terça-feira, 24 de novembro de 2015

Sem pena

Que a situação dos presídios brasileiros é degradante e desumana, não dá para negar. A divergência em torno do tema é que muitos defendem que o tratamento dado aos presos deve mesmo ser o pior possível, destituído de qualquer tipo de consideração, dado que estão, em tese, pagando por um crime.

O que o diretor Eugênio Puppo faz em seu documentário é, através do depoimento de diversos envolvidos no sistema prisional, mostrar algumas incoerências que permeiam os presídios e o sistema judiciário, nascidas muitas vezes na desigualdade social, que faz com que aquele que julga esteja sempre muito distante da realidade do que é julgado.

Fomentada por diversos setores da sociedade, a ideia de justiça baseada exclusivamente na punição com o encarceramento ganha cada vez mais força em nosso país. Não por acaso temos a terceira maior população carcerária do mundo, que cresce a passos largos. O detalhe é que estamos atrás da China, com uma população mais de cinco vezes maior, e EUA, que além da população também maior tem uma política extremamente repressiva e criticável.

Uma das falsas premissas em relação ao tema é a de que se o indivíduo está preso é porque cometeu algum delito. Logo no primeiro depoimento essa ideia é rechaçada com a narrativa de alguém que foi confundido com o criminoso e cumpriu pena injustamente. De fato não há sistemas perfeitos e isentos de injustiça, entretanto o caso do filme é apenas um entre tantos que uma população carcerária tão grande implica; e com a condição tão precária dos presídios brasileiros é um motivo mais do que forte para não tolerarmos tais equívocos.

Outro problema latente é a desproporcionalidade da pena, que está diretamente ligada aos diversos preconceitos enraizados na sociedade. O direito não é uma ciência exata, muitas leis são imprecisas e a aplicação está sempre condicionada ao julgamento. Desta forma pessoas que são presas portando algum tipo de droga ilegal podem receber desde penas simbólicas, quando classificadas como usuários, até vários anos de prisão, mesmo portando pequenas quantidades de droga.

O radicalismo dos que afirmam que o porte de determinadas substâncias configura crime, passível de punição severa, deveria esbarrar na complexidade de problemas sociais, que não podem ser sanados com argumentos simplistas, quase infantis.

Vendo alguns depoimentos de presos e mesmo o de um juiz notamos o quanto existem percepções completamente distintas em relação à realidade que cada camada social vive. Apesar de ser muito evidente para aqueles que tiveram uma mínima condição de conforto ao longo da vida que algumas atitudes são ilegais, portanto passíveis de punição, uma parte considerável da sociedade nasceu e cresceu em um mundo completamente distinto.

Esperar que uma pessoa nasça e cresça em meio à violência, vendo parentes e vizinhos presos ou mortos, e ainda assim crie naturalmente um padrão moral semelhante ao da classe média, que sempre teve acesso à educação, cultura, lazer e tudo mais, é tão inocente quanto acreditar que o simples encarceramento por determinado período é eficiente no combate ao crime.

Independente de quanto tempo que um indivíduo passe trancado em uma cela inóspita, essa medida não é – e sequer tem a pretensão de ser – corretiva. Pode ser tentador, ao ver que um preso voltou a cometer um crime ao ser posto em liberdade, pensar que ele deveria ter passado mais tempo na cadeia, pois lá não teria como fazer nenhum mal, porém seria uma medida que somente adiaria o problema.

Alguns, até bem intencionados, acreditam ter encontrado a solução mágica ao afirmar que os presos deveriam trabalhar para bancarem o próprio sustento. De fato seria ótimo, talvez isso até capacitasse alguns deles para a vida pós-cárcere. Um detalhe relevante é que nenhum aspecto social deve ser encarado de forma isolada, pois os efeitos se espalham de forma ramificada. Em uma sociedade capitalista na qual sempre há um contingente de desempregados em maior ou menor porcentagem, alocar a população carcerária como força de trabalho implicaria em redução de salário, redução de vagas e aumento no desemprego entre os que não estão presos.

Ainda que fatores econômicos estejam na base de qualquer debate sobre o sistema prisional, não podemos restringir toda a criminalidade às necessidades econômicas. Basta pensarmos em grandes empresários que mesmo com ampla margem de lucro sonegam impostos – um tipo de crime que, não por acaso, não suscita reações de ódio.

Porém, mesmo as causas da violência sendo múltiplas, uma melhor equidade social só traria benefícios para um país tão carente de direitos e tão sedento por punições.


terça-feira, 17 de novembro de 2015

Numa escola de Havana (Conducta)

A educação em Cuba consegue competir em condições de igualdade com qualquer país de primeiro mundo. Diferente dos vizinhos caribenhos ou sul-americanos, a ilha tem índice de analfabetismo perto de zero, além de atingir metas da Unesco (Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura) que nem sempre são batidas por países desenvolvidos.

Entretanto o papel da escola na sociedade não se restringe a números. Talvez essa restrição seja até mesmo um dos grandes problemas da educação, independente do país. O que o diretor Ernesto Daranas mostra em seu longa é uma relação mais aprofundada e complexa, que não olha somente para as tabelas de resultado, mas para a escola inserida em um contexto social, relacionando os professores, alunos e familiares.

O protagonista é o jovem Chala (Armando Valdes Freire), o típico ‘aluno problema’, presente em todas as escolas. Estamos tão condicionados a pensar na escola como alunos sentados, em silêncio, ouvindo um professor ou copiando matéria, que o estereótipo do problema evidentemente são os alunos como Chala, que arruma brigas e promove desordem.

O que notamos com o desenrolar da história deveria ser bastante óbvio quando pensamos nos problemas da educação, ou seja, o comportamento humano não ocorre de forma puramente instintiva, estando diretamente ligado aos estímulos que recebemos, principalmente durante a infância.

É muito simplista olhar para uma sala de aula esperando que todos tenham o mesmo comportamento. Na verdade essa expectativa, que é generalizada, é tão absurda quanto a metodologia de lecionar o mesmo conteúdo, da mesma forma, esperando que todos aprendam de maneira homogênea. Somos seres distintos, compostos por inúmeras particularidades, que diferencia também a forma como cada um trabalha internamente os conteúdos apresentados.

No filme um pequeno contraponto do olhar incriminador lançado a Chala é a professora Carmela (Alina Rodriguez). Uma senhora que já formou diversas gerações de alunos e não restringe sua atuação à transmissão de conteúdo. Carmela tem uma relação muito mais próxima dos alunos, sendo para alguns quase um membro da família.

Do ponto de vista pedagógico poderíamos indicar alguns comportamentos questionáveis de Carmela, porém ela é a única que tenta compreender as atitudes de Chala a partir de sua história. Isso não quer dizer que ela permita qualquer atitude do menino, mas que compreende suas dificuldades.

Quem abstrai a vida familiar de Chala em sua escola ignora o fato do menino ter que lidar com a mãe dependente química, ter que adestrar cães para rinhas que renderão algum dinheiro e ter que lidar com a violência doméstica de um homem que ele nem sabe se é seu pai ou não. Seria no mínimo incoerente desprezar os problemas pessoais de uma criança se até na vida adulta, quando supostamente temos mais maturidade para lidar com dificuldades, levamos em conta aspectos pessoais ao avaliar o desempenho profissional.

Se a função da escola é formar cidadãos ela não deve se restringir ao conteúdo curricular e fechar os olhos para problemas externos quando um aluno não tem nenhuma outra fonte de ajuda. Isso seria a postura de uma instituição voltada para a formação de mão-de-obra para o mercado de trabalho.

Sob este prisma o fato de ser um filme cubano cria uma diferença fundamental na história. Até aqui poderíamos substituir Chala por uma infinidade de crianças ao redor do mundo, que também precisam enfrentar problemas desproporcionais à idade, além de serem cobradas por um bom comportamento e desempenho na escola.

A diferença é que em Cuba, sobretudo no primeiro período da revolução, a ideia era justamente formar cidadãos críticos, emancipados de um mundo voltado para o trabalho que enriquece patrões e aliena empregados. Não por acaso Carmela já tem idade avançada e está prestes a se aposentar.

Com comportamento bem distinto, os professores mais novos da escola não mostram a mesma empatia nem a mesma paciência com Chala. Mesmo que tenham tido aula com Carmela em seus tempos de criança, os novos profissionais tem a tendência de apoiar a transferência de Chala para um internato. Uma atitude muito mais próxima de quem quer formar mão-de-obra, mesmo que para isso seja necessário excluir os que não conseguem se adequar a essa ideia.

É claro que a escola não deve ser a única instituição responsável pela formação do indivíduo. É possível dizer que não é sequer a principal instituição, já que a maioria das crianças chega à escola com uma base familiar, que segue se desenvolvendo ao longo de todo o período escolar. Entretanto quando essa regra falha, como no caso de Chala e de tantos outros, não há nada melhor que a escola para a transmissão de valores e para a formação de um indivíduo.

Restringir a vida à mão-de-obra já é uma ideia terrível, quando essa restrição é imposta a alguém que dificilmente poderá contar com alternativas externas, é quase uma condenação inapelável.


terça-feira, 10 de novembro de 2015

Sala do Suicídio (Sala Samobójców)

No início do filme o adolescente Dominik (Jakub Gierszal) vive uma vida bastante confortável. Filho único em uma família rica, repleta de capital social e cultural, parecia ter um destino de sucesso traçado, desde que não saísse dos trilhos impostos pelos papéis sociais.

A guinada de sua vida começa na escola, quando começa a sentir atração por um amigo. O que era para ser uma brincadeira de adolescentes acaba ganhando outra dimensão e com a ajuda das redes sociais Dominik começa a sofrer de maneira intensa com o bullying.

É a partir deste ponto que o diretor Jan Komasa começa a diferenciar sua obra de tantas outras que abordam tema semelhante. Da mesma forma que na vida real inúmeros adolescentes sofrem bullying e reagem de diversas formas, Dominik é um exemplo de quem tem uma intolerância extrema aos insultos.

Não é possível julgarmos a reação das vítimas como certa ou errada. O erro está sempre naqueles que agridem; no caso do bullying essa agressão pode ser física, verbal ou virtual, como é o caso do filme. O extremo terror expresso pelo protagonista é compreensível ao pensarmos na sua relação com os pais.

Em nenhum momento Dominik tem uma educação efetiva por parte dos pais, que parecem confiar tão cegamente no caminho natural da vida do filho, que para eles significaria terminar os estudos, casar com uma bela moça e arrumar um excelente emprego, que sequer consideravam outra hipótese para o futuro dele.

O jovem que materialmente sempre teve tudo se mostra extremamente despreparado quando enfrenta uma situação de confronto. Sua reação diante do stress repentino é a fuga da realidade. A saída aparentemente perfeita vem com amigos virtuais que conhece na internet, que o apresentam à ‘Sala do suicídio’; um simulacro da realidade, onde cada um cria seu avatar e assume as características sonhadas – não necessariamente factíveis no mundo real.

Esse ambiente virtual tem ganhado muitos adeptos. O que a princípio parece apenas uma brincadeira ou um jogo acaba ganhando destaque a partir do momento em que mais ações podem ser representadas, fazendo com que as interações virtuais se aproximem bastante da expectativa dos participantes. Em pouco tempo algumas pessoas – como Dominik e os demais participantes da sala – passam a considerar aquele mundo virtual como suas vidas, não apenas como representações de avatares.

Podemos pensar em inúmeros problemas decorrentes dessa aparente substituição. O que fica mais evidente no filme é a fragilidade das relações que se estabelecem no ambiente virtual. Em comum todos querem a fuga de seus problemas, mas na ânsia de protagonizar a própria vida todos se esquecem de acolher quem está próximo.

Quando finalmente se dão conta de que algo está errado em casa, os pais de Dominik não veem um problema com o filho, mas um problema com os planos milimetricamente calculados por eles para a perpetuação de um futuro perfeito. O que os personagens do filme não percebem é que os planos só são perfeitos em um universo onírico. Mesmo no plano virtual nossos ideais esbarram em uma série de imprevistos, sobretudo quando nossas intenções se cruzam com as de outras pessoas. O inferno, já disse Sartre, são os outros.

Os pais do jovem, evidentemente acostumados a de uma forma ou de outra terem tudo o que querem, acreditam que mais uma vez estão diante de algo que podem comprar ou simplesmente conseguir com uma ordem. A ideia imediata, sobretudo partindo de quem não faz ideia de como funciona o mundo virtual, tão pouco tem noção de como se sente alguém que interage nesse mundo, é a mais simples, ou seja, afastar Dominik de seus novos amigos.

Para o jovem a ‘sala do suicídio’ não era apenas uma brincadeira ou um passatempo, era toda sua vida, seus amigos, um lugar onde podia se expressar e ao menos aparentemente ser compreendido.

É muito raso olhar para um simulacro do mundo real e considera-lo um ambiente menor. Como vemos no filme, aqueles que recorrem à sala buscam fugir de uma realidade cruel e desagradável. Entretanto é possível que o mundo virtual não seja tão diferente do que vivemos ao por os pés na rua. Assim como as decepções de cada um dos integrantes da sala são compostas por atitudes vidas de outras pessoas, lá dentro a única diferença é a imaterialidade, as pessoas, assim como suas atitudes e seus conflitos de interesse, permanecem os mesmos.


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