobre as pessoas que o cercam.

A necessidade de realizar algo grandioso, que prove ao mundo e a ele próprio que sua vida não está em uma ladeira sem freio, associada a uma série de fatos que parecem se encaixar muito bem, Jacobo acredita ter encontrado um soldado nazista, que a exemplo de Eichmann fugira para a América do Sul para se livrar do julgamento no pós-guerra.

Olhando a história de longe, sobretudo em uma comédia recheada de cenas satíricas, é possível concluir que o plano do velho judeu de capturar um ex-soldado da SS para que este cumpra pena pelos crimes que cometeu seja uma insanidade; sobretudo em uma região que conta com muitos imigrantes germânicos e que costuma dar apelidos às pessoas com base em estereótipos, o fato de haver um alemão apelidado de “nazista” não significa que ele realmente tenha sido combatente da segunda guerra.

Por outro lado, muitas vezes ao longo da vida nos apegamos a certezas que com o passar dos anos são desconstruídas e, ainda que publicamente possamos tentar esconder, acabamos admitindo em nosso íntimo o quanto fomos inocentes – para dizer o mínimo – diante de determinada situação.

Para Jacobo tudo convergia para a situação perfeita. Era sua chance de realizar um fato grandioso, marcar seu nome na história, provar que ainda era uma pessoa ativa e dar um sentido para a vida que ele acreditava estar vazia.

Um caso isolado pode ser ótimo roteiro de comédia, sobretudo quando o protagonista tem ajuda do ex-policial Wilson Contreras (Néstor Guzzini) para sua investigação. Ambos oferecem cenas muito divertidas em meio à trama, suavizando a expectativa pelo desfecho em relação ao suposto nazista. À parte do entretenimento, cabe pensarmos na vida de Jacobo de uma forma mais ampla.

Será mesmo necessário provar algo ao mundo quando se tem uma vida toda nos ombros? O protagonista introjeta os valores de uma sociedade que coloca a velhice como uma coisa ruim, dada as limitações físicas que, em maior ou menor grau, são inevitáveis. Essa introjeção é compreensível, porém questionável não somente no filme, mas em todos os idosos.

Em certa medida pagamos na velhice a conta dos abusos ao longo da vida. Não há elementos sobre a juventude do personagem, mas pensando de forma geral, salvo exceções, quanto mais imprudentes somos quando jovens, maiores serão as consequências físicas, porém não devemos negligenciar os ganhos intelectuais que acumulamos ao longo da vida e chegam ao ápice justamente na velhice.

Se a atuação da passagem do tempo em nossos corpos é inevitável, não nos resta outro caminho além de aceitar a depreciação física, cuidando ao longo da vida para que os efeitos sejam ao menos atenuados. 


terça-feira, 23 de agosto de 2016

A hora e a vez de Augusto Matraga

Guimarães Rosa é um dos ícones de nossa história. Não bastasse levar a medicina nos recantos do sertão mineiro, ainda reuniu as histórias que ouvia do povo em livros, transformando pessoas simples em personagens que misturam realidade e ficção, com a linguagem inovadora e os elementos que o transformaram em expoente do modernismo brasileiro.

Uma contribuição posterior está no rico potencial cinematográfico de suas obras e um ótimo exemplo disso é essa adaptação do diretor Vinícius Coimbra. Não se trata de comparar com o livro, afinal são linguagens distintas com objetivos muito diferentes entre si, mas trazer para as telas características peculiares de nosso povo.

Augusto Matraga (João Miguel) tem em si a ambiguidade explorada na construção de alguns personagens de nossa literatura, talvez o mais famoso neste sentido seja Macunaíma, de Mário de Andrade, onde a dualidade é mostrada de forma mais escrachada. Augusto Matraga está longe de ser o herói bonzinho que costumamos ver nos cinemas, tão pouco é um vilão, visto que principalmente da metade da obra em diante, mostra virtudes louváveis.

O protagonista acaba sendo a síntese das contradições sociais de nossa história. Imerso em um universo extremamente machista, Augusto trata a esposa Dionóra (Vanessa Gerbelli) como uma propriedade tão legítima quando as próprias terras, até mesmo na tentativa de defender – terras e esposa – de inimigos que querem tomar posse. Não é surpreendente que Dionóra aproveite a primeira oportunidade para fugir. É possível interpretar que a fuga não é exatamente do marido, mas da objetificação que faz com que a ela não reste nenhuma alternativa para tentar evitar os vícios e brigas do marido.

Se por um lado existe uma pressão social para que o homem seja valente e não hesite antes de puxar a arma para quem quer que seja, por outro a hierarquia econômica sobrepuja a valentia do sertanejo. Augusto Matraga podia ser um fenômeno de valentia e destreza com uma arma na mão, mas isso não fazia com que pudesse combater de igual para igual os coronéis com grande poder econômico.

Foi uma derrota desastrosa para os capangas do coronel Consilva (Chico Anysio), que exerce seu poder econômico colocando em prática a violência extrema e cruel sem precisar mover um dedo, que fez Augusto Matraga se dar conta de que era passível de derrotas.

Entra em cena outro aspecto fundamental que marca a sociedade brasileira, a religião, por vezes exacerbada, que permeia todas as classes sociais. É evidente que o uso prático da fé também é alterado conforme a classe. Não que Augusto Matraga não fosse fiel a Deus antes de se ver a beira da morte, mas é um momento em que sua vida muda radicalmente em todos os sentidos e a espiritualidade aflora como uma forma de reconhecimento de que a vida esteve por um fio e ele se salvou por muito pouco.

O contraponto do lado vilão de Augusto Matraga também ganha mais corpo, afinal os valores altruístas e o trabalho pesado não surgiram do nada; são características que sempre estiveram com ele, mas nunca foram estimuladas. Agora o protagonista exerce novos valores, porém como uma espécie de penitência pela graça alcançada, não por assimilar aquelas atitudes como a melhor forma de viver.

Por fim, o último personagem simbólico e significativo é Joãozinho Bem-Bem (José Wilker). Uma espécie de cangaceiro cujo poder se mantem pelo medo. Não há o poder econômico dos coronéis, pois seus bens materiais são ilegais, mas há o poder de quem parece estar acima da lei.

Joãozinho Bem-Bem joga com o apoio da população fragilizada para não ter seu poder ameaçado. Para conquistar o povo oferece coisas básicas, às quais todos deveriam ter acesso, assim ele consegue uma reputação ambígua. Além de temido é também admirado e muitas vezes adorado pela população, pois se todos respeitarem suas ordens terão recompensas.

É uma relação ruim porque anula liberdades individuais e subjuga a população à arbitrariedade de um cidadão civil, porém o combate a esse tipo de problema nunca é feito em sua base, ou seja, fornecendo aos indivíduos educação e emprego que sejam emancipatórios.

A ideia de alguém que preencha uma lacuna deixada pelo estado é muito anterior à obra de Guimarães Rosa e está longe de ter um fim. Basta trocarmos o sertão por uma favela para notarmos que os personagens mudam, mas a estrutura permanece forte.


terça-feira, 9 de agosto de 2016

O valor de um homem (La loi du marché)

O título original do filme teria como tradução “A lei do mercado”. São enfoques opostos, já que o valor do protagonista Thierry (Vincent Lindon) é bem diferente das leis do mercado de trabalho, de onde ele está distante há quase dois anos, com uma condição financeira cada vez mais precária.

Provavelmente a intenção do diretor Stéphane Brizé foi ressaltar o quanto o mercado pode ser perverso, sobretudo em tempos de crise, quando a falta de vagas de emprego e o grande contingente de desempregados torna-se uma ótima oportunidade para os donos de empresa renovarem sua folha de pagamento, reduzindo os custos de produção e extraindo o máximo das forças de trabalho daqueles que não podem perder a fonte de renda, ainda que esta seja baixa.

Thierry não é um adolescente recém-chegado ao mercado, mas um homem de 51 anos, com esposa e um filho com necessidades especiais. Se por um lado isso proporciona experiência e responsabilidade, por outro cria a necessidade de remuneração mais alta – exatamente o que as empresas querem evitar.

Do ponto de vista do ‘mercado’, essa entidade tão abstrata e tão onipresente, a capacidade de capitalizar cada detalhe da sociedade inclui também as crises econômicas e o desemprego. Não por acaso a renda mundial está cada vez mais concentrada, chegando a igualar a riqueza do 1% mais rico aos outros 99% restantes.

Durante as crises cíclicas que regem a economia, quem tem capital para investir sabe muito bem que proporcionar formação profissional para que os desempregados voltem a trabalhar pode ser muito lucrativo.

Vemos que Thierry, e tantos em situação semelhante, chegam ao ponto de investir o pouco que lhe resta na tentativa de voltar ao mercado e retomar sua fonte de renda. Para isso é sensato pensar em um curso de aprimoramento profissional. É depois de gastar uma quantidade considerável de dinheiro que os desempregados se dão conta de que fazer o curso não garante uma vaga, até porque quanto maior o desemprego, maior a quantidade de profissionais que fazem o mesmo curso, dispostos a trabalhar por um salário ínfimo, que é melhor do que nada.

Outra especialidade do mercado de trabalho é desarticular a organização de trabalhadores, colocando uns contra os outros desde antes da contratação. Talvez mais insano que as entrevistas de emprego, com suas dinâmicas de grupo que beiram uma comédia de mau gosto, são as preparações para tais entrevistas. É como um roteiro mal escrito, com perguntas sem sentido, que visam selecionar um perfil profissional que abdique de valores pessoais – daí o título original – em prol da manutenção de um mercado predatório.

Depois de muitas dificuldades, Thierry finalmente consegue o tão sonhado novo emprego. Segurança em um supermercado. Bem provável que o local tenha sido uma escolha simbólica e sensata do diretor; no supermercado imperam as tais leis do mercado de forma suprema.

No país do filósofo Michael Foucault, Thierry trabalha com a aplicação prática do panoptismo – conceito desenvolvido pelo filósofo. O local é monitorado por dezenas de câmeras, porém estas são controladas por apenas um funcionário, ou seja, não existe nenhuma garantia de que clientes e funcionários são observados no exato momento de um eventual delito, mas sempre existe essa possibilidade.

Pela lei do mercado as peças haviam se encaixado. Um desempregado havia conseguido um emprego, recebia pouco mas melhor que nada, exercia a função de delatar quem quer que cometesse algum delito e independente de cliente ou funcionário, alguma punição teria que ser aplicada, não importa qual o motivo ou a situação pela qual a pessoa estivesse passando na hora em que quebrou a regra.

Muita gente cai na tentação do imediatismo, buscando conforto na ideia de que basta não fazer nada de errado, ou ainda em uma comparação simplista com as atitudes de Thierry durante o desemprego, ou seja, se ele passou por dificuldades sem apelar para os delitos, não há porque ser complacente com desconhecidos que não tenham a mesma conduta.

Esse conformismo com a estrutura predatória de mercado, que coloca trabalhadores uns contra os outros, é benéfica para os proprietários de empresas, contribuindo diretamente para a concentração de renda insana e crescente em nossa sociedade.

Sobretudo em uma situação de crise econômica, impor uma competição para aqueles que passam por dificuldades financeiras para com isso concentrar a renda nas mãos de quem não passa por nenhum tipo de necessidade bate de frente com o valor de um homem, desde que este tenha um olhar minimamente crítico para o que acontece ao seu redor.


quinta-feira, 28 de julho de 2016

O abraço da serpente (El abrazo de la serpiente)

O diretor Ciro Guerra montou seu filme baseado em diários do pesquisador Theodor von Martius, desbravador e defensor dos índios da Amazônia colombiana, porém a exploração da população local sempre segue uma métrica padrão, que nos permite identificar no filme elementos comuns à história das tribos indígenas americanas.

A opção estética pela filmagem em preto e branco traz um resultado interessante. O fotógrafo Sebastião Salgado, notório adepto da técnica, diz que a ausência de cores nivela os elementos da imagem, ressaltando assim o conteúdo retratado. Aqui vemos esse mesmo efeito. A mata densa e exuberante da floresta amazônica fica espetacular em filmagens, mas retirar as cores não reduziu a qualidade da obra, isso somente estimula os olhares habituados às imagens coloridas a verem novos detalhes e diferentes perspectivas.

A personagem central do filme é o índio Karamakate (Nilbio Torres e Antonio Bolivar). Com dois períodos de tempo intercalados ao longo da obra, quando jovem o índio conheceu Theodor (Jan Bijvoet) já gravemente doente e buscando ajuda. O contato foi repleto de desconfiança por parte do indígena. Não era para menos, afinal suas experiências com os brancos haviam sido terríveis.

Quarenta anos depois o pesquisador Evan (Brionne Davis) encontra o mesmo Karamakate e pede ajuda na busca da mística planta yakruna. Karamakate está diferente. Depois de tanto tempo vivendo isolado na mata, o índio carrega o enorme peso de ser o último de sua tribo, tendo esquecido boa parte dos costumes que tanto valoriza.

O contato entre culturas distintas proporciona diversas apropriações, que nem sempre são ruins. A troca de conhecimento entre povos distintos foi fundamental para o desenvolvimento da ciência, trazendo muitos benefícios para a humanidade. O problema é que desde a chegada dos europeus os índios foram vistos como seres menores que, portanto, poderiam ser subjugados e explorados sem nenhum pudor.

No Brasil temos uma visão bastante simplista de que na impossibilidade de escravizar os índios, os portugueses trouxeram os negros para o trabalho escravo. Não está completamente errado, mas isso não significa que os índios não tenham sofrido as mais diversas violências ao longo de nossa história. Foram vários ciclos de exploração esgotando junto com os recursos naturais a vida e a cultura indígena.

Um dos ciclos mais recentes, abordado no filme, é o da borracha. Todo o norte da Amazônia, incluindo a parte colombiana, fornecia borracha para o enriquecimento do mundo às custas de índios seringueiros que, quando não escravizados, recebiam quantias módicas pelo trabalho duro. O filme tem apenas uma cena que mostra diretamente essa exploração, mas é extremamente forte e impactante.

O papel da igreja é, na melhor das hipóteses, insuficiente. Se por um lado tenta proteger crianças indígenas dos exploradores, por outro mantem o papel secular da instituição na América do Sul, inibindo à força toda a cultura indígena e impondo castigos físicos que tornam a atuação daqueles que dizem prezar pelo amor ainda mais hipócrita.

No filme a jornada do índio, tanto com Theo quanto com Evan, constrói uma linha temporal repleta de fatos históricos e conhecimento indígena que aos poucos vai sendo resgatado dos escombros proporcionados pela intervenção dos brancos. Infelizmente os elementos característicos da interação entre os povos são sempre prejudiciais para o mesmo lado.

Uma breve olhada nos noticiários atuais nos mostra que os conflitos e a exploração não se restringem ao passado ou a um filme. O desrespeito com as terras indígenas é contínuo e muitas vezes os índios, verdadeiros donos, são tratados como invasores.

Ao longo de séculos de exploração fomos condicionados a ver as questões indígenas como problemas restritivos, cujas resoluções trariam benefícios ou para os índios ou para os brancos, porém essa é uma falsa dicotomia que omite o fato dos indígenas serem explorados em prol de poucos milionários, que se apoiam no preconceito para afirmarem estar do lado certo.

Pensando no contexto da região amazônica, uma real justiça fica nas entrelinhas do filme logo no início. Quando Evan diz que dedica a vida às plantas Karamakate diz que essa é a coisa mais sensata que já ouviu de um branco. No meio do bioma mais rico do planeta, a preservação da mata e o trabalho em conjunto, que respeite os índios levando em consideração o conhecimento empírico das tribos, contribuiria para a exploração sustentável da floresta, resultando na descoberta de medicamentos e recursos que de fato beneficiem a população.


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