terça-feira, 24 de janeiro de 2012

Casa Velha (Casa Vieja)

Alguns anos depois da Revolução Cubana, Abelardo Estorino escrevia a peça "Casa Vieja", que fazia um recorte da sociedade cubana e mostrava um pouco da transição pela qual esta passava. O valor das expressões artísticas para a formação ideológica é historicamente consagrado e os revolucionários cubanos aproveitaram este poder para disseminar os ideais de igualdade social entre a população, que poucos anos antes era governada por um regime bastante diferente do que tomara o poder. No Brasil o poder da arte como formadora de censo crítico é notável, mas infelizmente por seu oposto, pois para isso basta notarmos como os artistas foram perseguidos e exilados durante a ditadura militar, ou como os atuais programas de televisão subestimam a inteligência de qualquer um, mantendo seus telespectadores entretidos com obras cada vez mais fracas, previsíveis e sem graça.

Em Cuba, que mantêm desde a revolução um cinema crítico e fortemente presente em meio à população, os filmes continuam permeados por metáforas que instigam o debate entre os que assistem aos filmes. Neste contexto o diretor Lester Hamlet filmou sua versão para "Casa Vieja", re-contextualizando a essência da peça e atualizando as formas com que os conflitos são expressos, de acordo com as recentes mudanças na sociedade cubana.

No filme, o protagonista Esteban (Yadier Fernández) volta da Espanha depois de quatorze anos, quando sabe da morte iminente de seu pai. Chegando à capital cubana o jovem encontra um cenário bastante semelhante ao que deixou quando mudou de país, porém com a morte do patriarca sua família se vê diante de mudanças, com as quais não sabe lidar muito bem, após tanto tempo seguindo a mesma rotina.

É possível uma interpretação literal da obra, focando as atitudes de cada personagem diante da nova vida que de repente cai em suas mãos – ainda que a morte do pai parecesse anunciada, esse tipo de infortúnio sempre nos pega despreparados. Enquanto Esteban luta para ser aceito pela família e se esforça para que o respeito tome o lugar do preconceito, seus parentes se recusam a tolerar certas coisas que em nada influenciam em suas vidas, e cuja intolerância tem a capacidade de dificultar todo tipo de relação entre as pessoas. Aparentemente parece inconcebível que tal situação se estabeleça, no entanto o preconceito muitas vezes está tão enraizado na sociedade, que sequer notamos certos absurdos que cometemos, e apenas percebemos as incoerências quando estas são vistas de longe. Esquecendo os alvos que sofrem com a resistência do preconceito e pensando na curiosa situação de algo que permanece ruim sem sabermos exatamente o porquê – simplesmente por uma tradição sem sentido – podemos ver que não são raras as ocasiões que nos falta coragem, ou mesmo percepção, para pequenas mudanças de comportamento que nos leve a grandes benefícios pessoais.

Conforme já citado, os filmes cubanos não costumam ser tão simplistas e evidentes, dando margem a uma série de interpretações e associações com fatos cotidianos. Produzido durante uma significativa transição de poder na ilha, esta versão contemporânea de “Casa Vieja” pode ser vista como uma metáfora para o estado cubano, que foi governado por Fidel Castro ao longo de quase cinquenta anos. Com as recentes mudanças na ilha, é natural que a população se sinta desorientada, tal qual a família que perdeu seu patriarca, tendo agora que passar por um período de adaptação com a nova situação e as novas leis. Se por um lado as mudanças sociais na ilha são inevitáveis, afinal seria impossível e prejudicial manter um país nos moldes da década de 60, por outro a população cubana é politizada e instruída o suficiente para desenvolver sua economia de forma consciente, ou seja, sem que o capital seja dominado por especuladores.

Outra forma de pensar o filme, até complementar à anterior, é que Cuba nunca chegou a ser um país socialista, muito menos comunista, porém possui uma forma única de organização política e social, que conta com defeitos e problemas – como qualquer outro estado – mas também pode se orgulhar de fatores sociais invejados por muitos países. O medo do que vem de fora, simbolizado por Esteban, ou até mesmo o preconceito contra o que é diferente do tradicional, pode ser visto como a negação do que é estrangeiro e que em Cuba significa, entre outras coisas, um longo embargo econômico.

O economista Paul Singer, cujos estudos atuais são voltados para a economia solidária e desenvolvimento local, não nega a eficiência do mercado para a distribuição de bens na sociedade. O fundamental é que o governo cubano não negue erros e equívocos – que sempre existem em qualquer governo – e mantenha o ideal de igualdade social entre suas metas, de forma que a abertura da economia funcione em prol da erradicação da miséria, ao invés da concentração de capital.


terça-feira, 17 de janeiro de 2012

1984

Who controls the past
controls the future.
Who controls the present
controls the past.


O diretor Michael Radford fez essa ótima adaptação da obra homônima de George Orwell, tornando ambas indispensáveis. O filme é bastante fiel à essência do livro, tendo evidentemente cortado algumas partes, sobre tudo as detalhadas diretrizes do fictício partido ‘Ingsoc’, que comanda de forma totalitária a sociedade retratada.

Orwell concluiu sua obra no fim da década de 40, fortemente influenciado pela Segunda Guerra e o totalitarismo que culminou na destruição de boa parte da Europa. O conteúdo de 1984 é a imaginação de como seria o mundo caso certas ideologias triunfassem, com controle de mídia, adulteração de acontecimentos, imposição de valores e costumes, além do estado atuando com mãos de aço sobre a população, que nada pode fazer além de seguir as ordens de quem tem a pretensão de zelar pelo bem estar do povo, como se este fosse incapaz de opinar ou escolher seus próprios caminhos.

O filme foi rodado no mesmo ano do título, curiosamente filmado nos mesmos dias retratados no diário que o protagonista Winston Smith (John Hurt) escrevia escondido do ‘Grande Irmão’, uma câmera que vigiava a todos os indivíduos. O curioso é que o totalitarismo, ao menos da maneira como retratada por Orwell, foi derrotado e no ano do título a Inglaterra – plano de fundo da obra – vivia uma situação política bem distinta. Seria, portanto uma obra anacrônica?

Ao longo da década de 80 países da América Latina eram governados por ditaduras militares que por vezes beiravam a encenação da obra de Orwell. A tortura aos que lutavam contra o governo, o controle de informações (com as famosas receitas de bolo no lugar de matérias censuradas nos jornais), a imposição de comportamento, etc. faziam com que a população tendesse a uma massa uniforme e acrítica, com focos de resistência, que com maior ou menor intensidade eram reprimidos pelo governo de partido único. Ainda que a realidade de tais países não fosse tão dura e rígida quanto o cotidiano narrado por Orwell, as semelhanças existiam e eram bem nítidas. Felizmente a grande maioria dos países tem hoje um cenário político multipartidário, com eleições periódicas e alternância de poder. Terá a obra de Orwell, mais de sessenta anos após o lançamento, se tornado anacrônica?

O regime totalitário dificilmente se sustenta por muito tempo, sobretudo em sociedades mais articuladas e instruídas, onde os focos de resistência encontram formas de fazer pequenas manifestações e, a partir delas, conseguir grandes repercussões. Porém Foucault já falava sobre a capilaridade do poder, que não precisa se expressar de forma grandiloquente por ter a capacidade de estar presente nos pequenos detalhes e em nuances da sociedade.

No filme o partido, que passa o dia todo dando informes através das telas espalhadas por todos os lugares, exalta o fato do analfabetismo ter subido a 56%. É evidente que atualmente essa é uma propaganda negativa para qualquer governo, mas não é por acaso que a educação vem sendo sucateada aos poucos, juntamente com a habilidade dos governos de países subdesenvolvidos de maquiar dados, divulgando baixas taxas de analfabetismo e omitindo o analfabetismo funcional. Portanto não é que a população aceita determinados absurdos, mas ela sequer os reconhece, encarando muitos abusos como atitudes corretas e necessárias.

A forma de noticiar fatos do dia-a-dia vem para complementar as ações do governo. Por um lado não há mais a censura direta do período da ditadura – sendo específico sobre o Brasil –, mas a mídia comandada por uma oligarquia de famílias, mais que tradicionais no ramo da comunicação, faz com que os interesses privados de classe permaneçam bem acima dos interesses da sociedade, enviesando tanto o conteúdo coberto pela mídia quanto a forma com que isso é feito, formando opiniões e guiando a maior parte da população para o lado que for mais conveniente.

Após alguns anos de população quase adestrada podemos verificar que quando em pequenos grupos, a população tem liberdade de criticar o governo e expressar a própria opinião, sem que isso termine inevitavelmente em tortura institucionalizada como na obra de Orwell. Porém qualquer manifestação que comece a ganhar maiores proporções, sob a falácia de restauração da ordem ou algo do tipo, é duramente reprimida pela polícia – que continua militar, mesmo após o fim da ditadura – com o respaldo da mídia, e consequentemente da população, que acaba acreditando que o monopólio legítimo da violência (uma das premissas estatais) pode e deve ser usado sem limites e sem alternativas.

A falta de contestação por parte da população e a submissão diante de qualquer abuso contra a sociedade, ou mesmo contra um único indivíduo da sociedade, abre caminho para a perpetuação de um estado que favorece poucos em detrimento de muitos, que aos poucos aprendem a amar um sistema que oprime, castra e limita as possibilidades, antes infinitas, dos indivíduos. Sem sombra de dúvidas, livro e filme são mesmo obrigatórios.


terça-feira, 10 de janeiro de 2012

Domésticas - o filme

O filme dirigido por Fernando Meirelles e Nando Olival inova ao colocar como protagonistas as profissionais que costumam atuar no máximo como coadjuvante. Aqui as domésticas ganham voz para, com bom humor, narrar histórias do cotidiano, que envolvem desde casos amorosos até problemas gerados pelo abuso de poder dos patrões, que muitas vezes insistem em olhar para empregadas domésticas como verdadeiras remanescentes da escravidão constitucionalizada.

Sem uma grande trama central, o roteiro difuso do longa aglomera pequenas histórias de algumas empregadas, que apesar de enfrentar dificuldades semelhantes em seus serviços, mantêm a individualidade com sonhos particulares, que tentam por em prática a despeito dos empecilhos encontrados no caminho.

É possível encontrar em meio às cômicas trapalhadas várias críticas a problemas sociais, que de tão enraizados muitas vezes sequer são percebidos ou classificados como tais. Conforme já mencionado, a existência de uma empregada para fazer os serviços domésticos é uma herança social da época da escravidão, quando algumas negras eram criadas nas casas dos patrões para aprenderem, desde cedo, a fazer os serviços necessários na ‘casa grande’, porém tendo sempre em mente a diferença social gigantesca que afastavam as pessoas que conviviam na mesma casa. Não é por acaso que ainda hoje a maioria das empregadas domésticas são negras; muitas exercem a mesma profissão das antepassadas, assim como durante a escravidão; e muito frequentemente as leis trabalhistas, que finalmente começam, de forma bastante tímida, a chegar a estas profissionais, são burladas descaradamente, sem que algo seja feito a respeito.

Os sonhos das personagens geralmente envolvem mudar de vida e de emprego, almejam um serviço melhor, quem sabe onde sejam tratadas com mais respeito e recebam salário digno, e condições para ter uma vida que fuja do cotidiano, cansativo pelo trabalho duro e pela repetição. Porém o ciclo de vida é fortemente fechado pela falta de estudo de quem teve que abandonar a escola para trabalhar. Mesmo o filme não mostrando diretamente a formação das personagens, é possível tirar conclusões a partir de uma série de códigos de conduta de todas elas.

Apesar do humor do filme divertir e ajudar a quebrar a acidez pesada que muitas vezes cerca o trabalho das domésticas de muitas dificuldades, talvez o roteiro pudesse ser um pouco mais direto e crítico em suas denúncias, pois mesmo não tendo a intenção de explicitar certos problemas sociais, esta possibilidade poderia ter sido mais bem explorada sem comprometer o gênero de humor, presente a todo momento. É importante que a desconstrução de alguns estereótipos, como o de que certas pessoas supostamente não querem estudar, consequentemente só conseguem trabalhos pesados e mal remunerados, seja bastante clara, pois a desigualdade de condições é histórica e atrapalha a todos, atingindo vários níveis sociais em diferentes proporções. Não estudar nem sempre é uma opção, sendo que manter a população sem estudo é uma forma de continuar tendo mão-de-obra para serviços como os de doméstica e ainda manter a população passiva, aceitando a exploração do trabalho com normalidade.

Um sintoma de que existe a consciência por parte das empregadas domésticas da importância da qualificação profissional é que, com a economia brasileira aquecida, houve um aumento na procura por empregadas por parte da classe média, com isso o valor cobrado pelos serviços domésticos aumentou e já existem pesquisas indicando que a renda extra das empregadas vem sendo investida na educação dos filhos. É claro que há uma série de barreiras sociais que dificultam a ascensão das classes mais baixas e ter mais tempo de estudo não é garantia de emprego, porém é uma etapa fundamental, tanto para o desenvolvimento profissional quanto para a consciência em relação a certos abusos promovidos por conflitos de classes.

Outra característica que notamos após um período de aquecimento econômico é a escassez de profissionais dispostos a vender a força de trabalho bastante pesado dos serviços domésticos. Com a falta de empregadas, que se dá tanto por algumas delas terem mudado de profissão quanto pelo aumento de famílias que agora estão dispostas a contratar alguém para cuidar da casa, aumentou também a indignação das classes mais altas, que sempre, desde a escravidão, foram acostumadas a pagarem pouco e explorar muito as trabalhadoras que agora começam a reivindicar nada mais que direitos minimamente básicos.

Ainda que o filme seja tímido nas críticas, é uma boa comédia que faz com que finalmente as domésticas ganhem papel de destaque no cinema, como indivíduos protagonistas das próprias vidas, ao invés de coadjuvantes em casas de classe média.


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