terça-feira, 23 de junho de 2015

Pecados do meu pai (Pecados de mi padre)

O diretor Nicolas Entel aborda um tema delicado com seu documentário. A obra é baseada em arquivos de família, que retratam a vida de Pablo Escobar, o famoso chefe do cartel de drogas da Colômbia. Entrevistando seu filho, Sebastian, e sua mulher, Maria Isabel Santos, a ideia parece ser desconstruir parte do mito que envolve o nome de Pablo Escobar e mostrar um pouco do que há por trás do tráfico de drogas.

Apesar de ser uma produção colombiana e ter como foco a sociedade local, a história da América Latina como uma grande colônia de exploração é sempre muito próxima, sendo replicada em vários países de forma semelhante. A despeito das particularidades sociais e da riqueza cultural da região, a exploração sempre se deu de forma impiedosa.

Os grandes ciclos de exploração, ou seja, do ouro, da prata, do açúcar, do café, da borracha, etc., sempre renderam fortunas meteóricas para poucas pessoas, que se mantém no poder há décadas, por vezes há séculos quando uma análise histórica mais apurada é feita. O que fica para trás é uma legião de pessoas pobres, sem recursos e sem assistência por parte do estado.

Desamparados, sem emprego e sem dinheiro, essas pessoas não possuem a capacidade de desaparecer. Assim como no Rio de Janeiro ou São Paulo, onde favelas maiores que muitas cidades são criadas, Bogotá sofre com os efeitos da superpopulação aglomerada e carente de recursos.

Tudo isso para chegar ao ponto chave do tráfico de drogas. Não é por acaso que a espinha dorsal do tráfico reside na América do Sul. Ter clima e solo favoráveis para a produção das drogas é um fator de peso, assim como políticas ineficientes no combate ao tráfico, contando com o auxílio de autoridades que nos bastidores trabalham em conluio com traficantes. Porém é nas grandes cidades que o tráfico trabalha quase livremente, atuando em lacunas do Estado.

Não se trata de defender o tráfico ou atenuar os problemas sociais causados por ele. O próprio documentário deixa claro o terror imposto à população e a forma impiedosa com que os líderes do tráfico tratam seus adversários. Curiosamente boa parte da população, sem perceber, apoia as ações impiedosas quando são postas em prática pelas autoridades policiais, como se uma farda descaracterizasse o crime.

Semelhante às facções criminosas brasileiras, Pablo Escobar liderava um cartel que arrecadava cifras milionárias, suficiente para que sua família não tivesse mais onde gastar o dinheiro, sobrando um dividendo suficiente para levar às comunidades que abrigavam pontos de tráfico serviços de saúde, lazer, educação, nunca antes vistos. Esta não é a solução para os moradores locais, pois são serviços ilegais e permeados por diversos problemas. Ainda assim são suficientes para criar entre a população local e o chefe do tráfico uma identificação inexistente entre população e Estado.

Assim como a origem histórica da violência e do tráfico de drogas é a mesma em diversos países, a tentativa desastrosa de combate também é compartilhada. Ou seja, após retratar exaustivamente na mídia quem são os vilões do tráfico, a única ação gira em torno de eliminá-los prendendo ou matando, deixando as lacunas de serviços básicos sem a devida assistência.

Não é o foco do documentário abordar como deveria ser a postura do Estado diante do tráfico. O filme acaba sendo até simplista em colocar Sebastian como exemplo a ser seguido, dado que poderia ter herdado o cargo do pai, mas preferiu sair da Colômbia para salvar a própria vida e se afastou de qualquer ligação com o tráfico. O que cabe lembrar aqui é que os problemas sociais são mais profundos do que a visão maniqueísta tem a nos oferecer.

Em geral olhamos para o problema do tráfico como uma engrenagem defeituosa na sociedade, portanto bastaria retirar essa engrenagem personificada nos chefes do tráfico e tudo voltaria a funcionar normalmente. O problema é que retirando os traficantes – medida realmente necessária – o terreno fica livre para a atuação de outras ilegalidades.

A população maltratada, seja através da violência física por parte de policiais despreparados, seja através da violência simbólica por parte da falta de infraestrutura estatal, é uma porta aberta para novos chefes do tráfico. Atacar apenas um tipo de violência significa manter o eterno ciclo de poder, em que o tráfico tem status de protagonista, sendo na verdade coadjuvante da concentração de renda e exploração histórica de toda a América Latina.


terça-feira, 16 de junho de 2015

A incrível história de Adaline (The Age of Adaline)

Uma mulher que com pouco menos de trinta anos para de envelhecer e mantém a mesma aparência mesmo tendo vivido mais de cem anos. Essa ficção bastante metafórica é o pano de fundo para o filme do diretor Lee Toland Krieger.

A princípio parece ser o sonho de qualquer um. Balzac, autor do livro “A mulher de trinta anos”, define esta idade como sendo basicamente o ponto médio entre o ápice do intelecto e o ápice do físico da mulher. Imagine manter o ápice do físico e seguir aprimorando o intelecto por décadas.

Pensando na sociedade contemporânea, onde a manutenção da jovialidade ganha um status quase obrigatório, a vida da protagonista Adaline Bowman (Blake Lively) poderia se tornar ainda mais perfeita, mas evidentemente que aos poucos Adaline começou a lidar com os problemas da juventude eterna.

O desenrolar da história é um tanto óbvio. Com o passar dos anos as pessoas começam a estranhar o fato da moça não envelhecer nem um pouco, ainda mais em meados do século XX, sem botox ou uma indústria de cosméticos tão desenvolvida. Insegura sobre como lidar com a situação e com medo de como seria tratada caso a verdade fosse descoberta, o jeito era desaparecer de tempos em tempos e iniciar uma nova vida em algum local desconhecido.

Pode parecer sedutor. De vez em quando virar uma página da vida e começar tudo outra vez, mais experiente, moldando a vida de acordo com um ideal. O problema vem em longo prazo. Adaline não podia manter laços afetivos duradouros nem fixar raízes nos lugares que gostava. A exceção era a filha, que na história contemporânea já era apresentada como avó.

Deixando um pouco o passado da personagem e o ambiente onírico, conseguimos imaginar algumas críticas pertinentes do filme a um modo de vida bastante comum, não apenas em relação à aversão ao envelhecimento.

Em um mundo no qual todos devem transformar a vida em um livro escancarado e cada nuance da vida deve ser exposta, Adaline não podia sequer tirar uma foto, mesmo na época pautada pelas selfies, em que inúmeras ferramentas são oferecidas para que possamos expor tudo o que vivemos, do fato mais interessante ao que deveria ser muito bem guardado dentro de cada indivíduo.

Claro que mesmo em tempos de redes sociais, todos nós temos a opção de não aderir ao estilo extremamente exposto e nos mantermos mais reservados, distantes do mundo digital. Por mais que a tecnologia avence, ainda é possível manter ao menos no plano individual certa reserva.

O problema é que essa forma de exposição tem extrapolado os limites virtuais e se estendido para uma forma de vida muito mais ampla. Relacionando com o período do filme, ao longo do século passado era condizente um estilo de vida mais reservado, até pela forma de organização social. A maioria das pessoas trabalhava em linhas de produção nas quais a conversa entre funcionários sequer era bem-vinda. Era mantido um contato com poucas pessoas mais próximas e com os familiares.

Hoje essa realidade é muito diferente. O mercado de trabalho é muito mais dinâmico e as pessoas mais valorizadas são aquelas que se expressam, que chamam a atenção e se tornam marcantes por onde passam. Com algumas exceções, esse é o perfil selecionado nas dinâmicas de grupo, o estereótipo valorizado como exemplo e referência.

O comportamento dos ambientes corporativos acaba sendo estendido para as relações pessoais e familiares, formando então uma realidade bem diferente daquela vivida há algumas décadas. O fator econômico também influencia em relação à maior possibilidade de mobilidade social.

Se Adaline dissesse, na década de 60, que tem um emprego em determinada indústria e pretende seguir dessa forma até a aposentadoria, o mais provável é que todos aceitassem isso como normal – até que a moça desaparecesse por seus motivos pessoais. Hoje uma carreira deve ser construída desde cedo. É impensável permanecer muito tempo em um mesmo emprego e isso implica em falar sobre experiências passadas, planos, metas, vivências e expor a própria vida de uma forma que Adaline não poderia se adequar.

O filme não entra explicitamente no conflito de comportamento gerado pelas diferenças de gerações. O foco principal está mesmo na angústia de viver diversas vidas, sem criar raízes, mas é pertinente pensarmos o quanto a valorização do passado do indivíduo ganha destaque.

Alguém que não se mostre extremamente transparente quanto ao que já viveu ou ao que ainda pensa em viver não é bem visto. Não importa se o comportamento reservado seja devido a algo que não quer compartilhar ou simplesmente uma opção de vida. Somado às mudanças sociais citadas, o imediatismo que marca nosso atual estilo de vida torna cada vez mais difícil um olhar que busque mistérios e suas soluções, ainda que em pequenos fatos cotidianos.


terça-feira, 9 de junho de 2015

Casa Grande

A relação entre casa grande e senzala, onde o proprietário de terras morava com sua família na sede da fazenda e comandava centenas de escravos, habitantes das senzalas, existiu durante a maior parte da história do Brasil. Formalmente não existe mais. A organização social que formava quase um feudo, mais cruel que os originais europeus, não seria viável após a abolição da escravatura.

Porém o que vemos nas ruas, e agora nas telas com o longa do diretor Fellipe Gamarano Barbosa, é que os elementos dessa estrutura não existem, mas seus símbolos seguem pautando nossa sociedade de forma muito intensa, minando um desenvolvimento social que seria benéfico para todo o país, inclusive para aqueles que exploram, mas sem dúvida principalmente para aqueles que há cinco séculos sofrem com a exploração.

O enredo guarda certa semelhança com o livro “Amar, verbo intransitivo”, escrito por Mário de Andrade em 1927, com uma família de classe média-alta, com muito mais dinheiro que cultura, perpetuando preconceitos e desigualdades. Diferente do livro, que mostra a ascensão da elite paulistana, o filme retrata a alta sociedade carioca, através da família de Hugo (Marcello Novaes).

Como qualquer investidor de risco, quando ganha dinheiro com as oscilações da bolsa sem produzir absolutamente nada, Hugo fala em mérito; quando perde, como de fato ocorre, culpa o governo e as críticas se estendem aos programas sociais. É muito cômodo, para aqueles que vivem de renda, criticar programas supostamente voltados para quem não trabalha, o problema admitir que uma posição favorável na escala social facilita muito a própria vida.

O contraponto social da família de Hugo é apresentado pela parte relativa à senzala, ou seja, os empregados da família. Com a crise econômica que atinge a família, o primeiro a ser sacrificado é o motorista Severino (Gentil Cordeiro), mas para o filho Jean (Thales Cavalcanti), que tinha mais contato com o motorista, os pais alegaram que ele tirou férias.

Jean é o personagem central do filme, que converge as influências da família e dos empregados, de quem acaba sendo bem próximo, de uma forma ou de outra. É em quem os pais depositam suas esperanças – a despeito da filha mais nova, que costuma ser ignorada, como uma nuance que indica o tradicional machismo – e depositam também seus medos.

Após a demissão do motorista resta ao jovem ir de ônibus para a escola, o que é visto como sinônimo de terror para os pais. Chega a ser patético os pais dando instruções sobre onde descer e qual caminho tomar, como se estivessem falando com uma criança. Este medo faz parte da estrutura social. De forma inconsciente, os preconceitos disseminados só podem ser mantidos quando os fatos não desmascaram as ideias.

Tanto entre os empregados quanto no pouco contato que Jean tem fora de seu círculo pessoal, ele vê qualidades muitas vezes inexistentes em seus próprios pais, sempre com uma preocupação desmesurada com sua segurança e intervenção direta em sua futura escolha profissional. Cultivar o medo do desconhecido e fomentar a segregação social é uma maneira de sustentar o já citado discurso contra medidas sociais do governo e contra qualquer forma de reduzir, ainda que de forma tímida e insuficiente, o abismo social de nossa sociedade.

O discurso da família é o mais tradicional possível. Alegam que todos conseguiram crescer profissionalmente com os próprios méritos e não acham justo que pessoas tenha a vida facilitada por cotas. Mais do que rebater diretamente essa ideia rasa, o filme mostra as diferenças sociais, provando que o argumento da família não se sustenta.

Ainda que quando comparado ao ápice do conforto a família esteja passando por uma dificuldade econômica, a situação ainda é muito mais favorável que, por exemplo, a das famílias de seus próprios empregados. Todo o capital social, as referências profissionais e as condições de estudo de Jean o colocam vários degraus acima dos filhos dos empregados. O mesmo raciocínio extrapola os limites do filme e se estende para uma infinidade de exemplos reais, que podemos conferir apenas olhando pela janela.

Os problemas pessoais de Jean, ou mesmo as temporárias dificuldades econômicas de sua família, não devem ser desprezados, mas seria muita discrepância tentar usar os conflitos de um adolescente ou os supostos esforços pessoais de Hugo, que não chegam sequer a serem comprovados, como argumento contra qualquer medida que busca um mínimo de equidade social.

O que vemos no filme é que a casa grande, ou a classe que metaforicamente é representada por ela, segue no comando e continua impedindo, por meios mais sutis que a escravidão institucionalizada, uma imensa massa subjugada de ascender socialmente.


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