segunda-feira, 30 de julho de 2012

A Culpa é do Fidel! (La faute à Fidel!)

Com muitos estereótipos, metáforas e bom humor a diretora Julie Gavras nos apresenta seu filme, que nos remete aos anos 70, no conturbado período pelo qual o mundo passava. Com a consolidação da Revolução Cubana, a eleição de Salvador Allende no Chile e o governo fascista de Franco na Espanha, acompanhamos a família da pequena Anna de la Mesa (Nina Kervel-Bey) na França, cujos pais são militantes de esquerda e a babá, vinda de Cuba, extremamente reacionária, causando grande confusão tanto para ela quanto para o irmão mais novo.

Se por um lado os pais mergulharam cegamente na ideologia comunistas, preocupando-se até mesmo com símbolos inúteis como pintar as paredes do novo apartamento de vermelho, a babá é o símbolo extremo de uma ideologia reacionária. Velha, teimosa, ranzinza e sem querer abrir mão da tradição que favorecia economicamente sua família, passa conceitos errados para a menina, que os absorve mesmo sem compreender muito bem o que significa os tais “barbudos vermelhos”.

A menina, perdida entre os dois extremismos que não costumam primar pela argumentação, simboliza bem a população como um todo, ou seja, aquela maioria que não chega a se preocupar com o rigor teórico das ideologias que dividiram o mundo durante a guerra fria, mas que acabam tomando partido pela informação recebida de alguma forma.

É evidente que a princípio a babá leva vantagem ao tentar persuadir a jovem, já que é uma família tradicional, na qual Anna cresceu por quase dez anos, até que mudam para um apartamento menor, com outra babá e outros hábitos. A simples ideia da mudança já pode assustar e gerar desconfiança, sendo que uma mudança baseada em decréscimo econômico sem dúvida irá desagradar uma criança que ainda não entende muito bem o que motiva tudo aquilo.

Já seus pais, levados à militância graças ao assassinado de um parente espanhol pelo regime franquista, passaram a ver na ideologia do partido tudo o que procuravam, mas parecem ter esquecido de que essa transição nada tinha de natural para os filhos. Mergulhados em muito trabalho, optavam pelo caminho mais rápido em relação às crianças, assim passaram a proibir o catecismo da filha, mudaram a rotina da menina e deram poucas explicações sobre tudo o que estavam vivendo.

Dentro do universo infantil, que tem a deliciosa tendência de fantasiar o dia-a-dia, o choque entre as imagens criadas pela babá e as vividas em contato com os pais gera muita confusão, até que algumas peças comecem a se encaixar e a menina possa tirar suas conclusões baseadas tanto no que ouve quanto no que vive.

A vantagem que a menina leva em relação à sociedade é poder viver próxima de situações conflitantes do ponto de vista ideológico, para só então comparar certos fatos e tirar as próprias conclusões, ainda que tendenciosa por viver o tempo todo com os pais. Talvez os tais barbudos vermelhos não fossem tão maus quanto dizia a babá, que não explicava muito bem o que estava querendo dizer. Por outro lado, talvez o grande valor que os pais davam ao comportamento em grupo poderia ser apenas como uma ovelha que acompanha o rebanho. Portanto as fontes de informações, ainda que parciais, são multifacetadas, diferente da maioria da população com acesso majoritário à mídia oficial.

Chama a atenção ao longo do filme o maniqueísmo com que a menina é tratada, da mesma forma que a clivagem entre capitalismo e comunismo é apresentada ao longo da história. Tanto os pais quanto a babá limitam-se a exaltar os pontos que defendem e criticar a oposição de forma vazia, sem deixar muito claro o porquê das divergências – possivelmente por ignorarem os reais motivos, sobretudo a babá que evidentemente não tem nenhuma clareza sobre o que é a ideologia comunista.

Diante destas certezas tão frágeis que são defendidas ao longo do filme, a dialética parece ter espaço para atuar e formar uma conclusão multifacetada, baseada não somente em opiniões com pouco fundamento, mas comparando diversas fontes para uma decisão mais sólida e fundamentada, diferente da opinião pública, que desde os anos 70 parece abrir mão cada vez mais de uma ideologia fortemente embasada, aceitando qualquer opinião difundida pela mídia, por mais que soe como um conto de fadas. Chegam até mesmo a acreditar que a culpa, de tudo, é de Fidel.


quinta-feira, 19 de julho de 2012

Linha de passe

Esta parceria dos diretores Walter Salles e Daniela Thomas nos traz o cotidiano de uma família do subúrbio de uma grande cidade, focando estereótipos bastante reais para apresentar um estilo de vida muito comum, repleto de dificuldades e inundado de sonhos.

A matriarca Cleuza (Sandra Corveloni) cria seus quatro filhos sozinha, grávida mais uma vez e se esforçando para trabalhar como doméstica até o limite que sua gravidez impuser. Sem carteira de trabalho assinada, ela não tem direitos trabalhistas e, mesmo com três filhos já adultos, depende de sua renda para sustentar a casa.

O meio social de um indivíduo não determina seu futuro, mas evidentemente influencia nas escolhas e decisões, ainda que inconscientemente. Cada um a sua maneira, os quatro filhos de Cleuza mostram como as dificuldades econômicas, a ausência da figura paterna e outras influências externas acabam contribuindo com detalhes, que quando somados resultam em uma perpetuação da condição de vida da família, na qual todos tentam driblar as dificuldades a seu modo.

Enquanto o quinto filho de Cleuza não nasce, o caçula é Reginaldo (Kaique de Jesus Santos). Ainda criança sua principal preocupação é distinta dos irmãos mais velhos. Reginaldo é obcecado por conhecer o pai. Ainda não superou esta falta e gosta de passar o dia em um ônibus circular por desconfiar que o motorista seja seu pai. Este resquício de origem familiar é suficiente para inspirar o menino a seguir os passos do pai e ele sonha em ser motorista. Há uma bonita cena em que o homem ensina o garoto, sem saber da relação de paternidade. A influência familiar na escolha da profissão é forte em todas as camadas sociais. Antes de pensar nas vantagens e desvantagens que uma carreira pode trazer, uma criança como Reinaldo se espelha no primeiro herói da criança, seu pai, para sonhar com o futuro.

Com o passar dos anos a tendência é que a realidade da ausência do pai ganhe espaço. Dario (Vinícius de Oliveira) já não busca o pai, mas mantém um futuro utópico ao tentar ser jogador de futebol. Sua grande categoria esbarra em dois empecilhos, a idade avançada para iniciar a carreira profissional – mesmo tendo apenas dezoito anos – e a falta de dinheiro, pois pagar ao olheiro facilitaria o caminho para a tão sonhada oportunidade. A ilusão criada pelo mundo milionário dos grandes clubes de futebol seduz muitos jovens como Dario, que podem inclusive abrir mão de possibilidades reais em prol do mundo de sonhos que se concretiza para tão poucos. Sua mãe, também com pouca instrução e muitos problemas e fanática por futebol, não chega a instruir o filho a seguir seus sonhos mantendo uma hipótese mais plausível em vista.

Denis (João Baldasserini) em um aspecto parece ter seguido os passos da mãe, pois já é pai e a pensão do filho é só mais uma das obrigações financeiras da qual o jovem não dá conta. Com pouca qualificação, o trabalho de motoboy toma boa parte de seu tempo. Quase sem referências familiares e com poucas relações sociais para procurar alternativas à sua realidade, o jovem é constantemente tentado a entrar para o mundo do crime. Uma saída perigosa, criticável e que deve ser evitada, mas as alternativas de Denis não são as mais atraentes.

Por fim, Dinho (José Geraldo Rodrigues) aparentemente tem uma vida mais estável e menos problemática, trabalhando como frentista e dedicando sua vida ao engodo de uma igreja evangélica, com as famigeradas técnicas de sedução de fiéis, imputando nestes a culpa por problemas cotidianos muitas vezes atribuídos à falta de fé. Se por um lado Dinho leva dinheiro para casa e tenta aconselhar os irmãos, por outro parece fadado a uma vida estagnada naquela condição, mais controlado pelo pastor da igreja do que responsável pelas próprias escolhas.

Linha de passe está longe dos filmes de ação hollywoodianos ou das comédias sem graça da Globo Filmes, porém próximo da realidade de uma parcela considerável da população. Se o filme parece lento, é por retratar a vida de personagens que vivem para trabalhar, sacrificando distrações para viver as preocupações de uma vida difícil.

Culpar cada um individualmente pela condição de vida que leva é uma ideia tão sedutora quanto falsa. A baixa qualificação, os sonhos quase impossíveis, as decisões equivocadas não devem ser atribuídas a outros fatores distintos do capital social que cada um carrega, criando um campo de possibilidades extremamente restrito, que só não impõe barreiras aos sonhos, que inspira cada personagem a seguir em frente. Em meio a tantas dificuldades, talvez haja momentos de prazer para colorir um pouco o trabalho da vida.


quinta-feira, 5 de julho de 2012

XXY

Como o título já indica, o longa da diretora Lucia Puenzo aborda, através da protagonista Alex (Inés Efron), a vida de uma pessoa com cromossomos XXY, que possui, portanto, características físicas femininas e masculinas. Em uma sociedade ainda presa a rótulos, em qual se encaixa a sexualidade de alguém que biologicamente foge dos padrões da maioria das pessoas?

Alex tem 15 anos, idade confusa para qualquer adolescente, repleta de dúvidas, confusões pessoais, conflitos internos e externos, etc. Além de não fugir dessa fase, a protagonista ainda tem que lidar com ambiguidade física de seu corpo, que lhe garante grande confusão quanto ao seu próprio gênero.

Para evitar o assédio dos médicos que insistiam em oferecer uma cirurgia, que pelos diálogos do filme parece mais uma oportunidade de estudo de um caso raro de medicina, do que uma real preocupação com o bem estar da paciente, a família mora em uma pequena vila de pescadores no Uruguai.

É mais difícil evitar o assédio da população local, que ao perceber que há algo diferente em Alex, criam várias especulações sobre sua vida. Infelizmente o preconceito em relação ao que foge dos padrões tradicionais não se restringe à pequena vila isolada, nem somente aos casos de indivíduos com cromossomos XXY. Estes apenas confundem os que insistem em impor um padrão fechado a ser seguido.

Em tempos em que o deputado João Campos (PSDB-GO), da bancada evangélica, luta para que psicólogos sejam autorizados a curarem homossexuais, o filme de Lucia Puenzo pode se tornar mais uma tentativa de explicar o que nem deveria ser tão difícil de entender: a sexualidade não é uma doença. Tão pouco se restringe às características biológicas dos corpos.

Diante da obrigatoriedade maluca imposta aos indivíduos de seguir a sexualidade do próprio corpo em uma heteronormatividade, o que fazer com um indivíduo cujo corpo não define claramente ser um homem ou mulher? Com a puberdade a menina deve tomar comprimidos para evitar o crescimento de barba e o desenvolvimento de outras características masculinas no corpo, mas a sexualidade extrapola a vontade externa. Alex para de tomar os remédios, mas não tem certeza se quer assumir as características masculinas. Qualquer adolescente tem dúvidas diante de questões muito mais simples, que dirá diante de algo que afetará toda sua vida.

Os pais tem papel fundamental na vida de Alex. Kraken (Ricardo Darin) e Suli (Valeria Bertuccelli) não sabem muito bem como agir em várias situações – como quando a menina decide parar de tomar os remédios – porém a obrigatoriedade de lidar com a situação, e a relação afetiva de pais e filhos, faz com que o casal aprenda na prática a tolerar o que é diferente do que esperavam. Esta é uma importância fundamental do cinema e outras formas de arte, pois tem o poder de expor casos extremamente condizentes com a vida real, naturalizando o que muitos ainda veem como errado dado à falta de conhecimento e falta de contato com o que é diferente do que estão habituados.

Os homofóbicos, sempre curiosamente preocupados em impor um comportamento, deveriam notar através de XXY que a sexualidade não se restringe às características físicas dos indivíduos, e respeitar a orientação de cada um já é uma grande evolução para um comportamento que há séculos reprime de forma violenta uma parcela da população, simplesmente por não seguir um padrão imposto com toda força e ignorância.

A homossexualidade pode ser coibida através da força, como fazem em países como Irã ou Afeganistão e como já foi feito em nossa sociedade, onde inacreditavelmente há saudosistas interessados em resgatar essa prática patética. O filme Maurice (de James Ivory, 1987) mostra bem como alguém pode ceder às pressões sociais e abrir mão dos sonhos para seguir um padrão de vida imposto. Difícil entender como as pessoas que fazem questão de ditar regras de comportamento se satisfazem com isso; mais fácil é notar a frustração de quem deve lutar contra algo que bate de frente com seus próprios sentimentos.

Para a protagonista Alex não há a opção de lutar contra os sentimentos para se encaixar no padrão que lhe oferecerem. Talvez o melhor seja tentar viver a vida, que como qualquer outra terá vários problemas, e deixar as pequenas mentes presas em padrões retrógrados perderem tempo discutindo sua situação.


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